A SEIS MÃOS         Nunca amei Bianca, mas isso jamais foi um obstáculo ao prazer. Naturalmente, como ela me amava, encontrava na minha cama – e no meu parquê, e no boxe do banheiro, e na pia da cozinha, e de pé junto à estante de livros – tudo o que a infância carente, a adolescência tímida e os anos de prática de masturbação sonharam. Bianca quase morria de tanto gozar. Eu só não morria porque meu método se apoiava no absoluto controle da situação erótica, e com controle ninguém chega a um orgasmo pleno.
        Era isso, principalmente isso, o que me incomodava. Nosso caso me levava mais a reflexões do que à saciedade. Insisto: um pouco é meu temperamento, discutir tudo, desfiar cada possibilidade de análise. Sim. Mas Bianca piorava esse quadro, muda, reduzida à ação física – sem tréguas, é verdade.
        Mentíamos? Não, claro que não. Mas dávamos ao desejo um papel maior do que a sensatez permitiria.
        Enfim, o sexo mandava em nós. Eu mandava no corpo de Bianca. E ela, que não mandava em nada nem em ninguém, aproveitava mais do que eu, mais do que qualquer pessoa que eu já conhecera.
        Trabalháramos juntos em uma editora, diálogos curtos, encontros breves, porém decisivos. Tinha 22 anos, virgem. Não me surpreendi; surpreendeu-me foi a dificuldade que o hímen apresentava. Nada complacente, a membrana divertia-se em nos frustrar.
        Meu pau rondava, indeciso, e desistia depois de quatro, cinco tentativas. Quem o afastava eram lágrimas, nunca verbalizadas, e por isso eu não conseguia saber se eram de dor ou de decepção.
        Deveria forçar mais? Deveria forçar menos? Ficamos nisso quase três meses.
        No futuro nos vingaríamos dessa dificuldade inicial.
        Busquei um novo caminho, logo consentido.
        De quatro na cadeira, o rosto para o espaldar, a bunda musculosa e destemida numa acintosa oferta, acintosa mais pela displicente coragem do que pela oferta. De pé, eu podia comandar com firmeza a entrada difícil. Não foi difícil.
        Viciei-me naquilo. Bianca também, embora as eventuais dores a convidassem para a retomada do “processo normal”.
        No entanto, o hímen tinha a resistência que não tínhamos.
        Bianca voltava à cadeira, voltava a ficar de costas para mim, voltava a expor-se indefesa. Eu, confesso, abusava, ainda que por vezes estivesse realmente penalizado.

        O prazer dela, não tenho dúvida, era imenso. Mesmo sob o flagelo de um nervo cego arremetendo contra os limites visíveis do esfíncter. Mesmo ocultando um incômodo que era ardência às vezes, dor funda noutras (como um soco no estômago, me explicou mais tarde, só que atrás), e até náusea. O corpo da mulher propõe o que não sustenta.
        Propõe?
        Evidente que não, me dizia Gabriel. Evidente que não.
        Nós propomos, discursava ele, me dando aquela mijada moral, nós, homens, machos cobridores. Nós não, ele se corrigia, tu, só tu, tarado, tu e uma multidão de estupradores que pensa como tu e são incapazes de amar.
        Eu deixava pra lá, não ia entrar naquele papo militante e limitante do Gabriel. Queria só ver ele na cama com Bianca, podendo fazer de tudo, de tudo, até pôr o gargalo de uma garrafa, primeiro na vagina, depois no ânus, como eu fizera um mês depois, quando, enfim, o hímen fora derrotado por nossa disposição assassina.
        Bianca conheceu Gabriel numa livraria, comigo a tiracolo. Apresentei-os e logo saí dali, ela grudada em mim, saltando de cabeça na fantasia mais funda e mais revolta, dizendo para mim mesmo, calma, é só um temor que sublimas por uma via um tanto masoquista.
        Entramos no apartamento – o meu, ela morava com os pais – e em segundos estávamos, de pé ainda, junto à porta de entrada, grudados e ansiosos e sedentos e famintos e talvez assustados.
        Assustados porque gozáramos mais do que das vezes anteriores. Assustados porque ela gritou mais alto, tão alto que pedi que calasse a boca. Assustados porque fui acometido de súbita taquicardia, tal a excitação. Assustados porque o nome de Gabriel surgiu enorme em meio ao engalfinhamento mal-começado e foi penetrando aos poucos no nosso jogo até então secreto. Assustados, um pouco, é verdade, mas assustados.
        Voltamos a ver Gabriel quase por acaso. Saíamos de um cinema onde Woody Allen – Setembro – fizera Bianca desviar-se da tela e concentrar os olhos, as mãos e a boca no meu pau. Meu amigo entrava para a próxima sessão, distante como sempre. Não o chamei. Bianca foi a primeira a notá-lo.
        “Olha lá, não é o teu amigo?”
        Atenta ela, hem? Dominei o ciúme, era só uma porção pequena, capaz de, administrada, transformar-se no que mais tarde iria me deixar sem forças.
        Gabriel costumava freqüentar aquela sala de cinema, habituais eram nossos encontros ali.
        Depois do começo de minha relação com Bianca, o sexo me dando o obstinado abandono da alucinação (nem cinema, nem música, nem livros, nem nada, só o cheiro de queijo mofado da sua bucetinha), os encontros com Gabriel ficaram raros. Ele continuava seu caminho, seu projeto, sem alterações. Eu é que mudara, eu é que sumira, eu é que me consumia e ficara nos últimos tempos quase impalpável.
        Um dia encarei a fresta que a vida, em constante luta e acordos com o tempo, mostrava, oferecia e exigia. Eu e Bianca chegáramos ao esgotamento dos jogos puramente físicos. Faltava um componente afetivo, e na falta dele um, digamos, psicológico, uma provocação, um enredamento, uma infiltração.
        Gabriel.
        Nesse tempo todo eu chegara a uma conclusão.
        Embora Bianca fosse plenamente capaz de observar outros homens, com interesse assumido, jamais o fez em termos de comparação com meu desempenho e meu papel em sua vida.
        Gabriel. O nome dele embaralhava minhas conclusões acerca de Bianca e seus sentimentos com relação a mim. Continuaria a me amar depois de tê-lo comido? Gabriel era puro, embora não inocente, uma receita perfeita para uma mulher. Ainda mais uma mulher exigida ao máximo por um neurótico agudo e, por isso mesmo, incansável.
        A verdade era que minha potência já não representava nenhum motivo de orgulho, ao contrário. Ereção fácil, ejacular a toda hora, imaginação febril. Bom, bom, mas e daí? Não é o extremo oposto da impotência e, simultaneamente, seu espelho?
        Era chegada a hora, custasse o que custasse. E custou.
        Talvez apenas para Bianca o preço tenha sido modesto.
        Constrangimento não é uma sensação assim tão barata, ainda mais um constrangimento daqueles. Gabriel era uma cabeça com mais de dois dedos de testa, como costumava dizer um outro amigo nosso (meu e de Gabriel), ou seja, de rara inteligência. E Bianca domesticara o espírito desde a infância, contentando-se com o mínimo, aceitando as histórias que o mundo contava, só para conseguir seu lugarzinho garantido, lugarzinho que ela não teve até aos onze anos, quando os pais, alcoólatras, deram-na a uma vizinha. Expunha seu corpo com toda a vida que o movimentava, cruamente decidida. Mas a limpidez de seu espírito a fazia uma espécie de criança armada, ausente do poder que dispunha e, assim, incapaz de compartilhar conosco algo que também desejávamos.
        Esse era o constrangimento: usar Bianca era lícito, sim, porque ela o consentia, porém, a cada idéia que eu e Gabriel tivéssemos uma espécie de estupro estaria sendo cometida contra ela. Despida de quase tudo, estava reduzida a uma umidade primitiva que simplesmente se abria numa permissão sem consciência.
        Por isso gozava mais que qualquer um de nós.
 Bianca, porém, sabia calar como ninguém, até demais. Era fácil evitar os mal-entendidos. Era fácil disfarçar o constrangimento embrulhando-o na timidez.
        Mais duro era o preço que Gabriel tinha de pagar. Tenho certeza de que ele em nenhum momento previra o desfecho daquele encontro. Nem que pressentira alguma intenção no ar.
 Nem eu pressentira nada, concluí, quando Bianca, minutos antes de Gabriel chegar ao apartamento, entrou apressada vindo da firma – combináramos uma sexta-feira –, dizendo vou tomar um banho rápido e me trocar. Banho? Ela não fazia tanta questão assim. Trocar-se? Ela sempre vinha e ficava e saía com a roupa do corpo. De fato, eu não pressentira nada.
        Não terminara o banho ainda, demorado, e Gabriel chegou. Amaciei-o com um conhaque, quase 50 páginas de uma tese que eu estava escrevendo e confissões acerca do absoluto caos do mundo, da fragilidade das relações, da inconsistência da experiência afetiva, e da necessidade, urgente, de o homem abrir brechas em sua vida.
        Bianca, saindo do banheiro com um vestido branco justo, de tecido quase transparente, aliciando com o contraste de sua presença o humor quase existencialista de dois machos apostando no fracasso, pôs um súbito e incalculável movimento na sala. O tempo ficou espesso, exigia ação, e cada olhar, cada gesto por mais despretensioso, o ritmo, por exemplo, levemente alterado das respirações, tudo isso afinal que quase nunca tem importância, adquiriu ali uma dimensão nova, insustentável.
        Fui à cozinha. A massa para a pizza já havia sido preparada por Bianca. Era preciso fazer o molho. O processo não era difícil, é claro, mas o molho é a pizza, o molho é tudo, e fazê-lo exigia uma concentração, essa sim, difícil. Tentei escutar.
Sons. Mas os de sempre: indecorosas paredes de alvenaria finas como uma fatia de queijo. Ruído de descarga, provavelmente do vizinho.
        Vozes. Vozes? Bianca estaria também falando?
        Saí da cozinha. Gabriel cantarolava uma letra antiga, de um bolero, e Bianca fora à janela, constrangida. Abandonei temporariamente o molho.
        Outro conhaque, e outro, e Bianca ajudando um pouco no desprendimento de meu amigo. Chegava perto, nunca dirigindo-se a Gabriel diretamente, mas por pouco não roçando em seus joelhos, ele sentado e ela se esgueirando entre a mesinha de centro e a curiosidade crescente dele, inquieta o bastante para chamá-lo e para me inquietar. Em geral era bem mais calma.
        Três horas assim são uma tortura. Éramos três e o diálogo só poderia ser em dois. Gabriel já mostrara sua experiência como crítico de cinema (adquirida num tablóide que durara apenas um ano e meio mas que marcara época na cidade). Eu já havia dado palpites sobre como ele poderia aproveitar sua cultura considerável de cinéfilo, já o lisonjeara até em demasia.
        Um pouco bêbado e autoconfiante tanto por minha crítica favorável quanto pelas facilidades que a tímida Bianca punha em seu caminho, Gabriel finalmente deu a primeira cartada. Pôs a mão nos cabelos dela e comentou como eram grossos, pesados, e brilhosos exatamente por isso. Ela retribuiu, falando do crespo e da cor quase acinzentada dos dele.
        Quase corri para a cozinha, precipitado por um susto que não dispensou alguns movimentos calculados. Tive o cuidado de fechar a porta, argumentando que era para que o cheiro de cebola não invadisse a sala.
        Abri a torneira da pia o mais que pude: queria que se sentissem protegidos pelo barulho, que pensassem que eu não saberia de nada, que avançassem até onde pretendiam.
        O temor ganhava terreno, um terreno que até então tinha sido do desejo.
        A água fazia um barulho ensurdecedor. Ensurdecedor? Difícil, eu sei, mas como escutar o que a sala via com aquele chiado ininterrupto? E se eu fechasse a torneira? Não escutariam a respiração gritando na minha garganta?
        Gritando. Bianca sempre gritava. E eu acabara de ouvir um de seus gritos!
         Abri o zíper, peguei meu pau e encostei o ouvido na abertura da porta, colado na fresta onde o marco e a extremidade da porta se beijavam não sem antes deixarem passar um fio de som e de ar.
        Como Gabriel partira tão rápido para o ataque? Que certeza ele tivera para agir assim, sem hesitação?
        Eu é que hesitava. Não demorara três horas, três horas em que eu e Bianca o provocáramos? Do que é que eu me ressentia? Dos gritos? Mas Bianca sempre gritava.
        Pensei: Gabriel é puro, não vai fazer as loucuras que eu faço. Com ele é só feijão com arroz.
        Bianca gritava.
        Como ela iria se satisfazer depois de ter ido tão longe comigo e agora passar por uma sessão de sexo apenas previsível?
        Bianca gritava.
        Pensei em abrir a porta: se eu os inibisse, acabava tudo ali e eu não descobriria nada, nem sobre Bianca, nem sobre Gabriel, nem sobre mim.
        Pensei em fechar a torneira da pia onde tentava lavar alguns pratos: talvez eles estivessem naquele abandono assegurados de que o meu precário esconderijo os protegia, tornava tudo, ainda que consentido – Gabriel era inteligente, Bianca, explícita –, menos constrangedor, menos doloroso, menos difícil.
        Bianca gritava, gritava.
        Abri a porta. Bianca gritava.
        Gabriel parecia outro, constatei, apunhalado. Sentara-a no colo, empalada, e virada para ele, beijando-a na boca com a dedicação dos que amam – era como se a amasse.
        Desejei ali que ele tivesse pau de jóquei, que o esforço fosse apenas dele, tentando com sua insignificância invadi-la e a explodir e a entrada maior de Bianca aceitando o jogo, um pouco frustrada, um pouco indiferente. Mas o pau era de zelador, de trabalhador no porto, de ator negro em filme de estupro. E a entrada era menor.
        Meu instinto encolheu-se. Não haveria espaço para o meu acalentado sanduíche, ele na frente, eu atrás (a posição de comando tinha que ser minha; só numa segunda vez eu cederia o privilégio), Bianca realizada pela dupla penetração, completa em suas extremidades vizinhas, seu começo e seu fim, os vales ocultos vivendo a perturbação, o excesso e a fecundidade das cheias.
        Mas eu não podia participar. Bianca gritava, mais e mais. Gabriel era um fanático em plena prece, não poderia ser interrompido. Voltei à cozinha desejando uma ereção mínima. A imagem da bunda de Bianca cravada até o fundo por um novo e estranho e monolítico amor me fez gemer de um prazer mais completo. Mas esse prazer não era o meu, era talvez o dela, era talvez o de Gabriel.
        Comecei um movimento de vaivém, decidido, mas só a mão correspondia em entusiasmo.


Paulo Bentancur

 

 

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