A MISSÃO

(Conto inspirado por uma notícia de jornal, obre um seguidor de uma igreja pentecostal)

         O som do avião acima das nuvens: o avião lá, contudo seu instintivo olhar não o avistara. Uma pequena distração que logo seria esquecida, aliás já havia se esquecido.
         Ele carregava em si a missão.
         Apalpou a Bíblia sob o braço esquerdo, e mesmo isto não passou de uma curta distração – caminhava, tinha em si a missão. Nada poderia desviá-lo do destino que lhe fora imposto.
         Ele carregava em si a missão.
         Entrou no ônibus, pagou a passagem, e, de um segundo para o outro, não havia ônibus, não havia os pontos que o separavam de seu ponto: havia apenas o seu ponto, e, lá, a existência se imporia, sob a forma do que havia a ser feito.
         Saltou no ponto que era o seu ponto, e recomeçou seu caminhar: dois quarteirões da lama, dos buracos e da vala que precisava saltar, entraria em casa.
         Porque ele tivera a revelação: entre cânticos e gritos sentira as línguas de fogo roerem-lhe os ossos e sussurrarem-lhe, com clareza maior que a de qualquer grito, o que havia a ser feito – e sorrira: há muito sabia que teria, um dia, de fazer o que estava prestes a fazer, mas o receio de errar, de cometer um erro irreparável, sempre freara seus atos.
         Contudo, naquele momento em que sentira em si todo o poder infinito dos céus trovejantes, soubera que Deus sempre estivera a seu lado, e apenas a falta de fé não permitira que fizesse o que havia a ser feito. Não agora: agora a missão não era apenas pressentida, fora revelada de maneira indubitável e claríssima – por isso corria a realizá-la. Entrou em casa.
         As crianças brincavam na sala; a televisão estava ligada; sua mulher acabava de preparar o jantar e lhe dizia algo que não chegava nem mesmo a fazer sentido. Ela não desconfiava, não sabia que ele carregava em si a missão  – permaneceria na ignorância, não era digna de conhecer Seus desígnios.
         Jantou. Passou algum tempo na poltrona, lendo a Bíblia, e beijou as crianças quando elas foram dormir.
         Ele carregava em si a missão.
         Quando sua esposa deitou-se, deitou-se com ela. E sentiu vontade de fazer amor com ela. E acariciou-a, e penetrou-a, e ejaculou e limpou-se. Logo depois, ela dormia. Para ele, nada acontecera. Carregava em si a missão.
         E saiu da cama, e foi à cozinha, e tomou da faca. E foi ao quarto das crianças. Primeiro o menor, depois o primogênito. Os dois degolados. Limpou a faca. Ainda restava sua esposa.
         Sua esposa – nada mais faltava.
         E as notas desafinadas do cântico que iniciou preencheram a noite, perturbando os vizinhos.


Fernando Toledo
26/04/91

 
 
 
 

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