O QUARTO

            Caminhava por entre as sombras como um ente sem cor, um irreal peixe atmosférico que não encontrasse pontos em que se apoiar. Seus passos quase sem som um leve arrastar, nada mais que um leve arrastar. A luz de um poste iluminou-lhe por um tênue instante os olhos abertos, brilhantes, como lâmpadas leitosas muito potentes. Caminhava.
            Caminhava por entre as sombras como uma serpente veloz, todo o seu corpo tremulando sob o frio do vento do Aterro. Seus passos cliquecloqueando sob os sapatos. Parou em frente a um botequim e acendeu um cigarro em seus lábios muitos pintados, lábios escarlates como uma faiscante ferida aberta a facadas.
            Ele acendeu um cigarro, sem parar contudo, e tragou-o com a lentidão de um funil muito estreito, a fumaça a segui-lo como um rastro evanescente. Duas putas na esquina com a Marrecas sussurraram “tesudo” e ele tragou sugestivamente o cigarro, satisfeito com o cumprimento – e entrou no primeiro botequim e pediu um conhaque vagabundo (os três pivetes ao canto, sujos e de gestos muito rápidos, seus dedos como navalhas de mola a se abrir; a puta mulata com o cigarro ás mãos, o filtro deste manchado do rosa de seu batom-de-puta, os cabelos caindo-lhe pelas costas nuas apesar do frio); ao término do conhaque pagou-o e saiu.
            Ela atirou longe o cigarro e olhou em volta. O relógio do botequim: onze e meia da noite. Recomeçou seu caminhar pelo mesmo caminho por que viera, em sentido inverso todavia. Tiritando – algumas lufadas da finíssima chuva a molhar-lhe o corpo, a calça apertada, a blusa azul-claro, os cabelos castanhos. À porta do cinema, três mendigos de idade-sexo-raça indefiníveis se aglomeravam uns sobre os outros, uma garrafa de cachaça a passar de mão em mão. Uma lufada mais forte fez com que ela se encolhesse e apressasse o seu caminhar. Por entre as mesinhas do restaurante, sob a cobertura, ela enveredou e alcançou o banheiro, a plaquetinha com uma bolsa (ela não carregava bolsa alguma) e um par de luvas (idem).
            Na rua, à rente do bar, ele esquadrinhava as árvores do Parque da Cidade e os ônibus que paravam, enchiam-se de gente e saíam. Seus olhos ainda chispando, as mãos nos bolsos do casaco de couro negro (o vento fazia com que as folhas farfalhassem, emitindo um coro monótono sem falhas, como se fossem montes de palha em chamas; as pessoas pulavam para dentro dos ônibus com espasmos de batráquios, impelidas pela chuva fraquíssima contudo gélida), a boca estacionada, fixa, apertada.
            Com o som da descarga do vaso sanitário ela saiu e tomou o calçadão e recuou ante o cafetão que desferia um tapa violento no rosto do homem louro, de bochechas vermelhas mais vermelhas após o golpe, que murmurava, entre cuspidas de sangue com saliva, que ela (a puta que, ao lado, vociferava “esse filho da puta, esse filho da puta” e apontava para a mancha violácea ao redor de seu olho direito) é que se metera a dar um suadouro nele, ela tava a fim de me enquadrar, mas eu saquei logo, a culpa não foi minha, aquela filha da puta nojenta etc. etc. – a mulher recuou e afastou-se discretamente, acendendo um cigarro e virando-se novamente durante o caminhar para observar de relance a cena, o cafetão encostando a face do homem contra um poste e gritando tá fudido seu puto (os pescoços das pessoas, no botequim iluminado quase em frente, esticando-se para que seus olhos e ouvidos pudessem captar a cena e os sons da cena, quase levando seus narizes ao rosto da vítima para sentir também o cheiro de seu sangue). E ela adentrou a rua com seus passos cliquecloqueantes.
            Ao olhar para o relógio ele viu que faltavam dez para meia-noite e recomeçou a andar, a Rua das Marrecas então. Como da outra vez: putas às paredes a examiná-lo e sussurrar-lhe frases, convites e oferendas – recusou-as todas sem nem mesmo esboçar um gesto, a própria recusa implícita nessa abstenção. As putas, contudo, movias pelo inabalável senso profissional, continuaram a enviar-lhe promessas de carnes abertas e línguas velozes  promessas que não o abalaram. Ajeitando a mochila às costas ele abriu a porta de vidro onde se liam as palavras Hotel Noite Ardente e subiu as escadas.
Os passos cliquecloqueantes a haviam levado à rua que lhe interessava. Olhou o relógio na parede do botequim – estava na hora. Sem mover um músculo de sua face, cuspiu o cigarro pela metade, semi-úmido, e dirigiu-se para a porta o Hotel Noite Ardente.
            Ele lá estava.
            Pegado a chave os dois subiram e esperaram à porta do quarto 203 que o mulatinho magrinho, de jaleco, terminasse de colocar sobre a cama os lençóis limpos. A luz apagada, não permitindo que se tivesse absoluta certeza de sua cor.
            O mulatinho magrinho saiu – e eles entraram, e ela se despiu sem sequer olhar para o homem que tirava lentamente o casaco; e ela se deitou e abriu as pernas e o homem tirou as calças (já tirara os sapatos) e a cueca e acendeu um cigarro, permanecendo sentado nu, à beira da cama, com o cinzeiro de vidro numa as mãos e o cigarro aceso na outra. Ela não se mexia, seus olhos como que grudados no teto. Ele, finalmente, apagou o cigarro, se deitou sobre ela, e penetrou-a de uma só vez (José era seu nome, o nome simplista daquele que entrara no ônibus no dia anterior e que durante a viagem lera um artigo da Veja sobre os primeiros dias do novo governo; José que sentira sono durante a leitura do artigo e que dormira profundamente e passara de se ponto e tivera que tomar outro ônibus de volta, maldizendo ter dormido tão pouco na noite anterior por causa das carícias como brasas gélidas de sua esposa – Lurdes, a morena de olhos castanhos que lhe dera dois filhos: Tiago, de seis anos, e Rodrigo, de oito –, carícias estas que fizeram com que se sentisse na religiosa obrigação de correspondê-las e que desencadearam o ato sexual, após o qual ele tomara um prolongado banho frio – sentia muito calor, estava coberto de suor – e ativara sua insônia, insônia esta que fizera com que ele só conseguisse adormecer após as três horas da madrugada, tendo então terminado de ler o artigo que iniciara no ônibus, que tratava do lançamento no Brasil de algum livro de algum autor de algum país (sim, um artigo deveras interessante), e tendo passado após a leitura por mais quarenta minutos torturantes a remexer-se sob o lençol; José que dormira muito bem na noite anterior, mesmo após Ter dormido no ônibus, porque, decidido a preparar-se para sua triunfal sexta-feira, ao chegar e casa tomara um  rápido banho morno, jantara e bebera uma microdose de uísque nacional que sobrara do Ano-Novo, uma microdose suficiente apenas para fazê-lo relaxar de um dia rente a uma tela de computador onde ícones infantis dançavam, e que após o banho, o jantar e a microdose, dissera para Lurdes estou moído e se deitara e adormecera de pronto, pronto para acordar sexta de manhã e ir trabalhar e executar seu serviço de forma um tanto quanto morosa – como em todas as sextas-feiras –, antes de ir para um bar com seus colegas de repartição e tomar uma meia dúzia de chopes, alegando a uma certa hora estar na hora de ir-se, morava longe etc., quando então, em algum lugar pouco visível, trocaria, amaneira de Clark Kent, seu  pelo casaco de couro e sairia para as luzes e o vento frio da Cinelândia, sabendo apenas vagamente o que fazer antes que desse meia-noite e fosse o momento de subir ao quarto com ela, ela que o encontraria ali, pontualmente, e com ele subiria, e ele então treparia com ela e não lhe perguntaria o nome – desde que a encontrara, vagando a esmo pela Álvaro Alvim, nunca lhe perguntara o nome: dissera, apenas, olá, e ela respondera olá (sim, ela possuía a obrigação profissional de responder olá ao seu cordial olá), e ele apontara o hotel e ela anuíra (como deixar de anuir?) com a cabeça e eles haviam subido e ela não soltara nem mesmo um gemido enquanto ele trepava com ela; aliás, após os dois primeiros olás mútuos na primeira sexta-feira, nunca mais dirigiram uma palavra sequer um ao outro –, e, após terem consumado o ato – os atos, sempre mais de uma vez –, ele, discretamente, deixaria o dinheiro, mais do que o suficiente, pela usual tabela de prostitutas – ele nunca lhe perguntara ou viria a lhe perguntar o preço –, sobre a mesinha de cabeceira e sairia primeiro, deixando-a a vestir-se no quarto, e sairia pela porta de vidro para pegar o seu ônibus).
            Ele ergueu-se, suado, e caminhou rumo ao banheiro. Regulou a temperatura da água, e, quando esta atingiu o ponto desejado, começou a ensaboar-se.
            Ela fumava um cigarro, nua sob o lençol que lhe cobria apenas o ventre. Soltava a fumaça em baforadas curtas, e ficava a olhar as formas da fumaça no quarto escuro, sendo a única luz a que vinha do banheiro.
            Ele saiu, nu, do banheiro.
            Ela ergueu-se e entrou neste, repetindo a cerimônia de aferição da temperatura da água.
            Ele acendeu um cigarro.
            Quando ela saiu, ele apagou seu cigarro e saltou d acama e ergueu-a, segurando-a pelas nádegas, e jogou-a ao chão, e, novamente, empurrando suas coxas muito abertas na direção de sua cabeça, penetrou-a (Elisa se chamava ela,  a mulher que cruzara na noite anterior a porta da casa do noivo para a rua, dizendo a ele – Célio – que iria dormir, e indo realmente dormir, antes do que ele retivera seu rosto entre as mãos abertas e lhe dera um beijo lento e quente e murmurara, à guisa de gracejo, a frase sabia que eu te amo demais?, e ela apenas soltara um gemido de assentimento e retribuíra – desta vez tendo ela o controle da situação – o beijo que ele lhe dera, estalando seus lábios nos dele e saindo e entrando no carro e indo para sua casa, onde sua mãe a esperava somente para lhe dizer que a comida estava quente e ir para a cama; e ela se servira das panelas ainda quentes sobre o fogão e colocara bife-batatas-coradas-feijão-arroz-salada em seu prato e sentara-se à mesa e comera com lentidão – detestaria sentir-se indisposta na manhã de sexta-feira –, aguardando com ansiedade fumegante o momento de deitar-se e cobrir-se com o lençol macio (sua mãe o lavara dois dias antes, e utilizara o melhor amaciante do mercado), momento em que se recordaria languidamente de Célio e de seus longos dedos acariciando-lhe as costas sob as roupas e de sua voz dizendo-lhe mês que vem finalmente... e também mal posso esperar para te possuir só para mim... – frases nas quais pensava com carinho e prazer – ao deitar-se pensara e sentira uma espécie de língua de gato em sua espinha, a lamber deliciosamente cada osso seu, como se suas lembranças tivessem assumido uma forma quente e carnal –; Elisa, aquela que despertaria e iria trabalhar e sairia e sentiria frio sem, contudo, pensar em modificar sua usual vestimenta de sexta à noite, e que subiria as escadas do hotel e que faria amor com ele, forçando-o ao silêncio por meio de silêncio obtido pelo rígido morder do lábio inferior, atitude que adotara desde o primeiro encontro quando, à procura de alguém específico que no entanto não surgia ante sua imaginação impaciente a não ser como um ser vago, caminhava para cá e para lá pela Álvaro Alvim – como fizera em muitas outras noites de sextas-feiras anteriores, sem obter resultado algum além de duas ameaças por parte de um cafetão –, e que, subitamente, o vira, e, de alguma forma que ela mesma ignorava, fizera com que seu corpo se insinuasse contra a noite e as luzes dos postes, atraindo-o e fazendo com que ele se dirigisse a ela com um cumprimento tão vazio quanto um trapo seco, e ela retribuísse esse mesmo cumprimento e os dois subissem ao quarto e ela o tivesse dentro de si por algum tempo; Elisa que esperava que ele descesse as escadas para que então pudesse constatar, sem ser observada, que ele, como sempre, deixara uma boa quantia em dinheiro à cabeceira da cama, dinheiro este que guardaria em um de seus bolsos e que atiraria ao primeiro ralo de esgoto que encontrasse quando saísse do hotel – havia um bem em frente).

            P/ Bertolucci, uma humilde releitura 

Fernando Toledo

 
 

 

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