De que as aparências enganam, ninguém duvida. Este é
um ditado muito antigo que atinge todas as camadas sociais, mas que é
ainda mais verídico para aqueles que conhecem a fundo determinado
senhor interiorano cuja primeira impressão que nos passa é
a de um mero caipira.
Sr. João, ou mais corretamente Mestre João, quando metido
em sua terra natal, num chapéu de palha exageradamente grande e
andando em torno de suas plantações com as faces vermelhas
de sol, os olhos inclinados na terra e o ar cansado, mas feliz, indicando
alguém que já viveu suficientemente para estar em paz consigo,
não indicava o outro homem que, em trajes bem diferentes, cobrindo
aquele mesmo porte, lecionava filosofia na cidade grande. Mestre
João era, de fato, um dotado; nascera numa família de fazendeiros.
Quando jovem, desinteressado do cultivo e indiferente às produções,
optou pelas letras. O espírito, não tanto religioso,
mas exigindo de seu entendimento um maior saber sobre a vida, iniciou-o
muito cedo na leitura. Através de amigos, filhos de vizinhos
de seus pais, conseguira sempre ler bons autores e se aperceber das correntes
filosóficas que, ora remetiam ao ideal de se extrair da vida todos
os prazeres, como era o caso dos epicuristas, ora imbuíam o ser
humano da capacidade de nada temer, nem mesmo a morte, sabendo resistir
com dignidade ao sofrimento, como defendiam os estoicistas, dos quais,
segundo Mestre João, Montaigne era um belo exemplo.
Quando lera pela primeira vez os Ensaios, sequer conseguia situar devidamente
no tempo e no espaço esse filósofo que tanto o impressionava.
Só à medida que se foi entrosando em conhecimentos mais profundos,
ao longo dos anos que passou na faculdade, conseguiu definir melhor e diferençar
os aspectos e os posicionamentos das diversas correntes filosóficas
que, percorrendo os tempos, deixavam ideologias, pontos de vista e concepções
de vida aflorarem ao espírito dos homens, influenciando enormemente
o seu.
Os anos se passaram e a vida de Mestre João não conseguiu
nunca uma linha limítrofe definitiva entre o campo e a cidade.
Com a morte dos pais, herdara a fazenda e sentia-se responsável
também por aquele patrimônio que, vindo de gerações
distantes, devia distender-se a seus filhos, a quem seria mais justo dispor
ou não dos bens deixados. Daí, sua vida se ter
sempre dividido sem perder em sua fisionomia e em seus comportamentos certas
características rústicas pertencentes ao homem do campo.
Tinha tantos amigos ali quanto na cidade em que lecionava, embora não
fosse um espírito extrovertido ou participante. Desculpava
a ignorância daquele povo humilde, amigo, mas tão distante
do saber a ponto de valorizar mais uma flor prestes a dar fruto do que
a inteligência humana à qual só Deus é superior.
Na cidade, porém, irritava-se contra a imbecilidade e a incapacidade
da maioria, que se perdia em noitadas alegres, elevando ao extremo o nome
de ídolos musicais e cinematográficos da época, ao
mesmo tempo que desconheciam por completo os vultos literários ou
históricos do passado. Naquele meio, onde a cultura tinha
de prevalecer, Mestre João dava asas ao saber e até buscava
numa linguagem empolada explicar o envenenamento de Sócrates, as
descobertas de Galileu Galilei e a racionalidade de Descartes. Evitava
falar de Santo Agostinho cujas Confissões, apesar de o emocionarem
profundamente, soavam-lhe como um excesso de prisão religiosa, comportamento
que os estudantes de seu tempo, diversificados em meio a tantas crenças,
não chegariam nunca a entender.
Mestre João era uma pessoa comum, mas mesmo assim a sua personalidade
exigia análise. Simples e comunicativo entre os amigos do
campo, arredio em meio aos colegas e alunos da cidade; poucos eram aqueles
que conseguiam penetrar-lhe no íntimo ou conhecê-lo a fundo.
E, se para alguns, a sua figura parecia mítica, para outros, injustamente,
é claro, não passava de um "caipira disfarçado", um
"ermitão de terno e gravata" ou um "filósofo, dono de fazendas".
Mestre João ignorava os apelidos e vivia a vida que Deus lhe deu.
Cuidava de suas terras, mas curtia as leituras infindáveis que lhe
enchiam o espírito, dando-lhe sempre um sopro de tranqüilidade.
A difícil vida de professor se, de certo modo, cobria as despesas,
de forma alguma permitia-lhe excessos. Estes também não
eram os seus preferidos, se pudesse evitaria sempre aglomerações,
lugares de muita gente, conferências, festas e até congressos.
Mas a vida não lhe permitia isolar-se, ele mesmo ensinava diariamente
aos seus discípulos que já se fora o tempo em que o literato
vivia de divagações, alheio à realidade. Além
do que, apesar de optar pelo silêncio das leituras, sentia também
certa solidão quando afastado da cidade grande por muito tempo.
Por todos estes conflitos íntimos, Mestre João era uma pessoa
estranha e isto transparecia a olhos vistos. No fundo de si mesmo,
apesar do amadurecimento filosófico, parecia não se
adaptar ao mundo em que vivia. Lecionou até aos sessenta anos
de idade, depois, como já tinha tempo de serviço, aposentou-se.
A princípio, se sentiu realizado; a filosofia exigia horas descompromissadas
de investimento meramente pessoal. Tempos depois, irritou-se.
Tentou, então, reagir à inapetência da idade, formando
um grupo particular de alunos interessados em filosofia; segundo Mestre
João, a sua ciência significava uma espécie de compreensão
melhor da vida. Ele verdadeiramente não compreendera ainda
muito bem a sua própria existência, mas com um pouco mais
de conhecimento não haveria de falhar.
Poucos meses depois de iniciar o seu curso livre, tinha já nos
discípulos -- pessoas em que a terceira idade começava a
delinear seus traços -- amigos certos. Às vezes, entretanto,
Mestre João deixava a desejar, não em sabedoria, mas em personalidade.
O seu discurso assumia, não raro, a aparência da ilegibilidade.
Queria traduzir para o mundo atual os preceitos mais elevados; Sócrates
era o seu grande ídolo, embora, se referisse muito mais a Platão.
É que o Mestre passava a se envolver nos problemas políticos
de seu tempo confrontando-os com os preceitos da República.
Só podia ter enlouquecido! Empolado, enfático no que
abordava, esquecia-se de que dois ou três daqueles discípulos
eram, por sinal, parlamentares e atuavam no poder público.
Mestre João, por sua vez, não hesitava em excentricidades;
calcado nos preceitos filosóficos, para ele tudo tinha de ser pelo
moral e bons costumes.
Frente àquela classe, a sua figura começou a se tornar antipática;
ele sequer se dava conta disto ou se mostrava interessado, também
se sentia aborrecido, falava a uma dezena de pessoas que, cada vez pareciam
entendê-lo menos, e, em seu espírito, as ideologias que pregava
nunca se lhe haviam surgido tão claras e certas. Indo, num
fim de semana à sua fazenda, meteu-se, como sempre fazia, nos seus
trajes interioranos, enfiou o chapéu de palha na cabeça e
foi andar pelos campos. Pela primeira vez se identificou, de fato,
com a ignorância encontrada ali. Talvez não fosse maior
do que a da cidade, apenas mais rústica.
Sentou-se, então, sobre uma pedra, começou a pensar ocasionalmente
na vida e, pouco a pouco foi levando cada vez mais ao passado as suas lembranças.
Nada se remediara no tempo, a sua angústia podia, agora, ser
interpretada como uma espécie de remorso normal à velhice.
Não lamentava o que fizera, mas o que deixara de fazer. Dedicado
unicamente à filosofia, existira, mas esquecera-se de viver.
Estava velho, cansado, desiludido e só um rastro de paz interior,
certamente o amadurecimento filosófico conquistado pela leitura,
dava-lhe a sensação lenta de um sono brando. Encostou
a cabeça nas mãos e como um último pensamento naquele
momento, as palavras sábias do grande Montaigne emolduraram-lhe
na face um sorriso dócil: "Filosofar é aprender a morrer".
Regina Souza