Viagem
 
       Revisitar lugares e entrelaçar as lembranças com as impressões do agora pode ser um exercício interessante. Fugir dos repetitivos dias a que a vida nos prende, mesmo que tenham muito de alegria, traz uma sensação de amplidão  — milhares de possibilidades ao alcance dos dedos. Falo, especialmente, dessa descompromissada observação de paisagens fora do cotidiano, conhecidas ou não, de ter a noção de que há mais coisas fora da estreita experiência diária, e de que há muito mais que nossa mente acanhada pensa poder usufruir.

        Num domingo nublado, vendo a paisagem serrana do Paraná, ao longo da ampla e deserta estrada, quase é possível crer que o mundo é bom; ou melhor, dá para desprezar de todo essa estúpida dicotomia cristã de bem e mal. As coisas assim estão, entre estes pólos imaginários da tola moral humana, e dispensam nossa opinião fútil, trazendo, de qualquer sorte, alegria aos olhos e sensações mais fundas, que em geral não se tem a  ciência de assimilar ou entender; algo próximo de paz, a despeito de todo o resto.

       Billie Holliday e Nina Simone marcam esse misto de intervalo e recomeço em que esta viagem se constitui.

       Depois de intermináveis horas dentro de ônibus nem tão confortáveis, estou passando ao largo de uma cidade da qual desconheço o nome, vejo o relevo irregular e o aspecto tímido dos subúrbios; avisto ao longe, na parte mais alta, uma frondosa igreja. Digo frondosa porque ela parece  espalhar-se sobre a parte mais baixa da cidade como os galhos de uma velha figueira. Pergunto o nome do lugar e me surpreendo por minha ignorância  — Ponta Grossa. Mas o nome não ajuda muito a  localizar-me no planeta; tenho péssimas noções de geografia; mas de qualquer forma, é um lugar do qual já ouvi falar.

       Hoje pela manhã, quando desembarquei em Curitiba, ainda atônita pela noite mal dormida, resolvi caminhar na cidade que antes era meu sonho de morada. Da última vez em que lá estive, ao chegar, andando pelo  calçadão e fazendo hora até encontrar um amigo virtual que tempos antes causara-me estremecimentos eróticos, fui abordada por um pseudo-punk com discurso mesclado de anarquia desinformada e democracia flagelada. Ele oferecia-me um fanzine e eu simpatizei com sua frustrada tentativa de coerência e ele, talvez assimilando em algum não sei quê do meu estilo e/ou fenótipo, minhas opções sexuais, contou-me dos trabalhos do seu grupo junto a grupos GLS da capital paranaense. Comprei seu zine e voltamos cada um a seu rumo incerto. E nesse domingo turvo, na mesma rua, quase um ano após, uma velha senhora, de ar benevolente e coração lavado de alegria por sua louvável atitude, tentava convencer-me das nossas obrigações para com o deus que ela usa como meio de  sobrevivência emocional. Conclui que uma discussão metafísica ou filosófica a respeito da natureza das necessidades do divino que habitam o ser humano não seria proveitosa para nenhuma das partes. Então, deixei-a falar e educadamente manifestei meu desinteresse por suas publicações, e sorri ao lembrar do rapaz com seu fanzine — tão mais interessante.

       Caminhei exaustivamente pelo centro da cidade, comprei pilhas para o diskman, postais para mandar à ela, e, no meio disso tudo, conversamos longamente por telefone.

       A tranqüilidade que sobreveio depois de ouvi-la inspirou-me para prosseguir na viagem um tanto desordenada e mal programada que me levara até Curitiba, mas que, a exemplo da vida toda, resolve-se sem maiores dramas. O excesso de programação e ordem talvez seja coisa para orientais.

***

       À medida que o ônibus avançava pela cidade da igreja com ares de figueira, rumando ao norte do estado, pude perceber elementos curitibanos na arquitetura dos prédios públicos, e observei também que a igreja não estava tão longe quanto pensava, nem era tão impressionante como imaginara a princípio.

       Voltando à vasta estrada, sobre a qual o ônibus desliza veloz, margeado de campos e florestas, livre dos sinais mais gritantes da dita civilização, recupero a boa sensação de existir, a confiança na existência de um ser amado que pensa em nossos vínculos, atos e palavras; a expectativa de dias como esse, soltos no viver, como pontos de uvas passas no sorvete de creme.

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       E após uma semana repleta de conceituações, discussões e interações  interessantes; pouco tempo livre e um misto de saudade e vontade de adiar a volta, vivo o regresso. Voltar ao mesmo de antes, se por um lado soa desajustado depois de tantas realidades diferentes que experimentei, por  outro lado assusta, pelas mudanças — tanto as já esperadas como as que não posso prever — que terei de enfrentar.

       Neste sábado de deslocamentos rodoviários extensos, ao som de Carlinhos Brown, capto cenas que a lente de Sebastião Salgado registraria melhor que minhas palavras, mas que impeliram-me a catar as folhas amarelas e a caneta no fundo da pasta.

       Num lugar absolutamente brasileiro, cidade de interior, pequena, com pretensões de urbanização, sujeira e tristeza nas fachadas desgastadas de construções pouco impressionantes duas mulheres despediam-se à porta do ônibus e eu observava a cena isolada pela camada acústica que me acompanhava. Pareciam mãe e filha, ambas velhas, provavelmente muito menos do que aparentavam, mas para mim soaram como sogra e nora. A mais velha tinha os cabelos completamente brancos, já bastante ralos e muito longos, presos por uma metódica trança que acabava ao meio das costas numa espessura inacreditavelmente minúscula. A menos envelhecida tinha cabelos ainda escuros e estava despedindo-se daquela que partiria com o ônibus. O clima estabelecido ao redor delas continha uma tristeza que não provinha da separação. Era a gastura das vidas daquelas duas mulheres que, aparentemente, muito poucas alegrias desfrutaram em suas lineares existências. Elas me pareceram o símbolo perfeito das mulheres conservadoras, de família, destinadas ao casamento e a vidas confinadas ao limite do universo familiar. Esse cruel universo, tão rico em violências sutis e cobranças mútuas que entravam o crescer de seus membros, em prol de uma união estagnante.

       Essas mulheres estão tão distantes como mergulhadas dentro de mim, por isso suas imagens gravaram-se tão fortemente em minha memória. Levei incontáveis dias até transpor em palavras aquela cena que minhas retinas apreenderam e cada vez que releio o que escrevi, me vem à mente aquela trança de cabelos brancos, acabando-se esquálida, como uma vida indiferente.

***

       Pensando nisso acabei por escolher Chico Buarque para traduzir em tantas canções, muito daquilo que não tenho competência de sentir claramente.

       "Todo dia ela diz que é pra eu me cuidar, e essas coisas que diz toda mulher, diz que está me esperando pro janta; depois penso na vida pra levar, e me calo;"

       As músicas sempre têm a propriedade dessas cenas inesquecíveis que explicam aquilo que nem mesmo suspeitamos o que seja, porque não é a inteligência racional que capta seu significado. E no entanto, são esses pensamentos atropelados, arremedos de raciocínio e sentir que acabam por buscar frases esparsas pensadas em bancos de rodoviária observando o ridículo e o supremo das gentes que se movem numa vida de miséria e somatizam a ausência de suas verdades em discursos evangélicos sem sentido.

       Afirmo não querer verdades alheias. Ainda que isto soe como filosofia adolescente e gasta, sinto isso como uma realidade palpável nas minhas noções de inadequação aos conceitos da vida comum das pessoas que comem arroz com insípidos feijões, e no domingo se prostram frente à TV reclamando daquilo com que se deliciam.

       Entretanto, minha própria verdade é desarticulada, como as falhas percepções que se tem dos fatos. 

Maurem Kayna

 

 

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