A carne é sagrada, o espírito é
que é precariamente humano.
Paulo Hecker Filho
O prazer dela, não
tenho dúvida, era imenso. Mesmo sob o flagelo de um nervo cego arremetendo
contra os limites visíveis do esfíncter. Mesmo ocultando
um incômodo que era ardência às vezes, dor funda noutras
(como um soco no estômago, me explicou mais tarde, só que
atrás), e até náusea. O corpo da mulher propõe
o que não sustenta.
Propõe?
Evidente que não,
me dizia Gabriel. Evidente que não.
Nós propomos, discursava
ele, me dando aquela mijada moral, nós, homens, machos cobridores.
Nós não, ele se corrigia, tu, só tu, tarado, tu e
uma multidão de estupradores que pensa como tu e são incapazes
de amar.
Eu deixava pra lá,
não ia entrar naquele papo militante e limitante do Gabriel. Queria
só ver ele na cama com Bianca, podendo fazer de tudo, de tudo, até
pôr o gargalo de uma garrafa, primeiro na vagina, depois no ânus,
como eu fizera um mês depois, quando, enfim, o hímen fora
derrotado por nossa disposição assassina.
Bianca conheceu Gabriel
numa livraria, comigo a tiracolo. Apresentei-os e logo saí dali,
ela grudada em mim, saltando de cabeça na fantasia mais funda e
mais revolta, dizendo para mim mesmo, calma, é só um temor
que sublimas por uma via um tanto masoquista.
Entramos no apartamento
– o meu, ela morava com os pais – e em segundos estávamos, de pé
ainda, junto à porta de entrada, grudados e ansiosos e sedentos
e famintos e talvez assustados.
Assustados porque gozáramos
mais do que das vezes anteriores. Assustados porque ela gritou mais alto,
tão alto que pedi que calasse a boca. Assustados porque fui acometido
de súbita taquicardia, tal a excitação. Assustados
porque o nome de Gabriel surgiu enorme em meio ao engalfinhamento mal-começado
e foi penetrando aos poucos no nosso jogo até então secreto.
Assustados, um pouco, é verdade, mas assustados.
Voltamos a ver Gabriel quase
por acaso. Saíamos de um cinema onde Woody Allen – Setembro – fizera
Bianca desviar-se da tela e concentrar os olhos, as mãos e a boca
no meu pau. Meu amigo entrava para a próxima sessão, distante
como sempre. Não o chamei. Bianca foi a primeira a notá-lo.
“Olha lá, não
é o teu amigo?”
Atenta ela, hem? Dominei
o ciúme, era só uma porção pequena, capaz de,
administrada, transformar-se no que mais tarde iria me deixar sem forças.
Gabriel costumava freqüentar
aquela sala de cinema, habituais eram nossos encontros ali.
Depois do começo
de minha relação com Bianca, o sexo me dando o obstinado
abandono da alucinação (nem cinema, nem música, nem
livros, nem nada, só o cheiro de queijo mofado da sua bucetinha),
os encontros com Gabriel ficaram raros. Ele continuava seu caminho, seu
projeto, sem alterações. Eu é que mudara, eu é
que sumira, eu é que me consumia e ficara nos últimos tempos
quase impalpável.
Um dia encarei a fresta
que a vida, em constante luta e acordos com o tempo, mostrava, oferecia
e exigia. Eu e Bianca chegáramos ao esgotamento dos jogos puramente
físicos. Faltava um componente afetivo, e na falta dele um, digamos,
psicológico, uma provocação, um enredamento, uma infiltração.
Gabriel.
Nesse tempo todo eu chegara
a uma conclusão.
Embora Bianca fosse plenamente
capaz de observar outros homens, com interesse assumido, jamais o fez em
termos de comparação com meu desempenho e meu papel em sua
vida.
Gabriel. O nome dele embaralhava
minhas conclusões acerca de Bianca e seus sentimentos com relação
a mim. Continuaria a me amar depois de tê-lo comido? Gabriel era
puro, embora não inocente, uma receita perfeita para uma mulher.
Ainda mais uma mulher exigida ao máximo por um neurótico
agudo e, por isso mesmo, incansável.
A verdade era que minha
potência já não representava nenhum motivo de orgulho,
ao contrário. Ereção fácil, ejacular a toda
hora, imaginação febril. Bom, bom, mas e daí? Não
é o extremo oposto da impotência e, simultaneamente, seu espelho?
Era chegada a hora, custasse
o que custasse. E custou.
Talvez apenas para Bianca
o preço tenha sido modesto.
Constrangimento não
é uma sensação assim tão barata, ainda mais
um constrangimento daqueles. Gabriel era uma cabeça com mais de
dois dedos de testa, como costumava dizer um outro amigo nosso (meu e de
Gabriel), ou seja, de rara inteligência. E Bianca domesticara o espírito
desde a infância, contentando-se com o mínimo, aceitando as
histórias que o mundo contava, só para conseguir seu lugarzinho
garantido, lugarzinho que ela não teve até aos onze anos,
quando os pais, alcoólatras, deram-na a uma vizinha. Expunha seu
corpo com toda a vida que o movimentava, cruamente decidida. Mas a limpidez
de seu espírito a fazia uma espécie de criança armada,
ausente do poder que dispunha e, assim, incapaz de compartilhar conosco
algo que também desejávamos.
Esse era o constrangimento:
usar Bianca era lícito, sim, porque ela o consentia, porém,
a cada idéia que eu e Gabriel tivéssemos uma espécie
de estupro estaria sendo cometida contra ela. Despida de quase tudo, estava
reduzida a uma umidade primitiva que simplesmente se abria numa permissão
sem consciência.
Por isso gozava mais que
qualquer um de nós.
Bianca, porém, sabia calar como ninguém, até
demais. Era fácil evitar os mal-entendidos. Era fácil disfarçar
o constrangimento embrulhando-o na timidez.
Mais duro era o preço
que Gabriel tinha de pagar. Tenho certeza de que ele em nenhum momento
previra o desfecho daquele encontro. Nem que pressentira alguma intenção
no ar.
Nem eu pressentira nada, concluí, quando Bianca, minutos
antes de Gabriel chegar ao apartamento, entrou apressada vindo da firma
– combináramos uma sexta-feira –, dizendo vou tomar um banho rápido
e me trocar. Banho? Ela não fazia tanta questão assim. Trocar-se?
Ela sempre vinha e ficava e saía com a roupa do corpo. De fato,
eu não pressentira nada.
Não terminara o banho
ainda, demorado, e Gabriel chegou. Amaciei-o com um conhaque, quase 50
páginas de uma tese que eu estava escrevendo e confissões
acerca do absoluto caos do mundo, da fragilidade das relações,
da inconsistência da experiência afetiva, e da necessidade,
urgente, de o homem abrir brechas em sua vida.
Bianca, saindo do banheiro
com um vestido branco justo, de tecido quase transparente, aliciando com
o contraste de sua presença o humor quase existencialista de dois
machos apostando no fracasso, pôs um súbito e incalculável
movimento na sala. O tempo ficou espesso, exigia ação, e
cada olhar, cada gesto por mais despretensioso, o ritmo, por exemplo, levemente
alterado das respirações, tudo isso afinal que quase nunca
tem importância, adquiriu ali uma dimensão nova, insustentável.
Fui à cozinha. A
massa para a pizza já havia sido preparada por Bianca. Era preciso
fazer o molho. O processo não era difícil, é claro,
mas o molho é a pizza, o molho é tudo, e fazê-lo exigia
uma concentração, essa sim, difícil. Tentei escutar.
Sons. Mas os de sempre: indecorosas paredes de alvenaria finas como
uma fatia de queijo. Ruído de descarga, provavelmente do vizinho.
Vozes. Vozes? Bianca estaria
também falando?
Saí da cozinha. Gabriel
cantarolava uma letra antiga, de um bolero, e Bianca fora à janela,
constrangida. Abandonei temporariamente o molho.
Outro conhaque, e outro,
e Bianca ajudando um pouco no desprendimento de meu amigo. Chegava perto,
nunca dirigindo-se a Gabriel diretamente, mas por pouco não roçando
em seus joelhos, ele sentado e ela se esgueirando entre a mesinha de centro
e a curiosidade crescente dele, inquieta o bastante para chamá-lo
e para me inquietar. Em geral era bem mais calma.
Três horas assim são
uma tortura. Éramos três e o diálogo só poderia
ser em dois. Gabriel já mostrara sua experiência como crítico
de cinema (adquirida num tablóide que durara apenas um ano e meio
mas que marcara época na cidade). Eu já havia dado palpites
sobre como ele poderia aproveitar sua cultura considerável de cinéfilo,
já o lisonjeara até em demasia.
Um pouco bêbado e
autoconfiante tanto por minha crítica favorável quanto pelas
facilidades que a tímida Bianca punha em seu caminho, Gabriel finalmente
deu a primeira cartada. Pôs a mão nos cabelos dela e comentou
como eram grossos, pesados, e brilhosos exatamente por isso. Ela retribuiu,
falando do crespo e da cor quase acinzentada dos dele.
Quase corri para a cozinha,
precipitado por um susto que não dispensou alguns movimentos calculados.
Tive o cuidado de fechar a porta, argumentando que era para que o cheiro
de cebola não invadisse a sala.
Abri a torneira da pia o
mais que pude: queria que se sentissem protegidos pelo barulho, que pensassem
que eu não saberia de nada, que avançassem até onde
pretendiam.
O temor ganhava terreno,
um terreno que até então tinha sido do desejo.
A água fazia um barulho
ensurdecedor. Ensurdecedor? Difícil, eu sei, mas como escutar o
que a sala via com aquele chiado ininterrupto? E se eu fechasse a torneira?
Não escutariam a respiração gritando na minha garganta?
Gritando. Bianca sempre
gritava. E eu acabara de ouvir um de seus gritos!
Abri o zíper,
peguei meu pau e encostei o ouvido na abertura da porta, colado na fresta
onde o marco e a extremidade da porta se beijavam não sem antes
deixarem passar um fio de som e de ar.
Como Gabriel partira tão
rápido para o ataque? Que certeza ele tivera para agir assim, sem
hesitação?
Eu é que hesitava.
Não demorara três horas, três horas em que eu e Bianca
o provocáramos? Do que é que eu me ressentia? Dos gritos?
Mas Bianca sempre gritava.
Pensei: Gabriel é
puro, não vai fazer as loucuras que eu faço. Com ele é
só feijão com arroz.
Bianca gritava.
Como ela iria se satisfazer
depois de ter ido tão longe comigo e agora passar por uma sessão
de sexo apenas previsível?
Bianca gritava.
Pensei em abrir a porta:
se eu os inibisse, acabava tudo ali e eu não descobriria nada, nem
sobre Bianca, nem sobre Gabriel, nem sobre mim.
Pensei em fechar a torneira
da pia onde tentava lavar alguns pratos: talvez eles estivessem naquele
abandono assegurados de que o meu precário esconderijo os protegia,
tornava tudo, ainda que consentido – Gabriel era inteligente, Bianca, explícita
–, menos constrangedor, menos doloroso, menos difícil.
Bianca gritava, gritava.
Abri a porta. Bianca gritava.
Gabriel parecia outro, constatei,
apunhalado. Sentara-a no colo, empalada, e virada para ele, beijando-a
na boca com a dedicação dos que amam – era como se a amasse.
Desejei ali que ele tivesse
pau de jóquei, que o esforço fosse apenas dele, tentando
com sua insignificância invadi-la e a explodir e a entrada maior
de Bianca aceitando o jogo, um pouco frustrada, um pouco indiferente. Mas
o pau era de zelador, de trabalhador no porto, de ator negro em filme de
estupro. E a entrada era menor.
Meu instinto encolheu-se.
Não haveria espaço para o meu acalentado sanduíche,
ele na frente, eu atrás (a posição de comando tinha
que ser minha; só numa segunda vez eu cederia o privilégio),
Bianca realizada pela dupla penetração, completa em suas
extremidades vizinhas, seu começo e seu fim, os vales ocultos vivendo
a perturbação, o excesso e a fecundidade das cheias.
Mas eu não podia
participar. Bianca gritava, mais e mais. Gabriel era um fanático
em plena prece, não poderia ser interrompido. Voltei à cozinha
desejando uma ereção mínima. A imagem da bunda de
Bianca cravada até o fundo por um novo e estranho e monolítico
amor me fez gemer de um prazer mais completo. Mas esse prazer não
era o meu, era talvez o dela, era talvez o de Gabriel.
Comecei um movimento de
vaivém, decidido, mas só a mão correspondia em entusiasmo.