João e seu Destino
 

                CAPÍTULO 1
 

     Recebeu um soco com tanta violência, que sentiu fragmentos de seus dentes espatifarem-se pelo ar. Uma bola de sangue e ossos se formou em sua boca sufocando-o. Seu corpo escorregou e caiu no chão quase sem sentidos.  Pontapés e chutes vindos de todos os lados quebravam-lhe costelas. Tentou ainda num último suspiro proteger sua cabeça com os braços, mas alguém a chutou tão forte que tudo se apagou, para sempre.
 
 
 
                CAPÍTULO 2
 

     João caminhava pela rua sem rumo. Em baixo do braço uma mala velha e rasgada. Depois de 3 horas sem coragem de sair da rodoviária, resolveu enfrentar sua situação. João tinha 23 anos e um físico invejável. Desde cedo trabalhara e foi no próprio trabalho que adquirira força. Ele vinha da Bahia e era negro. Sabia que enfrentaria o preconceito em São Paulo mas não tinha a menor idéia de como era aquela cidade. Haviam lhe dito que era a cidade das oportunidades. Mas o que ele via era o caos. Carros enfurecidos atropelando-se uns aos outros numa dança calculada. Sua garganta secou e seus olhos começaram a lacrimejar. Pegou a sua carteira e deu uma espiadela. Tinha 50 reais e só. Chegou numa pensão caindo aos pedaços e perguntou:

     — Quanto é a diária?
     —  10 reais. Respondeu uma senhora carrancuda.
     — E por mês ?
     — 120.
     — Eu só tenho 50, mas preciso de 10 para a comida.
     — Muito bem, 10 dias pelos seus 40 reais
     — Mas e se eu não arrumar emprego até lá?
     — Queridinho, isso não é problema meu, é pegar ou largar, é o máximo que posso oferecer.
     — Eu não encontro coisa mais barata por aqui?
     — Olhe bem para este lugar, se você conseguir arrumar coisa pior...

     O Quarto tinha um cheiro horrível de mofo. Uma cama disforme e um lençol manchado era tudo o que havia nele. João foi ao banheiro e tomou um banho frio, não havia chuveiro elétrico. Tudo era extremamente sujo e deprimente.

     Quando deitou-se na cama foi tomado por uma espécie de amargura. A vida seria muito dura para ele. Tinha plena consciência que se ele não arrumasse emprego nos próximos 10 dias teria que dormir na rua. Procurou não pensar nisso. Ele haveria de arrumar emprego.

     João teve uma péssima noite, foi atacado por pulgas e pernilongos sedentos de sangue. Ver a luz do dia foi um alivio. Levantou-se e tomou outro banho de água gelada. Ao descer foi logo repreendido pela dona do  lugar:

     — Mocinho, mocinho, nada de mais de um banho por dia.
     — Mas foi rápido.
     — Regras são regras, se eu te pegar continuando com isso corto um dia de sua estadia, estamos entendidos?
     — Estamos.

     O estômago de João roncava. Entrou em muitas agências de emprego e a resposta sempre era a mesma :

     — Não temos vaga no momento.

     A hora do almoço chegou e ele comeu um X Salada de 1 real e um copo de água da torneira, sua única refeição do dia. Não sabia até quando agüentaria, mas tinha que tentar.

     Os dias foram se passando. E a rotina era sempre a mesma até que no 6 dia, João se encaixou numa vaga de jardineiro. Ele tinha uma certa experiência nisso. Foi até o local e encontrou uma fila com umas 40 pessoas a sua frente. Ficou da 1:30 até às 5:00 embaixo de um sol escaldante. Quando chegou a sua vez uma moça olhou para ele da cabeça aos pés e disse:

     — Tem experiência?
     — Tenho sim senhora.
     — Trouxe a ficha?
     — Trouxe.
     Ela passou os olhos rapidamente e distraidamente sobre a ficha e disse:
     — Sinto muito mas você não se enquadra no perfil que procuro, obrigada.

     João ficou desconsolado. Saiu da sala indignado. Talvez ela preferisse um homem branco e engomadinho para cuidar do seu jardim. Pensou ele.

     Os dias se passaram e João não encontrou emprego algum. Era muita gente para concorrer com ele em qualquer vaga que fosse. Certo dia viu um garotinho vendendo doces no sinaleiro e resolveu conversar com ele.

     — Hei garoto.
     — O que?
     — Quanto você ganha vendendo doces aqui.
     — Uns 7 reais por dia.
     — Você não quer um sócio.
     — Se que é pegar o meu dinheiro, cai fora meu.
     — Eu só queria trabalhar.

     Imediatamente o menino tirou do bolso um cartão e estendeu a João.

     — Se eu fosse mais velho entrava nessa, você ganha muita grana.
     — O que é isso.
     — Conversa com esse cara, ele vai te dizer. Vá lá a noite.
 
     O lugar era um bar cheio de bêbados e prostitutas. Uma delas chegou bem perto e disse:
     — Adoro um crioulo.
     — Não tenho dinheiro nem para te dar um beijo.
     — Não importa.
     Ela puxou a mão dele para dento de seu decote e fez ele passar a mão pelos seus seios fartos.
     — Gostou?
     — Gostei, mas eu não vim aqui para isso, procuro um tal de Ramone.
     Ela o encarou sério e disse:
     — Não é coisa para você vá embora.
     — Tá me procurando?

     Quando João se virou um homem baixo, de bigode e com uma camisa florida o encarava com um olhar que não inspirava confiança.

    — Ramone?
    — Sr. Ramone.
    — Desculpe. Me disseram que o Senhor tem emprego para quem precisa trabalhar.
   Ele deu uma gargalhada alta e sonoro e o mandou embora com as mãos:
    — Cai fora daqui.
    — Eu preciso de trabalho, não tenho para onde ir e hoje nem comer eu comi.
    — Você sabe que tipo de trabalho eu posso lhe oferecer?
    — Não estou escolhendo. Disse João quase em tom ameaçador.

     Pela primeira vez o homem o encarou com seriedade e disse:

     — Vamos subir para conversar lá em cima.
     Antes de subir Ramone disse qualquer coisa para o garçom que respondeu com um sinal afirmativo.

     Ramone foi logo falando :

     — De onde você é?
     — Da Bahia.
     — Está aqui há quanto tempo?
     — Hoje fazem 11 dias.
     — Veio a procura de emprego, suponho.
     — Sim.
     — E pelo visto não conseguiu nada.
     — Não. Na verdade eu não me importava de continuar procurando, mas não tenho nem para onde ir e nem o que comer.
     — A fome dói não é ?
     — Muito.
     — As pessoas têm pena das crianças na rua, mas de um homem feito tem o mesmo pensamento: "um homem deste tamanho pedido esmola, vai trabalhar vagabundo".
     — Acho que é assim.
     — Pois bem, eu estou a procura de um homem. Mexo com drogas, prostituição e outras coisas pouco recomendáveis.
     — Eu imaginei.
     — E o que me diz?
     — Você não teria um emprego de limpador de chão, garçom ou coisa parecida?
     Um vermelho forte espalhou-se sobre o rosto do homem. Parecia que ia cuspir fogo. Um garçom trazendo um prato de comida fumegando entrou na sala. Ramone correu ao encontro do garçom e pegou o prato de suas mãos. Trouxe para perto de João e disse:
     — Sinta o cheiro da comida!
     João sentiu o cheiro de carne, arroz e feijão e teve o ímpeto de pular sobre o prato.
     — Sinta o cheiro porque é só isso que você vai sentir nesta sua vida miserável. Comida, dinheiro, mulheres, tudo isso sempre vai passar a quilômetros de você.
     — Por caridade, estou com fome
     — Não me diga! Fora daqui seu negro!
     Disse isso e jogou o prato no chão. João lançou-se ao chão e lambeu  desesperadamente a comida espalhada. Ramone ria alto da cena grotesca. Logo dois seguranças gigantes entraram no recinto e carregaram João com violência, jogando-o na rua, depois ainda acertaram vários pontapés em seu corpo. Ele ficou ali estirado sentindo dor por muito tempo até ter força para levantar e sair perambulando sem rumo pela cidade. Bateu em várias casas pedindo comida, mas as pessoas negavam-se, diziam que não tinham nada em casa. João sabia que ninguém tinha muita paciência com mendigos e pedintes, pois eles eram muitos. Viu uma Igreja e resolveu falar com o padre. No escritório da paróquia uma freira veio ao seu encontro :
     — Pois não?
     — Moça não sou bêbado nem louco ou vagabundo.
     — Quem lhe disse que eu pensei isso?
     — Todos pensam quando olham meu estado. Vim da Bahia tentar a sorte aqui. Meu dinheiro acabou e não consegui arrumar emprego. Estou com muita fome.
     — Ouvimos por dia muitas histórias parecidas.
     — E o que vocês fazem?
     — Venha comigo.
     Ela o levou a uma cozinha ampla com uma grande mesa de madeira no centro. Pegou um pão grande e cortou várias fatias. Passou doce em todas, colocou-as num prato e entregou a João. Pegou uma garrafa e lhe serviu café com leite.

     — Esta bom assim? Perguntou ela.
     — Está ótimo.
     João comeu todas as fatias com extrema voracidade. Ela vendo sua fome cortou mais algumas fatias.

     — Você está com muita fome hem?
     Ele a olhou nos olhos e agradecido começou a chorar como criança.
     — Calma não fique assim moço.
     — A senhora é a primeira pessoa que eu encontro que mostrou um pouco de misericórdia comigo.
     — Como é o seu nome?
     — João.
     — João numa cidade grande as pessoas aprendem a serem duras e olhar sempre a maldade nas pessoas. Garanto que muitos sentiram vontade de te ajudar, mas tiveram medo de serem assaltadas ou que você fosse um malandro.
     — Mas a senhora não pensou assim.
     — Acho que não somos coisa alguma para julgarmos nosso próximo.
     — Eu não sei o que vai ser de mim.
     — Deus há de te ajudar.
     — Tomara.
     — Para você achar um emprego precisa de um lugar para ficar não é mesmo?
     — Preciso.
     — Aqui está o endereço de um Albergue que fica perto daqui. Fale com a Sra. Maria e diga que você foi indicado pela Irmã Ana.
     — Nem sei como vou agradecê-la.
     — Sendo um homem honesto e trabalhador.

     No Albergue João encontrou um lugar para passar as noites e fazer uma refeição por dia. Procurava sem parar por um emprego, mas a resposta era sempre negativa.

     Num dia que tudo parecia igual João caminhava pela rua quando viu um homem correndo desabaladamente carregando em suas mão uma bolsa de mulher. João não teve dúvidas, quando o homem passou por ele, esticou o pé fazendo-o cair com violência sobre o chão. Logo um homem que vinha correndo atrás chegou e agarrou o indivíduo dando-lhe socos e pontapés. Quando o homem já estava desacordado ele parou e olhou para João.
     — Esse sujeito não sabe de quem resolveu roubar a bolsa.

     Logo uma Limosine estacionou perto dos dois e uma mulher muito Bonita e elegante, aparentando vinte poucos anos desceu do carro.
     —Conseguiu agarrar o patife? Perguntou ela.
     — Sim senhora. Mas só consegui graças a esse homem.
     — Você sabe que eu sou muito generosa com meus amigos.— Ela estendeu um cartão para João. — Procure meu marido, ele vai saber recompensá-lo.
     — Obrigado, mas eu não fiz nada.
     — Procure meu marido.

     Ela entrou no carro e seguiu em frente. João ficou observado o homem estirado no chão. Até parecia morto. Resolveu ir embora.
     Durante a noite o pequeno cartão bailava sobre suas mãos:
 
               " Businesses  Engenharia"
                     Mário Alcântara
                         Diretor

     João pensava na possibilidade do homem lhe oferecer um emprego e o tirar daquela vida de indigente. Pela manhã ele pegou o cartão e seguiu até o endereço marcado. O prédio era magnifico. Ele tinha certeza que jamais iriam recebe-lo.

     — Eu gostaria de falar com o Senhor Mário de Alcântara.

     A recepcionista o olhou da cabeça aos pés. Não acreditando que via um quase mendigo a sua frente.
     — Sinto muito.
     — Diga a ele que ajudei a segurar o ladrão que pegou a bolsa da mulher dele.
     Ela mudou sua fisionomia completamente.
     — Pois não senhor, irei anunciá-lo.

     João pela primeira vez em sua vida sentiu-se importante. Ele ia falar com um magnata. Parece que a sorte estava realmente do seu lado. Ele foi encaminhado para uma grande sala. Parecia uma sala de reuniões. No centro uma mesa imponente cercada de cadeiras confortáveis compunha um ambiente discreto mas muito requintado. João estava quase encolhido numa das cadeiras, quando um homem aparentando uns 40 anos de idade entrou na sala. Ele tinha uma expressão firme e simpática no rosto. Os cabelos muito alinhados exibiam um leve grisalho. Seus olhos castanhos destacavam-se no seu rosto muito branco. Ele aproximou-se com um sorriso aberto e lhe estendeu a mão dizendo:

     — Então foi o Senhor que ajudou minha mulher ontem.
     — Eu não fiz nada.
     — Meu amigo, você fez muito mais do que pensa ter feito. Minha mulher carregava coisas muito importantes naquela bolsa que o senhor ajudou a recuperar. Muito mais que batom e perfume.
     — Que bom então que ajudei.
     — Bem, agora no que eu poderei lhe ajudar?
     — Sei que pode ser pedir demais, mas eu estou desempregado aqui em São Paulo a vários meses.
     — Um emprego?
     — Sim.
     — Bem, você esta realmente com muita sorte. Um dos meus seguranças, homem de confiança, fez uma viagem que promete ser muito longa. Talvez não volte mais. O cargo lhe interessa?
     — Se interessa? Claro que sim. Posso começar ainda hoje.
     — De forma alguma. Primeiro você terá um treinamento completo. Sabe mexer com uma arma?
     — Não senhor.
     — Pois bem, terá que aprender.
 
     Ele pegou o telefone e conversou por alguns minutos com alguém dando várias instruções, quando desligou, olhou para João e disse:
     — Tudo certo. Pode passar no departamento pessoal que já estarão te  esperando.
     — Nem sei como lhe agradecer.
     — Estamos quites agora, apenas isso. Gostei de você e espero que eu não me arrependa de ajudá-lo.
 

                      CAPITULO 3
 

     João entrou num curso de treinamento intensivo para seguranças. Teve aulas de tiro, luta de rua e até de português. O curso iniciava-se às 7:00 da manhã e se estendia até às 6:00 da tarde. Ele recebeu dinheiro adiantado suficiente para comprar roupas novas e alugar um quarto muito bom. Era como se uma mão poderosa o estivesse ajudando. João sempre fora inteligente. Assimilava com grande facilidade tudo que lhe ensinavam.

     Depois de um mês de treinamento, ele estava apto finalmente para exercer a função. Ganhou dois ternos impecáveis e várias camisas. Seu salário era muito mais do que sonhara ganhar. Era respeitado e tratado bem, o que lhe fazia sentir-se muito feliz.

     João seguia Mário Alcântara de perto junto com mais três seguranças. Era discreto e observador, só falando quando era perguntado. Mário de Alcântara tinha uma vida um tanto misteriosa aos olhos de João. Durante o dia tinha uma vida glamurosa, freqüentava ótimos restaurantes e lugares requintados, mas durante a noite, visitava lugares sujos e decadentes. Cabarés, boates e cassinos. João Sabia que aquilo não cheirava bem, mas não questionava de maneira alguma, afinal aquele emprego era a melhor coisa que podia lhe ter acontecido.

     Jorge era o grande homem de confiança de Mário. Era o único que andava no mesmo carro e sempre entrava nas reuniões com Mário. Ele era calado e  carrancudo. Não tinha de forma alguma altura para segurança, mas ele tinha força até no olhar. Era uma força muito mais poderosa do que a que provinha de músculos. As histórias que contavam sobre ele eram de arrepiar. Jorge era temido e respeitado por todos os inimigos de Mário.

     Certa noite depois de uma visita a um cassino, eles preparavam-se para entrar no carro quando foram surpreendidos numa emboscada. Jorge  precipitou-se sobre Mário e antes de caírem no chão foi acertado em cheio com um tiro de fuzil nas costas. João procurou um lugar seguro e mirou no rapaz que ativara. Disparou um só tiro. O rapaz que não devia ter mais de 18 anos, caiu estatelando-se no chão. Os tiros cessaram. João imediatamente correu para socorrer Mário. Outro segurança também havia sido atingido. O corpo de Jorge já sem vida servira de escudo para Mário, que ordenou:
     — Leve o corpo dele para o carro e vamos sair daqui. João venha no carro comigo.
     Eles pegaram o segurança ferido e o corpo de Jorge e saíram imediatamente dali antes que a policia fosse chamada. Durante o caminho Mário estava quieto e pálido. Seu melhor homem agora estava morto. Quem seria agora seu homem de confiança? A pouco tempo tivera que eliminar um de seus melhores homens por descobrir uma traição. Agora estava mais sozinho que nunca.

     Mário de Alcântara não nascera rico. Seus pais moravam numa pequena casa no subúrbio de São Paulo. Com muito custo estudou até forma-se engenheiro. Mas mesmo formado, a vida não lhe sorrira até ele mesmo tomar as rédeas de seu destino. Começou como traficante de esquina e aos poucos já tinha uma pequena legião de meninos viciados que faziam a ponte. Conheceu Jorge nesta época. Ele cuidava de todos os entraves do caminho de Mário. Com o tempo e o dinheiro entrando Mário montou uma pequena construtora. Arrumou muita gente para ajudá-lo. Foi delimitando território e crescendo. Mário era um ótimo engenheiro e administrador. Seus negócios fluíram rapidamente. Apesar da proibição de cassinos no Brasil, ele fez de lugares aparentemente residenciais verdadeiras casas de jogos. Tudo contando com descrição e colaboração de alguns policiais. Mário montou um verdadeiro império do crime. Mas sua fama perante a sociedade continuava intocada. Agora depois de anos de muita lealdade,  perdia Jorge que era muito mais que um homem de confiança, era seu amigo  também. Amigo que morrera por ele.

     Muitas dúvidas flutuavam pela sua cabeça. Ele olhou para João e perguntou:
     — O que você acha do que aconteceu hoje?
     — Ainda não sei. Foi tudo muito rápido. Vacilamos em subjugar nossos inimigos.
     — Você considera meus inimigos seus também?
     - Tenho um voto de lealdade ao senhor. Hoje matei um garoto. Mas o  engraçado é que não me sinto culpado por isso. A vida é assim mesmo. É matar ou morrer.
     — Você se saiu muito bem hoje. Foi esperto e não se apavorou. Até parecia ter muita experiência.
     — Podemos melhorar a segurança.
     — Podemos?
     — Na verdade nós estávamos atentos, mas não tínhamos nenhuma estratégia. Ficamos totalmente a mercê deles. Poderíamos todos termos morrido.
     — Se você fosse responsável pela organização de minha segurança, o que você faria?
     — Não basta apenas termos seguranças. Precisamos de um apoio geral.  Olheiros na verdade. Qualquer menino poderia nos ter avisado sobre um   movimento estranho. Isso não sairia caro mas garantiria nossa segurança.   É preciso um grande esquema. Nossa área será nossa área e de mais ninguém.
     Mário estava fascinado com o que ouvia. João falava com veemência e com segurança.
     — Você esta dizendo que Jorge não era uma pessoa capaz?
     — Não disse isso, apenas respondi a uma pergunta.
     — Muito bem, vou lhe dar um voto de confiança e mais uma vez quero que você não me decepcione.
     — Do que o senhor esta falando?
    — Você vai ser meu homem de confiança daqui em diante.
    Mário admirou-se, mas aceitou o desafio.
     — Garanto que não vou decepcioná-lo.
 
     A partir deste dia, a vida de João sofreu uma grande transformação. Mudou-se do modesto hotel onde estava hospedado para um ótimo apartamento. Tudo mudou. João agora participava de todas as reuniões e ficou a par de todos os negócios ilícitos de Mário. Tudo lhe era agradável. Em outra época talvez ele mesmo se condenasse. Mas agora aquele era seu mundo e ele estava mergulhado nele até o pescoço.
 
     Após algum tempo, Mário começou a lhe delegar poderes. João fazia negociações, abria novos pontos e não media conseqüências para que isso acontecesse. Não matava ninguém, mas só com uma ordem sua a condenação estava assinada. O Império de Mário abria novas fronteiras e muitos novos inimigos.

     Certa noite João pegou alguns capangas e foram todos a um lugar que João ainda tinha bem vivo na memória.  O bar estava cheio de gente. Eles esperaram o movimento acabar e Ramone sair com dois homens. Ao sinal de João os homens foram baleados certeiramente só restando Ramone. Um capanga de João pegou Ramone que estava caído no chão e o encapuzou. Ele foi jogado no porta malas de um dos carros e levado até um sitio de Mário, utilizado sempre para acerto de contas. Ramone ficou dois dias encarcerado apenas tomando água. Só depois deste tempo João  ordenou para que o trouxessem a sua presença. Quando Ramone chegou, estava amarrado pelas mãos e meio abatido. Quando viu João perguntou:

     — O que você quer de mim?
     — Não se lembra de mim Ramone?
     Ele olhou com atenção para João e o reconheceu:
     — Você é o negro imundo que eu enxotei do meu bar faz algum tempo.
 
     Ramone imediatamente levou um soco no estômago de um dos capangas de João e caiu no chão se contorcendo de dor.
     — Acho que você não está em condições de me fazer ofensas. Disse João
     — Seu desgraçado quer se vingar não é mesmo?
     — As pessoas se enganam umas com as outras. Uma vez você disse que eu apenas ia sentir o cheiro das coisas e que nunca eu realmente ia  experimentá-las. Pois você errou!
     Um dos homens de João fez Ramone sentar-se a uma mesa. Logo um homem entrou na sala trazendo um prato de comida que desprendia um cheiro delicioso. O prato foi colocado bem a frente de Ramone. Ele sentiu seu estômago gritar de dor num oco profundo. Tentou comer a comida mas o prato foi lançado no chão.
     — Você agora sabe o que é sentir fome Ramone? Disse João gritando.
     — Seu Negro!
     — Acabem com ele devagar! Ordenou João saindo da sala.

     João ouviu os gritos de Ramone e um leve sorriso se desenhou em seu rosto.
 
     A vida seguia seu rumo normal até João se apaixonar por Carolina, uma das muitas secretárias de Mário. Era uma bela mulata de corpo miúdo mas muito torneado. Tinha o cabelo longo e cacheado, olhos amendoados e uma boca grande e carnuda. João se encantou por ela no mesmo momento em que a viu. Mas ela não lhe dera bola, muito pelo contrário, era fria e distante com ele. Quando ele investia sobre ela a resposta era sempre evasiva.
     Certa tarde quando Carolina deixava o edifício um homem a abordou e a segurou por trás.

     — Me passe essa bolsa, gostosa.
     Ela se debatia nas mãos dele quando João chegou e o puxou de cima dela acertando-lhe um soco no queixo. O homem caiu desacordado no chão.
     — Você está bem? Perguntou João com um ar preocupado.
     — Estou, obrigada.
     — Me deixe levá-la em casa?
     — Não precisa.
     — Por favor eu insisto.
     Ela concordou com a cabeça e os dois saíram no carro de João. O homem que estava no chão levantou-se e ao ver o carro distanciar-se deu um sorriso malicioso dizendo para si mesmo:
     — Esse é meu chefe!

     Durante o caminho até a casa de Carolina João resolveu investir.
     — Eu sou tão abominável assim?
     — Claro que não.
     — Mas por que você nunca quis sair comigo?
     — Não sei, acho que você não é para mim.
     — E existe isso?
     — Claro que existe. O senhor é o braço direito do dono da empresa. E eu uma simples funcionária. O que alguém como o senhor podia querer comigo?
     — Aí é que você se engana. Eu passei por coisas na minha vida que você não acreditaria. Vim de baixo e comi o pão que o Diabo amassou para chegar até aqui.
     — Duvido.
     João incentivado, começou a contar toda sua trajetória desde a chegada a São Paulo. Só não revelou exatamente o que ele era hoje. Carolina estava admirada.
     — Nossa, eu não queria estar na sua pele.
     — Mas eu cheguei lá, e não tenho qualquer preconceito com as pessoas que vem de baixo.
     A partir daquele dia, Carolina resolveu abrir suas defesas e os dois começaram a sair juntos.
 
     Carolina era uma moça muito simples. Desde menina conviveu com o drama de sua mãe, seu pai era alcoólatra e não podia ser contrariado. Quando bebia tornava-se violento e espancava quem passasse pelo seu caminho. Carolina e sua mãe apanharam muitas vezes. E um certo tipo de revolta cresceu dentro de seu ser. Ela aos 15 anos resolveu sair de casa.

     — Vamos embora mãe. Isso não é vida, a gente se vira por ai.
     — Filha eu tenho tanto medo. Nunca fiz nada na minha vida. Pelo menos eu tenho minha casa, minhas coisas e estou segura.
     — Você chama isso de segurança? Viver com medo, podendo apanhar a qualquer momento?
     Ela começou a chorar desesperada.
     — Eu não vou filha, não me peça isso.
     — Muito bem mãe, mas eu vou. Te prometo que quando eu estiver numa casa boa e num bom emprego, garanto para a senhora, venho lhe buscar.
     Carolina saiu de casa e arrumou emprego de recepcionista num escritório de contabilidade. Dias difíceis foram aqueles, ela trabalhava durante o dia e estudava a noite. O pouco dinheiro que ganhava mal dava para ela pagar o quarto da pensão e seus estudos. Os anos passaram e Carolina concluiu o Segundo Grau. Num golpe de sorte, concorrendo com mais de 50 candidatas, conseguiu emprego na Businesses Engenharia. Começou a ganhar mais e até pôde alugar um apartamento de um quarto. Logo poderia trazer sua mãe para morar junto com ela. Agora com o envolvimento com João, tinha medo de que as coisas não dessem certo e ela voltasse ao ponto de partida.

     João era gentil, alegre e agradável. Fazia Carolina rir, coisa que ela raramente fazia antes de conhecê-lo. Os dois rodavam por danceterias, restaurantes e parques. Carolina sentia-se amada e segura com ele e diante deste sentimento resolveu se entregar àquela paixão sem restrições nem limites.

     Depois de jantarem fora João levou Carolina até o apartamento dela.
     — Nos vemos amanhã? Disse ele.
     — E porque esperar até amanhã?
     Ele a olhou nos olhos e sentiu algo diferente naquele olhar.
     — Você quer que eu entre ?
     — Quero.

     O apartamento de Carolina era pequeno, mas muito aconchegante. Ela já esperava por ele aquela noite e preparou um clima muito agradável com flores e luz de velas.

     — Carolina eu esperei tanto por esse momento.
     — Eu também.

     Eles abraçaram-se e beijaram-se com muita paixão. Ela abriu um a um cada botão da camisa de João e a cada botão depositava um beijo em seu peito. Ele a segurou firme em seus braços e a levou para o quarto. Tirou lentamente a roupa dela e admirava cada parte de seu corpo.
 
     — Sua pele é macia e quente.

     Fizeram amor com doçura e entrega de almas. Era como se suas almas  bailassem dentro de seus corpos. Depois daquela noite suas vidas não seriam mais as mesmas.
 
 

                CAPITULO 4
 

     João recebeu um recado urgente de Mário e chegou rapidamente ao local combinado. Quando viu Mário pôde ver que algo estava muito errado. Ele nem esperou João sentar-se para falar.
     — Perdemos um cassino muito importante ontem. A rua Lindóia foi toda invadida por policiais. Foi uma operação surpresa, nossos contatos dentro da policia falharam. O pior de tudo é que o Fonseca está querendo dar com a língua nos dentes e me envolver nesta história toda.
     — Onde está ele?
     — Está preso, mas sairá sob pagamento de fiança ainda esta noite.
     — E o Antônio?
     — Este tem o rabo preso, não vai falar nada. Mas o Fonseca está apavorado.
     — Mas alguém sabe de seu envolvimento?
     — Não sei.
     — O importante é manter a calma, precisamos propor algo muito grande para Fonseca, assim ele assumirá tudo sozinho. Se ele não topar, acho que não teremos outra alternativa.
     — Traga ele aqui.

     Assim que Fonseca foi libertado foi levado a presença de Mário que o esperava ansioso.
     — Como você esta? Perguntou Mário.
     — Péssimo.
     — Você precisa manter a calma agora. Não é hora de desespero.
     — Você fala assim porque não é o seu pescoço.
     — Nossos advogados são bons e garanto a você que tudo ficará bem.
     — Não sei.
     — Sua família estará muito bem amparada, eu prometo
     — Vamos ver qual será o andamento das coisas.
     Mário irritado aumentou o tom da voz:
     — Não quero um vamos ver, quero uma certeza.
     — Essa certeza eu não vou lhe dar. É muito fácil ter um testa de ferro para segurar as pontas quando o negócio fede. Mas e a minha vida? Não vou mofar na prisão por seus crimes.
     — Você está me desafiando.
     — Apenas estou mostrando quem da as cartas agora.
     — Saia daqui e faça o que bem entender. Disse Mário com uma voz gelada.
 
     Quando Fonseca saiu, Mário disse a João:
     — Quero que pareça um acidente.

     Tudo foi muito rápido. Apenas um telefonema, e um carro roubado foi providenciado. Um homem devidamente disfarçado encostou a uma quadra da casa de Fonseca. A rua estava movimentada, o que seria um ponto a favor. Quando o Táxi de Fonseca encostou e ele desceu, o carro dirigido em alta velocidade e de maneira irregular invadiu a calçada e acertou em cheio Fonseca. Seu corpo bateu com tanta violência no carro que o parabrisa quebrou. O carro saiu do  local rapidamente. O corpo de Fonseca ensangüentado deu alguns pinotes até finamente jazer inerte.

     Tudo aquilo só atraiu mais atenção para o caso. João e seus homens ao menor sinal de perigo iniciavam a queima de arquivo. Muita gente morreu de forma "acidental", para evitar maiores problemas.

     João estava cansado. Tudo aquilo lhe estava fazendo muito mal. Não  agüentava mais assinar sentenças de morte a pessoas inocentes. Quando  chegava em casa e deitava-se com Carolina, sentia-se impuro ao seu lado.   Não dormia bem, pois pesadelos horrendos rondavam suas noites. Tudo isso, e o desejo de casar com Carolina, ter filhos e viver uma vida normal e honesta o fez tomar uma decisão: "Vou apenas deixar esta tempestade e pedir férias sem vencimento para Mário, ele irá me entender. Pensou Mário.

     Alguns meses passaram e a poeira vermelha baixou. João se ensaiava para abordar o assunto com Mário até um dia em que tomou coragem e falou:
     — Sabe Mário eu acho que o considero muito mais que um Patrão, o considero um verdadeiro amigo.
     — Eu também João, lhe considero muito amigo.
     — Eu estou pensado em me casar com a Carolina.
     — Que boa noticia! Temos que comemorar.
     — É por isso que eu quero largar tudo.
     O brilho dos olhos de Mário sumiu. Uma expressão sombria formou-se em seu rosto. Ele disse calmamente:
     — Uma vez dentro João, não é mas possível sair.
     — Eu não lhe quero mal, mas eu não suporto a idéia de meus filhos terem um pai como eu.
     — João não posso acreditar que você irá me trair desta maneira.
     — Nunca o trairia.
     — Isso para mim é uma grande traição.
     — Não quero mais fazer parte disso.
     — Muito bem João, você fez sua escolha. Uma errada escolha por sinal. Mas não posso fazer nada.
     — Eu lhe serei eternamente grato.

     Quando João saiu da sala e a porta se fechou, Mário triste e desconsolado repetia em voz baixa:

     — É uma pena João, você era o meu melhor homem.
 
 

                      CAPITULO FINAL
 

     João caminhava pela rua com uma sensação de leveza na alma. Se casaria com Carolina e teriam muitos filhos. Neste tempo com Mário conseguira juntar um bom dinheiro. Abriria um bom negócio ....
    João pensava nestas coisas quando foi duramente golpeado por trás. Três homens o seguravam. Recebeu um soco com tanta violência, que sentiu fragmentos de seus dentes espatifarem-se pelo ar. Uma bola de sangue e ossos se formou em sua boca sufocando-o. Seu corpo escorregou e caiu no chão quase sem sentidos. Pontapés e chutes vindos de todos os lados quebravam-lhe costelas. As palavras da Irmã Ana ecoaram em sua mente: Seja um homem Honesto e trabalhador. Ele não conseguiu cumprir a promessa. Tentou ainda num último suspiro proteger sua cabeça com os braços, mas alguém a chutou tão forte que tudo se apagou para sempre. 

Cleide Souza Lemos
  

 

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