Também se morre de amor...

        Minha lembrança da velha senhora é dos mais remotos tempos da infância. Lembro-me do seu sorriso distante e complacente. Também não me saem da memória sua voz grave e seu ritmo apressado.
        Fora a minha alfabetizadora e a primeira professora a gente nunca esquece... Ela houvera sido a mestra querida, a primeira amiga da infância e da escola. Não bastasse isso, acometeram-se seus sentimentos de imponente e imorredoura paixão. E sutil, por excelência, fora o destino com a sua história de vida. Tais fatos somados fazem de sua lembrança algo muito vívido em minha mente.
        Uma nostálgica conturbação me reporta a momentos longínquos na Praça São Geraldo... Todas as tardes, ela passava para apanhar-me. Íamos juntas para a escola. Lembro-me da sala de aula e das folhas mimeografadas, com carimbos de bichinhos. Lembra-me também a sua letra miúda e uniforme, uma verdadeira caligrafia, na conhecida assinatura: Dora.
        Dora era uma magra senhora, com pouco mais de sessenta anos, à época da minha infância.. Vivia numa casa grande, em companhia de Tia Pequenina e oito cachorros também pequeninos.
        A vida de Dora se resumia à missão diária de educar. Descortinava aos olhos de crianças o mundo extraordinário das letras decifradas. Assim alfabetizara várias gerações da cidadezinha.
        Todas a conheciam em Vida Feliz. Apesar do nome, o pacato vilarejo era um lugar em que o tempo se arrastava, numa constante pasmaceira. E Dora, todos os dias, ia e vinha no seu trajeto imutável: da casa para a escola, da escola para a casa... Quando não estava lecionando para crianças, estava brincando com os cachorros, seus amigos. Por causa deles, eu até evitava visitá-la. Embora a amasse e simpatizasse extremamente com Dona Pequenina, temia o contato com aqueles pequenos seres, que me arranhavam e pulavam em cima. Ficava assustada e incomodada com o seu cortejo, em que os mais festivos, furtivamente, me lambiam os pés... Quando em vez, porém, criava coragem e ia visitar as duas senhoras.
         A velha tia tinha noventa e poucos anos (criara a sobrinha, junto a outras duas irmãs já falecidas) e me parecia fascinante em suas histórias de saraus e acontecimentos antigos. Narrava-me fatos passados com tal vivacidade e ênfase que estes pareciam transportar-me em tempo e espaço. Afinal, sempre gostei de vasculhar fatos e memórias. E aquelas visitas vespertinas de sábado eram bastante estimulativas à minha imaginação.
        Imaginação maior, porém, tivera  o  destino, que reservara a Dora uma incomum história  de amor... Apaixonara-se, na juventude, por um galante rapazinho de grandes olhos azuis. Seu nome era Guido, um descendente de italianos vindos da Calábria. Seus familiares eram efusivos; ele, porém, tinha no rosto um sorriso contido e metálico.
        Dora e Guido namoraram, às escondidas, por algum tempo, até que as tias descobrissem e impedissem o idílio. O empecilho apontado pelas três solteironas era algo absurdo: o rapaz não era de família tradicional local. E, segundo as más línguas, as tias desejavam que, como elas, a sobrinha não se casasse. Por puro egoísmo, diziam. E como realmente não era um aristocrata provinciano, Guido não pudera continuar o namoro. Pouco tempo depois, partira para a capital, em busca de melhores condições de vida.
        A pobre moça perdera-se de tristeza com a partida do namorado. Trancafiou-se, durante meses, em seu quarto. Quem passasse pela rua podia perceber, através das venezianas entreabertas, um choro convulsivo entrecortado por freqüentes soluços psicológicos.
        Dora nunca mais namorou. Vários pretendentes arriscaram-se à difícil empreitada de conquistá-la. A professorinha, no entanto, não mais se deixou encantar. Alguns anos depois, soube do casamento do amado com uma conterrânea que também se mudara para a capital. Sofreu tremendamente! Mas a vida parecia incumbir-se de arrastá-la dia-após-dia. Finalmente, pareceu conformar-se... Envolvia-se, contudo, por uma nostalgia quase entranhada nas rugas que ia ganhando. Trouxera-lhe o tempo um sorriso curto e um olhar triste. Na verdade, seus olhos nunca sorriam.
        Mas a continuidade da vida ganhava em seu apelo diário. E Dora adquirira novas raízes na prática do magistério: sua missão única de ensinar era quase um sacerdócio. Assim foi como eu a conhecera.
        Avós, pais e filhos vinham sendo alfabetizados pela professora solitária. Quando se elogiava alguma letra ou desenvoltura gráfica, já se afirmava, de antemão, que o autor do prodígio fora, certamente, alfabetizado por Dora Costa. Esta já era quase uma lenda da educacão regional. Perdera um grande amor, isto era certo... Mas construíra um grande nome e um poderoso arsenal de ex-alunos e amigos.
        Tempos depois, ficara completamente só: Tia Pequenina morrera. Na casa, restavam-lhe apenas os cachorros, com algumas baixas ocasionais....  E Dora parecia habituar-se, gradativamente, àquele solitário jeito de viver.
        Entretanto, quando já se acostumara perfeitamente àquela vidinha, um fato novo aconteceu... E, por uma dessas irônicas e miraculosas viradas do destino, cruzava as ruas da cidadezinha um automóvel diferente: um veículo incomum que parecia vasculhar os mistérios das ruas pacatas de Vida Feliz.
        Logo se soube  que um senhor simpático, de ralos cabelos e longo nariz romano procurava Dora Costa, a professora. A pobre mulher quase morreu ao reencontrar o antigo namorado, que bateu à sua porta (e novamente ao coração!), dizendo-se desejoso de falar-lhe. Guido retornava, ainda que tardiamente. Disse-lhe: “Voltei para casar-me com você!”. Dora gelou.
        Grande burburinho  tomou conta do lugarejo. Todos ficaram sabendo da incrível história de Dora e Guido: a saga de um amor proibido e o reencontro dos namorados após cinqüenta e poucos anos de separação. “Parece coisa de novela!”, todos exclamavam. O comentário alastrou-se  pelos arredores e, em várias cidades vizinhas, cogitava-se sobre a verdade do conto de fadas de Vida Feliz...
        Guido narrara, com a normalidade que o tempo infunde aos fatos mais descabidos: “Você sabe, Dora... Casei-me. O destino conduziu-me pela mão... Dei sorte nos negócios; tornei-me um comerciante próspero. Quanto à falecida, não a odeie. Celina foi uma boa mulher, uma companheira leal. Você precisava ver, Dora, como me falou na hora da morte: Guido, volte e case-se com Dora! Ela realmente o merece.  E aqui estou, para nos casarmos e realizarmos o sonho da juventude!...”
        Sonho de juventude, sonho dourado para Dora! Seu príncipe voltava (agora um príncipe de cabelos poucos e esbranquiçados, era verdade... mas isso não importava!)... Dora ficou  arrepiada com  o abrupto e inominável pedido de casamento. Não tinha dúvida em aceitá-lo. Conteve-se, porém, pois desejava comunicar  o fato ao irmão, único parente próximo que ainda lhe restava no mundo. Este, contudo, se opôs, duramente, uma vez que achava aquilo uma precipitação tardia, algo insensato... depois de tanto silêncio e vácuo! Dora não pôde entender e, dessa vez, não obedeceu.  Decidiu casar-se e tentar ser feliz.
        O casamento aconteceu numa tarde de outono. O templo da inusitada cerimônia não poderia ser outro: a escola onde trabalhara e, mesmo, vivera anos a fio! Toda a comunidade -  professores, alunos e habitantes do lugar – compareceu ao grande evento. Eu mesma testemunhei tão tocante acontecimento: um casamento com uma noiva de setenta e seis anos, a qual reencontrara o primeiro namorado, cinqüenta e três anos depois! Era coisa de fazer eriçar os pêlos da alma! Todos os presentes se emocionaram; vislumbrei lágrimas nos olhos de muitos... Aquilo parecia fazer parte de um romance: senti-me dentro d’algum clássico de época! Que lindo conto parecia começar, estranhamente já num final feliz!...
        As amarras do destino, porém,  não se soltam a meros golpes de sorte. Os primeiros   tempos do casal  preencheram-se com  passeios e divertimentos. Dora estava exultante! Novo brilho tomou conta de seu olhar e até ganhara alguns quilinhos.
        Fora o casal morar  em outra cidade, onde Guido residia ultimamente. Também tinham uma casa na serra, para onde se dirigiam com certa freqüência. Era compensador ver a amiga solitária, literalmente, respirando outros ares!
        Sempre que podia, Dora visitava os conterrâneos e amigos. Tornara-se tão alegre que até piadas contava... Dava-nos a impressão de haver renascido! Levara somente um cachorro para a nova casa. O marido alegava que o contato com o pêlo dos animais acirrava-lhe uma bronquite crônica. Parecia cuidar bem da esposa, namorada sagrada que o esperara “pura e invicta” (como sempre dizia) por tantos anos!...
        O tempo passou  e tamanha paixão deu mostras de não cumprir adequadamente o seu destino. Guido começava a cobrar da nova mulher, seu antigo e primeiro amor, uma postura pessoal que não se lhe aplicava. Tratava-a agora com modos rudes. O marido começava a  fazer-lhe críticas   e a trazer-lhe aborrecimentos que antes não tinha em sua vidinha diária. Dora, porém, tudo suportava, pois novamente se acostumara a um jeito  peculiar de viver. E acreditava que não mais saberia  viver sozinha!
        Pobre Dora! O tempo pregara-lhe uma peça: trouxera-lhe um presente antigo, com ótima embalagem e defeitos de conteúdo. As pessoas à sua volta já começavam a perceber quaisquer nuances da atmosfera negativa que a envolvia.
        Certa tarde de verão, o casal saiu de carro. Guido dirigia nervosamente. Afora as condições físicas que o balançavam, ainda estava aflito e irritado. E talvez um lampejo  emocional mais forte o tenha atingido quando, subitamente, perdeu a direção. Acontecia aí a segunda e definitiva separação do casal vida a fora...
        Em meio a uma chuva torrencial na descida da serra, o carro capotou, num acidente menos que brutal, mas que, temporariamente, colocara em risco as suas vidas, já um tanto afetadas pelos anos.
        Foi o casal socorrido por moradores das imediações, que tomaram as providências cabíveis. Logo avisaram o irmão de Dora e os filhos de Guido. Cada parte da família cuidou, particularmente, de seu próprio doente. E aí já começava a separação dos cônjuges. O restabelecimento de ambos não foi fácil, diante de  fatores como fragilidade orgânica e instabilidade emocional.
        Passaram-se alguns meses até a recuperação plena dos acidentados. Dora teve mais dificuldades para restabelecer-se, dada a depressão  que se somatizava   em seu corpo e em seu íntimo. Com a sua boa e natural intuição, já antevera uma separação  que (sabia!) não agüentaria... Não mais saberia viver sem Guido. Preferia até mesmo algum sofrimento no trato diário a uma separação definitiva e sem promessas.
        No momento da saída do hospital, os próprios parentes, respectivamente, levaram  seu doente particular. Dora e Guido ganharam novos e separados endereços. Segundo os familiares, aquela seria a maneira prática de cuidar dos doentes, frágeis e debilitados ante as conseqüências do acidente. Diziam que, como cada qual  não poderia cuidar de si mesmo e, menos ainda, do outro, melhor seria que  tivessem os cuidados dos parentes próximos.
        Entretanto, após longa temporada de cuidados e assistência, na pronta restauração dos dois, permaneceu a separação. Dora, amorosa,  já habituada à companhia de Guido, não se conformava em perdê-lo de seu convívio. Num passe de mágica, do mesmo modo como chegara  em sua vida, dela se desprendera, deixando a dor de uma saudade profunda, ainda maior que aquela da juventude!
        Numerosos esforços e tentativas empreendeu Dora para reatar o inusitado casamento: escrevia cartas, telefonava, buscava contato de todas as formas... Até mesmo humilhava-se! Mas o homem, frio e insensível a seus apelos, mostrou-se apático e inacessível. A separação era um ato consumado e irrevogável.
        Dora voltou a viver em sua antiga casa. Retornou à vidinha pacata de antes, do modo como vivera nas décadas anteriores. Mas agora tudo era diferente. Ficara o vácuo de uma lembrança  real e o fantasma de uma saudade plena, invencível. Até porque o seu objeto de amor tornara-se palpável e real. Guido saíra de suas fantasias diretamente para a vida real. E agora novamente virava sombra, na névoa intransponível da solidão...
        Antes aquele homem nunca tivesse voltado e Dora (acredito veementemente!) ainda viveria muitos e muitos anos, em paz de espírito. Ora, se não a queria para o resto do seu sempre, por que então voltar e arrancá-la de seu platonismo, já contornado pelos anos?!...
        Dora adoeceu gravemente. Manifestaram-se súbitos e inexplicáveis problemas em sua saúde, inabalável nos tempos da antiga  solidão... Somatizaram-se os males na proliferação orgânica de uma tristeza implacável e sem volta. A morte começou a rondar-lhe a velha casa amarela, envolta agora  numa atmosfera de brutal silêncio de dores.
        Em meus vinte e poucos anos, nunca vira fato semelhante: um corpo que se aniquilava, uma vida que se esvaía, uma saudade que matava, um coração que morria... Dora não resistiu à dor da segunda e crucial perda. Após a separação, vivera pouco tempo mais... Não por causa do acidente (do qual se recuperara), mas essencialmente  pelas seqüelas emocionais da separação de seu eterno amor. Pela morte do sonho, deu-se a morte da alma, ainda em vida. E o corpo não agüentou... A moça  apaixonada cujo espírito não envelhecera transformara em ouro a poeira do sonho, ao reencontrar o amado. Todavia,  o ouro se desfazia  e voltava  ao seu estado de antes. E a morte começava a tomar conta da vida.
        Dora morreu na primavera e seus sonhos se transformaram em flores. Toda a sua legião de amigos sofreu intensamente e reservou-se o direito de odiar  ao insensível senhor, que se desmistificara aos olhos de todos. Eu, principalmente, não o perdôo pelo mal irreparável que causou à minha amiga. Vi, pela primeira vez, alguém que literalmente morreu de amores... como nos romances! E a minha mestra, apesar do muito que me ensinou, não pôde mostrar-me, em suas lições, o teor de uma luz que se apaga, num sopro leve e sem graça. Eu assistia à morte do sonho e da pessoa... e não conseguia compreender  tudo aquilo.
        Anos voam como poeira cósmica,
        Como brisas leves e sorrateiras...
        E eu ainda não aprendi com a lógica
        Calcular conseqüências inteiras!
        Minha professora  também não pôde dominar essa lógica. Talvez nenhum humano possa. Por isso, também se morre de amor...

Saionara Viana da Cruz Salomão
 

 

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