O pedágio

É noite, é sexta-feira. Ao longe, um pedágio; aquele teatrinho permanentemente em cartaz nas estradas; é sempre a mesma cena, mas é curiosa. Nada, porém, é tão estranho quanto um pedágio com passagem livre, como uma moldura vazia envolvendo a estrada. Lembro dos pilotos que, dizem, sentem-se atraídos a deixar o avião continuar no mergulho até o chão. E é o mesmo Tanatos quem pisa comigo no acelerador, dizendo "e se você não diminuísse, entrasse sem pensar muito sobre velocidade, ou sobre o momento em uma saliência da cabina te escolhesse como stunt  em cena; tentasse encontrar o limite máximo e, aliviado, descobrisse do outro lado que fora poupado?"
Poderia ser uma brincadeira, uma injeção qualquer. Voltando de um sitio, de uma festa, me lembro muito não, lembro apenas que fazia frio, todos escondidos num canto, no meio uma fogueira quase sozinha. São João seria. Andáramos por algumas estradas de terra durante o dia, a poeira fazendo redemoinhos no ar; e, nem deitados na rede, nem saindo da água na cachoeira, as coisas melhoravam entre nós. À noite, quando o vento deixou a casa isolada, assobiando por todas as janelas, o frio limpando o ar, as frases que a gente trocou (foram poucas essas frases) pareciam ficar um tempo suspensas, misturadas aos elementos enfurecidos, antes de tombar em suas conseqüências.
Um encontro compreende várias etapas. De início, parece que a distância va  aumentando a cada frase, até que nada mais resta a ser dito além de adeus. No entanto, se as pessoas insistem, mais uma vez a barreira do outro é demolida; num certo instante, os dois egos desistem; sem querer, um sorriso que o outro respondeu, e as máscaras de drama caem, enquanto duas xícaras sobem. Depois do café, no quarto, uma cena de morros uivantes. Depois da festa retornaríamos. Desencontráramo-nos um pouco, mas, tornaríamos a nos encontrar.
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A manhã sempre sugere novas idéias, a realidade volta a ser o despertar de um sonho, desce-se um degrau, e uma janela reaparece com seu contorno e cara de janela. O mundo denuncia o império da ordem, os fragmentos de sonho lentamente esquecem-se na cabeça. Estranha essa matéria com que se constrói em detalhe a realidade, mas que não aceita o domínio da memória. Sobra apenas um adesivo colado no vidro do tempo, com qualidades estranhas; tocado, exala um perfume que sempre sou incapaz de reconhecer, talvez um cheiro de folhas úmidas; pendurada, uma data, como numa foto 3 por 4. O quadro vai se abrindo, cores, manchas luminosas que o foco vai aproximando: em objetos, a representação de um sentimento; inscrito na forma, o volume de seu significado. Como um filme brinca sobre o corpo estirado na poltrona, ao despertar acreditamos em duas formas de existir, até que um estímulo devolva-nos apenas uma certeza, como uma mão a pele do rosto.
A promessa esfriara com o lençol; as sombras, durante o dia, esconderiam uma voz noturna; nos olhos, ao se cruzarem despertos, as sugestões da noite confundiriam-se no fundo infinito da íris. O verde raiado em teus olhos ganhava todos os tons do castanho; uma estrela clara dançava os teus pensamentos. Por sobre a mesa do café, nenhum dos dois se empenhava nos gestos ou nos sorrisos, e os sons de nossas vozes mantinham distância do anúncio de seu significado. A faca de pão era somente a borda de uma lâmina; entre o alimento e a boca um esquecimento, a cada fatia de pão, um novo. Na mesa da qual levantávamo-nos às pressas, pressa de rotina, desenhara com migalhas a ampulheta dos gestos.
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O pedágio vinha ao meu encontro, varrendo a estrada; sobreviveria, eu tinha certeza. Mas, meu desejo de conhecer uma fração de tempo indefinida, passar pelo relaxamento que antecede a vigência dos elementos, o ruído das rodas do carro na grade indicando a salvação, o que lá que isso fosse; não diminuía.
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Abaixado, procurando a amora mais preta no meio de um tufo de folhas, quase à espera, teu rosto empalidecido acompanhava meus movimentos, uma vigília formal, eram ainda assim teus pensamentos que comandavam os meus gestos. Atenta, meditava. Com esforço visível conseguia unir contenda e familiaridade, escondendo no volume das pálpebras um espírito carregado de intenções, íncubo de instrumentos sutis. Procurando as amoras eu esperava, não acreditando; como agora não acredito, nessa parede de buracos atravessando a estrada, na relação entre ela e a ponta de meu pé apertando o acelerador.
"Podemos conversar um pouco?", e a frase fora tão longamente meditada que o ponto de interrogação parecia uma vírgula, uma pausa de assentimento para que eu pudesse inclinar a cabeça e liberar teu discurso premeditado. A neblina matinal recobria todo o vale, os dedos preguiçosos da aurora tropical demoravam a devolver a cor que somente ao meio-dia seria estampada nas coisas. Entre as copas baixas das árvores do pomar nossas vozes não tinham eco, e tuas exclamações eram o reverso possível de uma queixa: o amor acabara, restava cuidar da vida. Mas ainda que fosse verdade, eu não acreditava; pois, senão, como explicar o desapego de nossos passos, a concavidade das mãos pousadas, a calma com que eu concordei com todas, poderia dizer, com qualquer uma de suas propostas, as mesmas, essas com que duas pessoas terminam uma relação amorosa, palavras curtas respondidas por um "certo" sem ênfase, os dois virados meio de lado, como passantes se cumprimentando numa esquina. Traduzidas, no entanto, elas soariam como "vai embora, me deixa em paz!", apesar da frieza com que foram ditas. O mero assentimento ganhava ares profundos, repercutindo num fileira de dias, respondendo ao quotidiano e à simbologia da noite. Por isso ficávamos parados, pensos, poupados pelas vozes intermitentes dos pássaros de considerar tudo naquele momento como predestinado, seus pequenos gritos fazendo baixar a esfera de sensações ao mesmo nível da aspereza da grama, da inclinação pesada dos frutos, do tenso frescor sob as copas de folhas ressequidas.
Éramos duas decisões, subíamos a colina irremediavelmente afastados como dois trilhos, e quando me desviei para contornar, já por uma das últimas vezes, a casa, não restara nenhuma estranheza no meu andar. O "L" em que o tanque se encaixava, concreto em aparência e função, simulou um primeiro marco de nossas várias separações.
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Pé na embreagem, esperava que meus sentimentos permitissem a mudança da marcha, mão na alavanca de câmbio, agarrada como se fosse o último recurso de sobrevivência. E aquele mesmo senhor tenebroso dizia em meu ouvido "pode trocar pela terceira, reduzir, pode tirar o pé esquerdo e estender o direito, até que a fileira de luzes desapareça, o ruído das grades na passagem das rodas, e pronto; pode..."
As luzes amarelas compassavam as cabinas, esboçando o contorno de um labirinto estendido entre as bordas da pista; de um limite a outro, as suas portas; a cada piscada, a oferta de suas opções; o Minotauro ocupado em raspar a camada de asfalto, para que nenhum fio tornasse a enganá-lo, para que Ariadne se submetesse afinal aos desígnios de seu pai. Em todas as cabinas apenas o espaço necessário para que um corpo realizasse seu pequeno ritual de esmoler do estado.
Um homem velho atravessaria a pista, um sacerdote preparando um sacrifício; cinco passadas curtas, e uma nova cabina sendo aspergida, readquirindo existência, seu lugar no mundo demarcado. No vento de oitenta quilômetros por hora, na rotação inútil dos motores, no empenho de esquecimento dos motoristas, os automóveis esperam a travessia do ancião, o homem para o qual a cerimônia fora encenada, o único a entender os seus diversos significados, a ordem cósmica na qual aquela espera se inseria. Todos ali desenfreadamente parados; uma cabina e outra cabina. E, então, eu percebi que era aquele instante de elevação que me irritava, ao exigir de mim uma resposta ativa, custando que fosse a vida, todas as faces do dado.
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E súbito passara. E a única coisa estranha fora ouvir o som da passagem das rodas pela grade com tamanha rapidez. No funil de asfalto quilômetros novamente, distância medida em tempo. Coloquei o carro na velocidade de viagem.

Clóvis Ferraz Wey Júnior
 

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