Perversão

        Quase uma hora da tarde. O sol está a pino. Cida sente a fome apertar, não comeu nada o dia todo. Há mais de duas horas espera algum cliente. Nada. O movimento está fraco, para ela. Suas três colegas já conseguiram programas. Uma delas, a Baiana, saiu num carro importado que mais parecia uma
espaçonave.
        Olha-se por instantes: como engordou de uns meses para cá! Mal cabe na calça jeans vermelha. “Melhor nem comer nada mesmo. Chega de me entupir de doces e outras porcarias”. Encosta-se na árvore e acende um cigarro. “Só vou esperar mais dez minutos. Depois vou pra rodoviária pedir uma grana pro Aristides. Ele me deve mais de cinqüenta paus”, fala aborrecida, segurando com força a bolsa. “Só mais dez minutos”, conta no relógio, presente do Aristides - cobrador de ônibus.
        Passam dois, três, cinco carros a toda velocidade no Eixão. Um vectra preto pára alguns metros a sua frente. Ela caminha lentamente, equilibrando-se no salto já gasto. Assim que se aproxima, o carro arranca. “Babaca”, grita
Cida, mas sua voz é abafada pelo som estridente do motor. Caminha de volta para o seu “ponto”, lamentando ter jogado fora o último cigarro.
        — O Aristides vai ter que me dar aquela grana. Quero só ver se ele vai continuar a fingir que não me conhece na frente dos amigos. Eu arrumo logo outro escândalo, aí eu quero ver se ele não me paga. Quero só ver.
            De repente pára um opala branco, empoeirado. Um senhor de óculos abre a porta.
        — Estou indo para o Lago Norte - diz o motorista.
        —Pra mim está ótimo.
        — Mas antes temos que passar no shopping. Tudo bem?
        — Pra pegar dinheiro?
        — Não, minha mulher.
        — Sua mulher?
        — É, ela pediu que eu a buscasse. Passou a manhã lá, escolhendo um presente...
        — Que programa...
        — A velha gosta.
        — Vai custar mais caro...
        — Eu sei, mas a Joana não liga. Nem eu; afinal, dinheiro é feito pra se gastar, não é mesmo?
        — Uns cem reais a mais...
        — Ela adora ir ao shopping com as amigas. Acredita que elas saíram às dez horas e ficaram até agora escolhendo um vinho?
        — Ela é “entendida”?
        — Entendida? Enóloga, você quer dizer? Que nada, só é aficcionada.
        — Dá no mesmo. Cada uma que me aparece...
        — O quê você disse?
        — Nada. Eu quero chegar logo, tô morrendo de fome.
        — Desculpe, mas não dá pra ir mais rápido. Esse trânsito de Brasília está horrível. Ah, moça, eu esqueci de avisar. Ainda temos que buscar o meu neto.
        — O seu neto também?
        — Eu deveria ter dito antes. Mas não vamos demorar muito, não. A escola fica aqui perto...
        — Quantos anos ele tem?
        — Doze.
        — Mas é um menino ainda!
        — É um rapagão, você vai ver. Já está quase do meu tamanho. Os pais pediram que ele ficasse com a gente. Adoro aquele garoto!
        Cida olha boquiaberta o motorista.
        — Quer saber, tô fora! Pode encostar o carro ali.
        — O quê?
        — Bacanal com velhos até vai. Mas com criança no meio, não! Tudo tem limite, vovô. É muita perversão! – Sai batendo com força a porta do carro. O velho arregala os olhos, sem entender nada.
        — Esse mundo está mesmo perdido! — diz Cida, a caminho da rodoviária.

Ricardo Borges

 
 

 

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