UMAZINHA

            Ela despontava como um girassol arrogante no campo quase morto e seco, hostil até, do inverno de todas aquelas senhoras de aparência enfadada da própria vida sem muitas surpresas, a tribo das vovós dos fins de tarde, esperando a morte chegar fazendo chás e bordando toalhas que ninguém usaria, enquanto falavam mal dos filhos e das noras e dos netos mal-educados, dos vizinhos, dos amigos e dos filhos dos amigos dos vizinhos, repassando num preto e branco amarelado as mesmas histórias de sempre, a competição das doenças mais graves, ou dando muitas gargalhadas desencontradas que lhes doíam o bucho, os carrinhos ou a coluna, mostrando uma boca sem dentes ou um dente de ouro na dentadura torta, lembrando que talvez não viessem no próximo encontro beneficente cujo maior objetivo era mesmo o de dar um tom de vida, quem sabe, uma pincelada de motivos e esperanças ao marasmo inserido nelas mesmas, sim, pois ainda eram gente e, por quê não?, ainda faziam parte do mundo dos vivos, ainda que quase todas tivessem que ser levadas por alguém que as ajudasse até a colocar duas gotas – deu! deu! deu! quer me matar? - de adoçante no próprio chá, era praticamente apenas isso o que eu fazia ali, e olhem só, que coisa!, foi ajudando minha avó a levantar para ir no banheiro, ouvindo novamente todas as mil pragas que ela rogou para eternizar a minha vida de solteiro apenas porque esqueci de pegar sua bengala, foi aí que a vi, ela, o girar do Sol das montanhas geladas, os montes todos que nos isolavam e me deixavam calado num canto da imensa sala, onde o burburinho das velhas abafava a música que chorava um Nelson Gonçalves triste por sua cabocla distante num vinil gago, que mulher linda!, onde estava até então?, ela tinha o olhar penetrante e decidido do mar que bate insistente contra o rochedo tentando derrubá-lo, a força bruta da natureza estampada em duas pequenas bolitas verdes, mas os olhos dela não me encontravam, na verdade, então me trouxeram uma bandeja com salgadinhos e um jarro de chá gelado, agora, assim, ao alcance de um toque, mais linda ainda, e só pude balbuciar um agradecimento sorrindo sem ter qualquer resposta dela ou atenção diferenciada, pensei em estender o braço como um moribundo à miragem que o assola no deserto, na diversão da morte sádica disfarçada em odalisca e cântaro com água, quando a vi se afastando em direção às velhas todas, só me restando despi-la com minha gula, minha sede, pai do céu!, quantos segredos se escondiam naquele corpo de traços delicados formados e firmes que a deixavam tão imponente e intocável, desejei muito levantar e perguntar o seu nome e se estava a fim de passar comigo a noite que já se aproximava inevitável, ouvir alguns poemas de uma vida à mercê do acaso e então tentar entender esses beijos longos que o destino nos dá sem avisar, mas minha avó voltava do banheiro e percebeu meu interesse ao mesmo tempo em que me deu um tapa invisível no rosto como quem clama o ébrio para que acorde, pelo amor de Deus, é só umazinha aí, não te atira não!,

            os telefones da alma sempre tocam quando a casa está vazia, quando em teu coração não há sequer um piá de recados para atender ou uma secretária eletrônica para anunciar que você ainda existe, credo, não suporto alho, não beijaria alguém que mastigara um alho antes de falar comigo, nada essencial, apenas uma questão de estética, a gente sempre faz um monte de exigências logo quando não está em condições de escolher, e diz que quer ser o chefe do setor estando na rabeira da fila dos desempregados, oi?, tá, aipim cozido com manteiga, fumegante e sem aqueles fiapos grossos de velhice, isso eu gosto, já tá quase pronto, ela grita da cozinha, é, eu talvez te suporte por uma vida inteira só por isso e por essa barriga que me empurra para fora do mercado competitivo do amor, agora que já tenho muito mais que trinta e continuo sendo apenas capricorniano e colorado

            desviei o olhar do quadro que eu já penetrava poro a poro e contemplei o olhar caquético daquela mulher que fizera amor com meu avô para que minha mãe nascesse e concluí que já era tarde para se expor defeitos, eu a desejava profundamente e qualquer parte máscula do meu cérebro repetia como o badalo tresloucado de um sino que aquela mulher seria minha, até tentei explicar isso para vovó, mas ela já havia me trocado por uma das tantas comadres e o assunto era qualquer um menos a minha aflição que se principiava monstruosa e que ela talvez até já esquecera, então busquei meu girassol com o olhar de um menino melindrado, mas as montanhas o esconderam e a noite chegou mais rápido talvez de propósito, o universo tem essa mania louca de conspirar contra quando me vejo à porta da felicidade, então fomos embora por medo dos fantasmas e dos assaltantes sem que eu tornasse a vê-la, ou sequer saber quem era a minha nova musa, mas o sino ainda tocava intenso em minha alma o que me fez escrever vinte e um poemas de busca e desespero e voltar aos chás por muitas vezes, o que me elegeu como o melhor de todos os netos do mundo, mas nada, nem sombra daqueles olhos oceânicos, nada daquele corpo diamântico, quase esmoreci, xinguei a Lua com aquela cara gorda e cheia à meia-noite e perguntei, sério!, a gente faz dessas quando está bêbado e apaixonado, e aí?, onde anda você?, então me escondi na sombra da mesa de um bar vagabundo e fumacento, tomei três taças de um vinho ainda mais vagabundo e vagabundo me senti, corpo e alma, quando joguei uma pedra num gato preto me olhando com aqueles olhos luminosos de azar, ainda bem que não acertei, ainda bem que ele se foi sem cruzar à minha frente, onde anda você, cantarolei cada vez mais baixo e não dormi nem acordei, quase não dormi e acordei e dormi e acordei, até que num dia desanimado do quase morto depois, num encontro em que as vovós estavam longe, descobri que os seus olhos eram mesmo como o encontro das águas, me deixando em pororoca, tão densos e enigmáticos quando distantes de quem os vê, mas de uma transparência cristalina e sinceramente límpida se olhados bem de perto, bem de dentro, revelando mil maravilhas e jóias raras, e fui ao fundo do seu ser e descobri o interior macio e leve que ela escondia sob aquela crosta de seriedade real,

            não vó, não vou pra casa dela, hoje não, quê?, o passarinho?, amanhã, vó, amanhã, ui, que horror!, detesto esses sopros do além em meu ouvido, esse arrepio todo, sou espírita apenas por moda, não sei falar com os mortos, não li nenhum dos livros de Kardec, Caetano não se cansa no repeat, o cedê já deve ter um buraco de tanto tocar horas inteiras, trrrim, trrrim, o telefone, que merda!, minha alma quer dizer que não estou, pai, pai, ô pai, tá surdo?, ah, o menino que repete minha fisionomia em tamanho reduzido e ainda puro me olha intrigado, não, não estou, mas bem que queria estar, desde antes, desde sempre, ah, desculpa filho, hum, beijinho na testa e ele me olha ainda mais intrigado, não entende que peço perdão, mais para mim mesmo, que a vida é uma grande cagada que se repete e não se limpa, vou te dizer alguma coisa sobre isso filho, mas hoje não, outro dia, outra hora, pai!, ô pai!, tá voando?, ahn?, a comida tá pronta, o aipim , o alho, credo!,

            mas entendi, ela precisava se defender como eu também sempre precisara, insisti, persegui, cansei mas consegui, me aninhei em seu recôncavo aquecido, adormeci, sonhei felicidades, até que ela completou que não confiava em ninguém nem em mim e nem na história de que eu fora mesmo a todos os chás só para encontrá-la, impossível, ela disse, não!, agora é tarde, eu já te amo!, gritei sussurrando, o problema dos homens – ela fitava o teto e só então me revelava ser fumante - é que juram que nós caímos por qualquer migalha de atenção ou mentira emoldurada, ela disse sempre sem me olhar, enquanto eu passeava por aquele corpo de tamanho exato, bronzeado, suado, sem perceber direito que sua voz tinha a frieza e o veneno de uma lâmina enferrujada, não adiantou que eu repetisse ou grifasse o que sentia, nem adiantaria uma overdose de anti-tetânica, ela não acreditava mesmo, tu vais embora ao amanhecer como qualquer um dos meus clientes

            sabe, repeti que apenas queria amá-la, como?, vai!, tudo bem, e suas pernas mornas me largaram entre madrugadas ébrias e deserticamente inacabadas, entre todos os medos, covardias de saudade e desespero que tornam um humano mínimo e ridículo ao seu próprio orgulho auto-proclamado racional, pois bem!, gritei, noites após, agora de verdade e nem aí para a multa do síndico, após vários copos de uísque no apê vazio como eu, é assim?, e não levei mais minha avó aos chás dando sempre uma desculpa esfarrapada gaguejada na lembrança daquela mulher que eu não conseguia vencer em meu interior, e apesar da lembrança insone da noite e da história inacabada me incomodando por muito tempo consegui não mais vê-la, mais por receio, dela ou de mim mesmo, da conseqüência e dos conceitos, até o enterro de vovó, quando ela veio me apertar a mão com seus dedos cremosos e me desejar condolências com uma voz azáfama que bateu em meu rosto inerte no espaço e sacudiu meu ser inteiro, mas quando os olhos dela se desviaram dos meus e os olhos de todos a procuraram com desprezo entendi porque é que ela não tinha nome certo, o porquê do olhar de pedra, o medo do sentir, o medo da vida plena, as suas sentenças resignadas e pessimistas em relação a ela própria lançadas entre cigarros nervosos no meio da noite, porquê me colocara no lugar de  mais um qualquer para continuar sendo apenas a profissional que quase não me contou ser, mas precisou, para salvar a mim e a si mesma, para desviar do amor e ficar apenas no sexo puro e simples que tinha que ser para ela pois não havia mais outra saída, não nessa vida, aipim, pai, aipim com manteiga, bah, não ouviu nada do que eu disse, né guri?, não me olhe assim, tua mãe nem sabe disso...

            clientes?, que papo é esse?, pulei da cama, o abajur caiu, o olhar dela também, em mim e em meu mundo mínimo que ela já conhecia de cor, pois era igual a todos, mas talvez ela tivesse uma ponta de esperança, ainda assim se decepcionava, sou um cachorro!, e senti que uma lágrima gelada vinha em nós, ao mesmo tempo, de mãos dadas com o medo e os muros e a voz de minha vó dizendo “umazinha aí”, toda minha temperatura caindo vertiginosamente, o mercúrio do meu amor descendo em direção ao ódio, ela me contou tudo, mesmo o que eu não merecia ouvir, é, não merecia, caramba!, não merecia
não tinha sido assim para mim, esse era o grande problema, corri atrás do seu braço e na porta da capela deserta e falsa que pintei no lençol amarrotado até tentei propor vida e tudo e ela apenas riu meio sorriso amarelo e balançou a cabeça e me acariciou a face como perdoando ao menino arteiro, pai, não vem comer?, larguei o jornal e tirei o óculos que já caía na ponta do nariz ao mesmo tempo que uma lágrima caiu no canto da boca e senti seu gosto de sal e açúcar, tá chorando pai, o alho, o alho, a porcaria infame do alho, ainda largo a tua mãe por isso, tá chorando pai?,

            não seja bobo, também gostei de ti, guarde isso com carinho até que o tempo te pegue desprevenido com o coração fechado, cheio de medos e fragilidades sobreviventes, e te seqüestre e te transforme em homem sério, dando um grande pontapé nas tuas lembranças e nos teus ideais, lamentando o ocorrido, escondendo de todos essa história e aconselhando o teu filho a não se apaixonar por uma dessas mulheres vagabundas e espertas que só servem para fazer o sujeito de trouxa, peraí, trouxa não, eu, pssss,

            é, meu filho, ela sumiu na tarde cinza deixando um cartão com um número de telefone e a promessa de fazer programas comigo sem cobrar e sem rancor, que nunca tive coragem de ligar, mas que guardei em minha carteira por um bom tempo, contemplando por madrugadas inteiras aquela letra redonda e perfeita, tentando convencer meu peito que eu não tivera chance, era ela quem não queria, que eu realmente era diferente dos outros, não me comparava a complexos, não era culpado pelos conceitos e preconceitos do mundo, que o que senti não era só uma paixão qualquer, era um amor profundo que me preenchera lacunas e crateras que se transformaram em feridas e que julguei não mais cicatrizar, sentindo ainda os seus dedos macios sobre os meus lábios pedindo meu silêncio e seu longo beijo despudorado de adeus, não posso mesmo ficar contigo, você merece algo mais,

            eu não merecia ouvir aquilo,

            jamais vou te falar isso filho, o pai não está chorando, quer dizer, não, tô sim, que diabo!, porque é que temos que usar máscaras quando o assunto é educação?, é, sabe, até quis vê-la novamente, não sei se dá para entender, mas não tive coragem, não para amá-la de um modo mecânico, ela não merecia, ela disse me amar, e só eu sabia como aquilo tinha sido denso e sincero, pai, olha o aipim!,

            te amo, tá?, não!, eu não merecia ouvir isso

            briguei anos em minha solidão contra o universo, a sociedade e sua hipocrisia pintada nas caras das damas bem casadas tão cheias de amantes e fotos respeitáveis no jornal e na estante da sala de visitas, contra as misérias legais e morais e os rebolados dos que tinham que se sustentar vivos de alguma maneira, fosse como fosse, e maldisse novamente a noite ladra que levou meu grande amor e a Lua, o seu olhar patético passando por tudo sem fazer nada, mas as poesias rancorosas foram escasseando e recebi uma promoção na empresa e quando chorei pela última vez foi muitos anos antes de

            quando você casar, mande-me um convite, quero ver teu sorriso feliz e saber que um dia foi puro e meu, porcaria!, eu não merecia ouvir isso,

            saber da morte dela, agora, pequenas letras borradas pelo pranto involuntário numa página do jornal equivocado, pois então, eu já tenho mulher e mais de um filho, a razão inserida nos poros e um título frio antes do sobrenome, que me rendem um bom salário e uma amante mais jovem, e apenas balancei a cabeça e censurei todos aqueles que fogem dos padrões nos quais nem eu acreditava mais, não tô chorando filho, é esse alho que a tua mãe pica e fede na casa inteira, mostro como exemplo ao meu herdeiro essa gente que morre de doenças estranhas, e me sinto melhor, ou pior, mas isso bem lá no fundo, estou apenas tentando defender a família e as regras do bom comportamento, em nome do compromisso social, em nome do meu fracasso brilhante,

            eu não merecia ouvir aquilo, não daquele jeito assim, ó, guardado numa caixinha dourada que veio do coração dela, umazinha, vó, umazinha, só que maior que muita gente por aqui, gente mesquinha como eu, que não tinha tanto alcance

            foi naquele dia em que subi ao sótão após o almoço e pintei num quadro um girassol que se projetava seco ao céu sobre as montanhas e lembrei que ela estivera sempre certa sobre a vida, sobre as pessoas, sobre mim...

            te amo, e me beijou

            tá vó, tá , tudo bem, vou pintar também o passarinho, mas pare de telefonar para a minha agonia, tenho um puta medo de fantasmas, do desconhecido, tenho um enorme sentimento de culpa, não consigo ficar em plena paz, então pare de rondar minha casa e minha família jogando na minha cara todos os erros calculados que cometi, me deixe comer meu aipim

            ela se foi, eu me fui, mas isso é apenas a lógica da vida normal, a vida que merecemos, cínica, hipócrita, polida e correta, porém nada mais que uma passagem terrena, uma reciclagem necessária, talvez fora daqui seja melhor, ela me disse, antes de sumir para sempre na neblina da minha angústia imatura,

            te amo, menti, e a encarei, a boca cheia de aipim, o nariz torto pelo alho, mas minha esposa nem me ouviu, acho que ela sabia - sempre soube - da verdade

            porcaria!...

Oscar B. Filho


 
 

 

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