Maresia
 
A tatuagem do lagarto nas costas do rapaz chamava a atenção dos curiosos moradores da cidadezinha, Ele nem se importava, só escutava atentamente, o que contava o  centenário Paulinho, lá nos bares da estrada da vida, que muito sabe de estórias que contavam seus velhinhos:
— Antes, muito antes, quando o amor não tinha sido inventando, nem as estrelas e nem os mares. Aqui mesmo existia uma tribo (os Paxonara), nela morava um bruxo que tinha uma filha lindíssima — o velho empinava o copo de pinga e secava sua boca com um braço fraco e cansado.
— Sabe era a única que iluminava na noite os caminhos dos guerreiros e ninguém resistia ao encanto dela; sua pele era mais bela que a lua, seus olhos tinham a doçura das mães, da luz do por do sol, o corpo era a escultura mais bela que foi feita pela natureza. Segundo meus avos até agora nada mais belo se viu sobre a face da terra, nem agora nesses tempos modernos — e os olhos do Paulinho brilhavam e ele se empolgava.
— Almará ! ! !
— O que? — Perguntou o seu jovem amigo.
— É, esse era o nome da filha do Bruxo. Almará. Ela não podia amar ninguém, porque o pai não queria, falava que só um guerreiro poderia tê-la, aquele que vencesse a serpente criada por seus malefícios e bruxarias... — e acabava com outro copo, qual fossem os pedaços da sua estória.
— Esse seria o escolhido, todos na tribo dos Paxonara estavam loucos por Almará. As mulheres a odiavam, os homens a amavam. Chegou o dia da prova e todos perdidos na paixão enfrentaram a serpente da maldade e todos sem exceção, mas todos mesmo!, os mais preparados, os mais fortes os mais antigos: morreram. A filha do bruxo ficou muito triste, se bem que ela não gostava de nenhum deles tinha a esperança de algum dia se apaixonar —  o velho bebe e propõe um brinde à Almará.
— A Almará: Mãe das Paixões —  disse Jonas com uma paixão incompreensível.  E os copos bateram-se cortando o antigo silêncio de Barbacena. As mulheres que atravessavam a calma rua olhavam com desprezo. Passaram-se uns minutos de pensativo silêncio...
— Mas Paulinho. Aí acaba a estória?!
— Não filho meu, aí começa a estória. Nesses tempos na tribo só ficaram mulheres. E o velho bruxo sentiu-se magoado pelo que fez porque achava que esse seria seu destino, já que ele estava velho demais para ter filho e homem nenhum ficou vivo. Eles acreditavam que estavam sozinhos no mundo e que o tudo acabava alí mesmo, depois das montanhas que cercavam a Vale...
— Que tolice !
— É. O velho bruxo estava preocupado pela tristeza de sua filha, e das viuvas que ainda choravam seus mortos e mal compreendiam porque tudo tinha acontecido. A tribo ficou sem guerreiros, nem caçadores, nem lavradores, nem músicos... tudo era tristeza e desolação no Vale de Paxonara.
Num dia de sol chegou um rapaz caminhando na tribo. Era baixinho e de longos cabelos, seu rosto denotava cansaço, mas nos seus olhos se via o fogo sagrado dos guerreiros. Todos acharam que era assombração, alma perdida ou, coisa assim até que tocaram-no. Não!, era homem de carne e osso, dizia-se chamar: Marembó ou alguma coisa assim...
E falava ! Falou pro bruxo que ele viera conquistar o amor de sua filha porque vislumbrou certa noite que lá do topo da montanha viu semelhante escultura dormindo na grama ao luar iluminando todo o vale. E que essa luz fizera-lhe tão feliz que a queria pra sempre. Porque ele sonhou que seria o único que a faria feliz —  o relator movia aceleradamente os braços, a senhora do balcão contava dinheiro, e o outro escutava com muito interesse.
— O bruxo tentou expulsá-lo pela força mais não deu. O guerreiro dizia que sua força era como o fogo do sol e que o prometido era ele. O bruxo dizia que ele não existia que era assombração que entrou num corpo morto... Mas do Bruxo, já se comentava entre os Paxonara que estava velho demais pra afirmar alguma coisa, e as mulheres começaram a deixar de acreditar no que ele dizia, e a se apaixonar do Marembó, se foi verdade... não sei —  o Paulo levanta as sobrancelhas, e os dois ombros, a sua branca cabecinha se perde entre os magros ossos de seus ombros que descem tão rapidamente quanto subiram.
— É. Bom, assim Marembó e o Bruxo passaram duas luas discutindo sem comer, nem beber, nem dormir e quando entrou a lua cheia chegaram a um acordo. Ele poderia afrontar a serpente mas sem arma alguma, se ganhasse iria com Almará pra onde ele quisesse e se perdia serviria somente pra engordar a serpente. Fecharam o contrato com um apertão de mãos. Essa noite fizeram uma festa onde comeram, beberam e dançaram todos.
Ao chegar a meia noite no meio da tribo fez-se um círculo de fogo e soltaram a serpente, eles deviam lutar até que algum dos dois morresse. Antes de entrar no circulo ele bebeu um gole de alguma coisa e olhou para a filha do Bruxo como nunca ninguém a tinha olhado, ela simplesmente tocou os longos cabelos dele e uma luz viu-se nesse instante uma luz nova e desconhecida —  o Paulo abre os braços para o céu e sua voz torna-se misteriosa — ele entrou com a força da sua paixão a lutar no círculo de fogo.
Desfez-se de suas poucas roupas e ficou nu e o bruxo viu nas suas costas tatuado um lagarto, o bruxo assim soube que existiam outras terras porque esse animal não era conhecido no vale...
— Vai Paulinho, acelera: a luta como acabou ?
— Você sempre impaciente Jonas! Onde é que eu estava mesmo?
— O Marembó ficou nu.
— Ah!, sei —  e engoliam aos poucos a estória em copos sujos e pequenos. —  Bom, o rapaz ficou nu diante da serpente e se deitou no chão como se fosse um lagarto. A serpente instalou-se na sua frente e quando Almará deu a ordem eles começaram a luta. Os lutadores saltaram um contra o outro, e se apertaram com ódio, giraram até o limite do círculo, as costas do rapaz se queimaram a sua tatuagem também e ele gritou, alguma coisa que ninguém entendeu, e a sua fúria atravessou o Vale e o mundo inteiro. Até a serpente se assustou e eles se afastaram. A serpente tentou morde-lo, mas ele quebrou a sua boca abrindo tanto ela até arrebenta-la. A serpente enfureceu e tentou esmagá-lo com seu longo corpo mas ele a destroçou em mil pedaços. Tanto sangue foi derramado que todo o círculo apagou-se. Era verdade o que ele tinha dito a sua força era com o fogo do sol. O forasteiro triunfante saiu e beijou a sua amada.
Almará sentiu o que todos viram: esse beijo os fez eternos e invencíveis. Então nasceu o amor. O bruxo deixou cair uma lágrima, ajoelhou-se frente aos amantes e os abençoou. Mas na realidade não aceitou a derrota — o relator começou a brincar com uma caixinha de fósforos.
— Todos concordaram que no amanhecer enfrente ao rio seria feita a cerimônia do casamento e o noivo foi alojado numa das casas vazias. O bruxo enquanto todos dormiam concentrou-se e invocou os mais malditos espíritos que existiam naquela época e os que existirão até o fim do mundo, pediu a todos eles que levassem Marembó o mais longe que pudessem. E fizeram isso enquanto o guerreiro dormia; o Bruxo não suportou tanto esforço espiritual e morreu. Só ficou o corpo porque a cabeça explodiu, quando os espíritos malignos se foram.
Ao acordarem todos viram o deplorável espetáculo, junto ao corpo encontraram uns escritos: eram as Tábuas da Vingança. Ao lerem os que estavam chorando entenderam o que aconteceu e a filha o que seu pai tinha feito. As mulheres sentenciaram que apesar de velho e louco, tornou-se mentiroso e trapaceiro. Em seguida foram procurar o escolhido e não havia nem rastos dele. A Maldição dos Distâncias concretizou-se: eles viveriam separados. E só depois de muito tempo se encontrariam (séculos), vivendo outras vidas e sem saberem quem eram no passado. Só o descobririam se o amor fosse verdadeiro.
— E, eles se encontraram ?— interrogou.
— Sei lá, assim me contaram a estória e isso foi faz muitos séculos, se eles se encontraram ou não, não sei. Ele pode ter se transformado em algum de nós. Quem sabe? Mais isso não é o que interessa, deixa eu terminar a estória — lá fora o sol já se escondendo entre as montanhas de Minas. É, o Jonas pensava quem sabe foi ali ...
— Ei, menino presta atenção, você sempre distraído, heim!
— Desculpa, continua Paulinho.
— O tal Marembó acordou na tardinha mais ou menos a essas horas, lá depois e além de muitas montanhas e rios e não entendeu nada. Mas pensou com tanto amor em Almará que ela percebeu mesmo a milhares de quilômetros de distância.
Quando se fez noite ela olhou pro céu, que nessa época só tinha a lua, e enviou um sinal, coloriu o céu com milhares de estrelas e ele viu e adorou, todos adoraram e  agradeceram Almará por fazer o céu mais lindo que até esse dia tinha existido —  Então nasceram as estrelas. O seu amado percebeu que era ela e chorou, chorou de amor, chorou dias e noites inteiras até que se formaram os mares. Então nasceram os mares. As águas dos mares eram como ele apaixonados iam e voltavam levando mensagens de amor em cada onda ...
—  Interessante ...
— Foi assim que nasceram o amor, as estrelas e o mar e os pobres Marembó e Almará ficaram condenados à Maldição das Distâncias ...
— Tomara que eles tenham-se encontrado —  falava o jovem num tom sensibilizado.
— É... tomara —  e ergueu seu corpo velho e magro cheio de estórias, sacudiu sua camisa como se assim se livrasse do passado.
— Bom Jonas, o papo tá bom demais, mas tá ficando noite e, além disso o ônibus demora muito pra chegar até a minha casa —  enfiou a sua mão no bolso traseiro da calça.
— Não, que que é isso? Eu pago! Faço questão!
— Eu tô indo embora..
— Tá, eu vou ficar um pouco mais, para beber a saideira.

O velho estendeu-lhe a mão e despediu-se num abraço como quem tem certa confiança, desejando sorte e tudo que se deseja às pessoas a que se quer bem. Assim, Paulo perdeu-se na escura noite de Barbacena, enquanto Jonas lá pregado na cadeira pensando na estória ficou. Bebeu outra dose de pinga e decidiu ficar. Pediu um chopp e aos poucos o bar foi invadido por outros jovens da sua idade. O mundo voltava à normalidade e só assim soube que estava a dois anos do ano dois mil e não na tribo que outrora existiu naquele cenário. A pesar de não ter nenhum conhecido entre os outros ele se divertia sentia uma nova sensação de fascínio indescritível, diferente. Chegada a meia noite assistindo um show de música cowntry que tinha naquele bar todas as sextas, a viu, era ela a que passou pertinho dele quase esbarrando-o, tocou seus cabelos. Olharam-se nos olhos e viram as estrelas, agitaram-se como o mar e no fim da noite beijaram-se, e sentiram o que nunca tinham sentido: um beijo cru, nu, eterno, sincero e entenderam. Entenderam tudo o que precisavam para viver, entenderam que a maldição tinha sido quebrada. 

Carlos Edgar Montiel

 

 

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