Polar

O velho procurava desvirar a geladeira. Sozinho, como se tentasse desencalhar uma baleia, ele puxa o resto da estrutura metálica de um lado para o outro. Crostas de ferrugem voam e o velho parece ficar chateado com isso. Finalmente, depois de algum esforço, consegue chegar ao ponto certo, podendo abrir a porta.

Sabe que não encontrará comida ali dentro da geladeira velha, objeto inútil, jogado no lixo. Mas ainda sente que um dia aquela caixa metálica guardou parte da feira, mantimentos, víveres. O que resta agora é plástico ressecado, nacos de fibra de vidro, o enchimento da geladeira, que mais lembram cabelos de bonecas. Também encontra ferro velho e borrachas. Ah! Sim, os frisos de alumínio esboçam um brilho que não passa de um opaco pouco luminoso. O que poderá fazer com aquela carcaça velha? Retira os frisos de alumínio, metal valioso para os catadores. O casco de ferro não poderá ser reaproveitado ou vendido.

O calor faz o velho pensar numa cerveja. Ilusão encontrar uma garrafa ali, muito menos gelada. Aborrecido, esbraveja palavras sem sentido, que nem mesmo ele entende. Abre a barguilha da calça encardida. Solenemente, na porta da geladeira começa a urinar. O líquido amarelado junta-se com a ferrugem e da união das duas substâncias nasce uma mais escura.

Sensação passageira de alívio. Uma olhada para os lados: não tem ninguém. Coloca os frisos de alumínio no saco em que guarda as coisas que vai catando pelas ruas.

Fecha a tampa da geladeira. Diz novamente coisas sem sentido. Dá um chute na baleia morta. 

Carlos Azevedo

 

 

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