EU + OUTRO

Andando pelo centro da cidade, vi um homem pelado na rua. Me aproximei e percebi que ele segurava uma envelope amarelo. Seu olhar era distante de tudo, menos de mim. O homem me encarou como se estivesse me esperando à séculos, sorriu e sem me dizer nada, colocou um envelope em minhas mãos. Depois sumiu. Fui me sentar  num banco de praça e comecei a ler. Dizia o seguinte:
 
Com a mesma mão que debulhei a espiga do tempo, debulharei também minhas lembranças; a caneta será meu compasso e com ela circundarei minha história. Fui um ponto. Entre o amarelo e o azul, brotei. Entre a luz e a retina, existi. Entre o fogo e a lenha, tive meu corpo. Estive poeta. Fui um olho no vasto céu do sentir. Vesti meus deuses com letras e os agrupei em palavras. Cada parágrafo foi uma missa que rezei. Como Maria, pari muitos Cristos. Verbalizar o que sentia foi minha cruz. Vazei. O invisível me chegou pelas costas. Como um cano, não pude reter o fluxo do meu destino, deixei apenas que a luz se lançasse através de mim  para que chegasse ao continente. Grávido de metáforas, exalei dimensões. Conheci dois Deuses: o amor e a falta. Mas o sonho só  me pareceu real enquanto durou. Derramei o fogo do amor sobre a cabeça de meu demônio e ele me guiou rumo ao centro. Fiz do meu mal um bem e o meu bem se envergonhou de meu mal. Não me condenei e nem Deus pôde fazê-lo. Por querer modificar a natureza das coisas opacas, fiz a escolha transcendente; não pude ser razoável, caso contrário, amar teria sido um erro. A simpatia nasceu em mim quando sofri. A dor me revelou uma só realidade. Se reformei, foi por ter sido filho da tirania. Se busquei justiça, foi porque morri na cruz. Se fui capaz de aliviar a tristeza alheia, foi porque dela padeci. Minha felicidade veio num dia de semana. Quando a busquei, ela se afugentou; quando a persegui, fugiu. Minha felicidade era minha sombra, quando eu a ignorava, me seguia. Assim como os olhos não podem ver a si mesmos, também não pude vê-la, ainda que ela se refletisse no espelho dos sorrisos alheio. Terminei, mas não cheguei ao fim. O que serei é anterior ao que fui. Talvez nunca tenha existido de fato. Os átomos eram velozes e seguiam impulsos aleatórios, não precisavam de mim, eram “onipresentes”.

Quando acabei a leitura, olhei no envelope, viu escrito no lugar do endereço:
EU=EU+OUTRO.
Tirei a roupa e foi para o outro lado da rua.
Logo apareceu alguém.

Marcelo Ferrari

 
 

 

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