Cecília levantou-se
ainda tonta de uma noite mal dormida. Seus olhos verdes esgazeados fixavam
um ponto indistinto do mísero quarto que ocupava e automaticamente
encostou a mão na barriga dolorida. Não conseguia pensar
em nada senão na dor que sentira e na violência que ofuscara
sua visão entorpecida.
Sempre falara à sua
mãe sobre aquele homem miserável. Sempre dissera que ele
não prestava para nada a não ser para torná-la
infeliz e a todos que moravam naquela casa. Ela não acreditava.
Como podia estar cega para
as atitudes dele? Não compreendia aquela atitude e não a
perdoaria nunca. Não perdoaria.
Dona Neuza bateu à
porta chamando-a e entrou inesperadamente.
— Não vai levantar
hoje, não? E olhou a filha assustada — O que é que você
tem? Está doente?
A jovem fixou a mulher com
raiva:
— Teve uma boa noite?
— Por que pergunta?
— Nada. Nada. Já
vou levantar.- E não conseguia nem erguer a cabeça dolorida
Quando a mãe saiu
do quarto ergueu-se com dificuldade,os pensamentos flutuando e prometeu
a si mesma que sairia muito em breve daquela casa. Tinha apenas treze anos
mas haveria de conseguir.
No momento que pisava ainda
sem sapatos o chão cimentado da cozinha viu aquele homem. Estava
sem camisa e o rosto amarelado cujos olhos brilhavam estranhamente parecia-lhe
na cozinha escura e sem uma nesga de luz solar,completamente bizarro e
ameaçador. Jurou, então que um dia ele se arrependeria
do que fez.
Viviam antes de Mário
entrar ali miseravelmente. A fome rondava aquela casa em que apenas o salário
mínimo entrava em dinheiro para a subsistência de todos.
Quando sua mãe o
conheceu há três anos atrás a vida melhorou e
havia comida suficiente para as duas e a irmã pequena. Ele estava
construindo uma casinha ali perto, pequena e simples mas bem melhor do
que aquela em que viviam e sua mãe dissera que todos iriam morar
ali.
Muitas vezes quando questionava
o jeito estranho do companheiro de Dna Neuza ela respondia com a mudança
de vida e a própria sobrevivência da família
De uns tempos para cá
vinha notando o modo esquisito como o homem a olhava o que lhe fazia sentir
um pavor crescente. Em Várias ocasiões tentou tocar-lhe de
forma estranha e ela fugia instantaneamente .
Falara com a mãe
sobre isso e ela não acreditou ou fingiu não acreditar.
Naquela casa era assim mesmo.
Era mais fácil não acreditar em nada do que elas diziam.
Cecília calada
e infeliz foi para o quarto e acabou de se vestir. Tudo que queria era
arranjar um emprego e morar longe. Pensou até em se matar. Estava
toda dolorida e principalmente com muito ódio. Que podia fazer?
Morar na rua?
Há dois meses atrás
como regularmente acontecia Dona Nilza teve que dormir no emprego a pedido
da patroa. Isso significava um acréscimo ao seu salário e
ela não recusava.
A filha entrava em pânico
toda vez que isso acontecia. Significava tolerar as bolinações
que seu padrasto a submetia. Chegou muita tarde essa noite. Ficou rodando
sem rumo só para não chegar em casa cedo. Mesmo assim Mário
estava acordado e parece que tinha bebido mais do que o normal.
Olhou- a de modo esquisito
e perguntou onde estava.
— Não lhe devo satisfações
— ela respondeu apreensiva e no entanto não desviou os olhos
como para enfrentá-lo.
Ele não respondeu.
Aproximou-se sorrindo e seu rosto se contorceu, ficando muito vermelho.
Tentou passar a mão por debaixo de sua saia e ela saiu correndo
e bateu a porta.
Quando chegou já
era dia e ele estava dormindo. No dia seguinte saiu cedo e foi ao colégio.Só
bem mais tarde retornou. O que não esperava é que ele estivesse
sozinho em casa, quando entrou em seu quarto. Estava justamente ali
e fechou a porta com violência quando ela entrou.
Por mais que
gritasse e se debatesse ele conseguiu seu intento: Violentou-a.
Cecília
jurou aos gritos e com desespero que ele lhe pagaria. Que isso jamais voltaria
a acontecer.
Sua vida
começou a ser um verdadeiro inferno. Algumas vezes sua mãe
a deixava trancada em casa com a irmã e levava a chave para que
ela não saísse à noite .
Mário
sabia ou pelo menos tinha consciência que Nilza não acreditava
ou não queria acreditar na filha.
Cecília
crescia e parece que nada mais a preocupava. Aquela revolta que lhe sufocava
parecia estar simplesmente latente.
Não
acreditava em nada nem em ninguém. Passou a encarar o padrasto
com cinismo e pedir favores em troca de sua boa vontade.
Comprou
roupas e bijuterias, passou a usar um batom que combinava com sua pele
clara e quando sua mãe lhe perguntava alguma coisa respondia com
indiferença que estava fazendo pequenos serviços em casas
de família indicadas por suas amigas de colégio.
Mas dentro de si mesma tinha uma revolta intensa e remorso por estar enganando
dessa forma à sua mãe. Mas raciocinava que ela quisera assim
e que jamais lhe revelara amor.No fundo sabia que a maior vítima
era ela mesma.
A única coisa que ainda realmente amava e se importava era com sua
irmãzinha Suzana. Sempre que podia lhe comprava pequenas lembranças
e tinha um carinho todo especial por ela.
Apesar
de tudo sentia pena de sua mãe e raiva ao mesmo tempo. Parecia que
ela quisera entregá-la a Mário e essa promiscuidade enchera-a
de rancor. Aquele homem era muito esquisito. Havia muita coisa oculta na
vida dele, ela tinha certeza.
O tempo passara e a deixara entorpecida. Sabia que a mágoa era grande
e que sofria muito mas não queria pensar. Em certos momentos parecia
que ia enlouquecer.
Era inteligente e forte o suficiente para não se meter em problemas
maiores e por isso fugia tanto das drogas que lhe ofereciam com facilidade.
Uma ou outra vez, porém, fumava seu baseado tentando esquecer. A
sorte é que não se sentia bem e imediatamente suspendia a
prática.
Há dois meses haviam se mudado para a casa que Mário estava
fazendo e ela se assustou ao verificar que não era tão simples
assim. Onde aquele homem arranjava dinheiro?
Antes ainda conseguia dominar sua raiva mas agora parecia reacender tudo
em sua cabeça. E ela ficava ligada a qualquer coisa que se
referisse ao padrasto. Detestava-o e jamais sentira esse ódio
por ninguém.
Naquele dia entrava em casa à noitinha quando viu que estava tudo
muito silencioso.
Imaginava
que sua mãe não estivesse lá e Suzana deveria estar
na vizinha com quem ficava quando Dona Neuza trabalhava à noite.
Silenciosamente
abriu a porta que não fez nenhum barulho.Mas sufocou o grito quando
viu a irmãzinha deitada no sofá enquanto o padrasto, ajoelhado
no chão parecia estar tocando nela. Não tinha certeza porque
estava escuro mas perdeu o controle. A inércia de Suzana deveria
ser pavor. Correu para o quarto à procura de alguma coisa que não
sabia o que propriamente era. Sua irmã começou a gritar assustada
enquanto o homem correu à procura de Cecília e segurou-a
à força tentando levá-la para a cama. Parecia desvairado.
Cecília caiu deitada na cama da mãe, enquanto o padrasto
jogava-se por cima dela tolhendo-lhe os movimentos com o peso de seu corpo.
Sem a mínima noção
de nada, conseguiu aliviar um braço e puxou a gaveta de uma banqueta
que estava ao lado da cama à guisa de criado-mudo, procurando algo
que pudesse se defender. Sentiu tocar em um objeto frio, e sem a mínima
noção do que estava fazendo ouviu o estampido ensurdecedor.
Sentiu a cabeça do padrasto cair sobre ela, com o sangue a
escorrer de suas têmporas.
Não reagiu porque
tudo que aconteceu ali estava fora de sua visão já que o
raciocínio estava embotado pelo desmaio profundo que fora acometida
e do qual dificilmente retornaria.
Suzana não havia
compreendido nada e saíra gritando para fora de casa, as mãos
estendidas como a pedir auxílio.