Retrato de antes da luta Éramos quatro irmãos, Pedro, Benedito, eu e Mairovan. Pretendíamos a harmonia e não nos ocupávamos de ontem ou de antigüidades. Desde sempre fomos assim, desconhecíamos tudo de pai e mãe, não sabíamos se havia fraternidade de sangue ou  se apenas um afeto desmedido nos unia. Tínhamos a casa, isso era suficiente. Uma casa pródiga, vergastada de anos mas firme e dura como o dia. A região era boa, sem chuvas desnecessárias e nem a seca se instalava nobre e permanente sobre nós. O terreno em volta era fértil, terra rara, quase intocada. Ousávamos pouco e tínhamos tudo, abastança, propriedade. Nos víamos satisfeitos, dentro desse nosso espaço que avançava muito em todas as direções, tínhamos casa e muito mais. À noite nos reuníamos, o serviço da terra terminado e limpas as ferramentas, o arado, os bois dentro do curral, ordem e estrutura perfeita, dominávamos as redes na varanda e sorrindo simples, falando das coisas desse dia, reconstruindo planos e refazendo futuras direções, assim fazíamos o tempo nessas noites. Adormecíamos. Sonhávamos sonhos iguais, coisas pequenas. Os mesmos laços, a mesma vida nos unia. Desejávamos a mesma mulher, distante o suficiente para que nunca nos surpreendêssemos percorrendo juntos o caminho. Falávamos dessa mulher como se fossem quatro diferentes, e não a única que nos oferecia generosa o gozo. Tínhamos paz e nos fizemos pacíficos em excesso. E por isso tudo o que ocorreu depois. É vital que a garra esteja sempre pronta, a lâmina do punhal limpa e afiada, a bala dentro do tambor, e que nunca nunca a luta se desfaça por inteiro da víscera do homem, porque então seremos subjugados, invadidos, dizimados. Forças que ainda não sei permitem atos como esse. Se há vencidos é porque em algum lugar se escondem os vencedores. E esses não têm rosto, ou se o têm, tantos outros se sobrepõem a ele em defesa de existência, que nunca nunca estamos próximos o suficiente para vingar desonras e fracassos desse jugo ácido e afrontoso. E aconteceu como ouvi contar em tantas estórias mal ouvidas: Éramos quatro em nossa vida. Cinco se contamos a mulher. E então ele chegou. Não de forma especial, nem ávido ou inadaptado. Lembrava as gentes do lugar, um pouco mais alto, apenas isso. Construiu sua casa em terras de ninguém, beira de barranco, pensamos que era imprudência levantar alicerces nesse ermo. No entanto descobrimos depois que o homem conhecia engenharia rara, escudou o barranco, gramou, fez um pequeno estanque, modificou o caminho natural do rio e transformou o barranco em colina, sua casa em fortificação. Acompanhamos tudo sem afoiteza, tranqüilos. Que faça sua casa, dizíamos, pois que temos a nossa e sabemos da importância de ter muro e teto nos defendendo do vento e das águas do mundo. A calmaria se desfez quando Pedro, desinsofrido e azoado, nos anunciou que o homem não respeitara a cerca. A marcação era exata, visível. Não podia ser descuido porque é normal e comum cuidar de muros e limites de outros. Não pode ser nada, eu disse, o homem é bom. Desconhece os hábitos da região, apenas isso. Benedito: Melhor corrigir o quanto antes. Mairovan: Temos tempo, foi quase nada, por que incomodar o homem por tão pouco? Silenciamos. Descobrimos juntos nessa noite que o homem nos aviltava e tínhamos medo dele. A memória da luta esquecida em nós, éramos quatro cordeiros preocupados com uma improvável e longínqua tosquia. Escondemos esse sentir escuso envergonhados. Também pela primeira vez não nos dizíamos tudo. Diminuímos comentários a respeito daquele homem, desviamos o olho da casa, esquecemos a cerca. E esse esforço, oriundo de certezas que queríamos desconhecer, nos separou desapercebidamente da fraternidade até então instituída. Temíamos. Isso nos fazia ácidos. Alguns meses passaram, quase acreditamos que o tempo solucionara brando os desafetos. E na aridez de depois do meio-dia Benedito nos disse: Mais pessoas ocupam a casa, a maioria homens fortes, preparados, vinte e cinco, contei, quatro mulheres. Mairovan: Vão ter muito trabalho essas mulheres - e tentou sorrir. O cotidiano de dentro da casa não era de nosso conhecimento, os muros impediam qualquer comentário. Sabíamos apenas de tanto em tanto que mais pessoas se juntavam ao lugar, cerca do lado leste contrária à nossa cada vez mais e mais se afastava do seu limite original. Não é nossa terra, eu disse tentando calmaria. E silencioso ouvi e compreendi Pedro dizendo: Tampouco é deles. Com tudo isso a visita à mulher se fazia em ausências cada vez maiores. É nossa culpa, disse mais tarde Benedito, que ela tenha vendido a casa e se juntado à gente nova. Lhe dávamos pouco, insegurança. E plantamos e semeamos naquela tarde como há muito não fazíamos. O rio estreito mas suficiente que avançava por nossas terras continuou deslizando aderente e amigo ao lugar antigo até que um dia um de nós, não sei quem, não eu, descobriu que a água modificara seu trajeto conhecido. O leito estava seco, ausente da mais mínima umidade. Percorremos inversos o caminho das águas. Andamos pouco, nos aproximamos tímidos da fronteira que se impunha nesse novo tempo. Um açude enorme, adequado, pedra e concreto unindo-se inabaláveis, surgiu numa curva, conquistando e subjugando o líquido e desviando-o definitivo para outro lugar. Isso não pode ser, um de nós disse. Morreremos se nada se fizer, sussurrou Benedito. Um homem alto e claro como o milho novo apareceu acima de nós: O que querem aqui? Pedro: O que é nosso, a água que sempre tivemos. O homem: Não vão ter mais, a mina está em nossas terras. Pedro: Não é verdade, a cerca ia mais além, vocês a modificaram. O homem: Teimosia se vence com a força - e tirando um apito do bolso da camisa assoprou bem alto. Não esperamos muito, em pouquíssimo tempo dúzias de homens armados nos rodearam. Vão agora enquanto a vida permite o movimento, nos disse o primeiro, mastigando vitória e uma haste de capim. Saímos mortos e desorganizados, a alma pelo chão. Contundidos. Dois dias passamos em silêncio lembrando o começo de tudo, pela primeira vez memoriados e aprendendo. Um poço talvez, eu disse, desistindo de uma guerra em que sem dúvida seríamos vencidos. Dois dias depois tínhamos o poço. Fizemos outros, para que a água voltasse abundante por toda a superfície. Moinhos de vento, disse Benedito, também puxam a água. Não tivemos tempo de construir o primeiro. Acordamos de noite com sons e golpes invasores percorrendo a varanda. Fomos ver. Uma escolta policial mais quinze homens da casa grande. Um policial se adiantou com um papel na mão: Vocês têm doze horas para desocupar a casa, do contrário executarei ordem de prisão. Mairovan recebeu um tiro no braço, porque gritou bem alto que a casa era nossa e que a nós é que roubavam a água. E tudo acontecendo sinistroso, rápido como até então nada tinha sido. Me lembro que pensei o que sempre pensamos quando topamos de frente com a tragédia, que não era verdade, temos sonhos assim vezenquando. Nos acusaram de invadir propriedade alheia, que ocupáramos anos uma casa que não nos pertencia. Os homens armados sorriam de esguelha, enquanto a mão enluvada acenava violenta papéis perto do meu rosto. Fomos expulsos nessa mesma noite, quase amanhecendo o dia. Pedro estava morto, porque se recusou absoluto a abandonar a casa. Mairovan ferido, eu e Benedito levamos às costas tudo o que restou de nossas vidas. Enterramos o irmão. Procuramos autoridades e juizes. Nos escorraçaram como se faz com a morte. Também nos colocaram numa cela mínima. Conseguimos sair. Ainda estávamos os três, e por isso surgiram em nós novas possibilidades. Num descampado amputamos com a faca o braço de Mairovan que gangrenava e pendia de forma inquietante. Não perdemos nada, disse Benedito demonstrando pela primeira vez um novo se fazendo por dentro, Não perdemos nada quando é o braço esquerdo que se vai. Fizemos fogo e queimamos o corte. Esperamos os dias necessários para o restabelecimento do irmão. Não demorou muito. Partimos os três. Perdêramos muito tempo, agora sabíamos. Enfraquecidos de tudo como estávamos não seria fácil. O invasor reinava protegido sobre o nosso. Sabíamos disso. E iniciamos sem medo, juntos como no princípio, dissimulados, soturnos, os preparativos para a luta. Vivos num rancor legítimo. Virtuosos.
J. L. Mora Fuentes

Do livro: "Fábula de um rumo", Ed. Moderna, 1980, SP
 
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