Teia no quarto

     Havia uma teia no canto do quarto. Bem no alto, ela ficava, pequena, sem muita pretenção, sem muitos fios. Ela somente existia para sua criadora, uma aranhinha vermelha, de pernas longas e finas. Seu mundo era aquele e sua visão, ampla, como que uma visão privilegiada. Foi assim que conhecia o que se passava com o menino. Sabia de seus mais profundos sentimentos. Não, não lhe falavam nada. Aranhas não escutam, apenas vêem. Via nos olhos do menino o que seu coração trazia. Para ver ela precisava simplesmente olhar bem dentro, mas somente dentro de seus olhos de criança. Não lhe faltava oportunidade...
    — Quando foi a ultima vez que vimos seu pai?
    — Não sei. Acho que duas semanas...
    — Não fale besteira, moleque. Até parece que acordou agora. Ele tá longe faz tempo. Bem uns dois anos.
    — Num sei. Sei lá. A senhora que sabe.
    — Sei mesmo. Sou eu que carrego o peso dessa vida sozinha. — Os olhos da mulher correm pela casa. — É, só eu sei a falta que sinto daquele cabra.— Não encontando o que procuram, seus olhos vão ao chão. — E você? Já cuidou de separar as entregas de amanhã?
    — Já sim, mãe.
    — Então, vá dormir. Me deu muito trabalho por hoje.
    — Sim, tô indo.
    Seus passos dirigem-se para o fundo da casa mal iluminada. Nas paredes cor de laranja, desbotadas, penduram-se partes de uma vida, retratadas nas fotos de casamento e batizado do filho. A pobreza tratou de transformar o contraste das ocasiões de festa em fantasia e ironia. O menino chega a observar o sorriso de seu pai, carregando-o no colo. Seus olhos, levantados como seus pés descalços, buscam alguma felicidade naquele momento. Volta-se espantado para a mãe, surpreso:
    — Mãe, o pai tava feliz aqui, ó!
    — Menino, que doidera! Esse homem só me lembra tristeza. Além  do mais, ocê sabe lá o que é feliz?   Vai pra cama e durma! Acordo cedo, sabia? Vai logo e me deixe em paz. — Sua voz continua a cochichar, como que para si mesma: - Se fosse homem direito, tinha dado satisfação e não me deixado desse jeito. Diabo de marido esse que eu arrumei!
    O garoto, enquanto isso, adiantava-se pelo corredor. Era, agora, a sua vez de olhar para o chão. Doía saber  que seu pai não voltaria. Lembrava-se de seu jeito de falar. Como poderia se esquecer? Seu sorriso despontava quando via o pai. Como sentia-se seguro próximo dele. É bem verdade que ele era bravo e perdia a paciência fácil, e acabava por brigar com a mãe. Ihh! Ele vai vim me procurá! Só sua vida lhe era pesada como a mão do homem que era seu pai. Seu coração não acreditava em desamor, sentia a ausência e nem se lembrava das surras que levava. O menino sentia carinho por ele. Lembra-se também que fora esquecido na porta da escola no dia em que seu pai desaparecera. Até a mãe esqueceu do horário. Três horas depois, um vizinho levou o recado da professora, dizendo não poder mais deixar o menino lá dentro. Até minha mãe! Não se importa comigo! Também o que interessa é que meu pai vai voltar! Ele disse que gostava de mim. Nele eu acredito.
     Esse pensamento ajudou a trocar suas roupas. Iria dormir agora, sonhar com uma volta. Ah! Ele vai voltar pra me pegar. A cama rangeu com seu movimento de esperança, buscando uma posição confortável na cama simples. Seus olhos brilharam intensos. Isso foi antes do menino pegar no sono.
     Psiu! A aranha tecia mais teias no canto do quarto. Agora ela resolvera atravessar de uma extremidade a outra, buscando mais chances de sobreviver. Era sua garantia de vida. Olhou uma vez em volta e viu o menino. Continuou a tecer, devagar, bem devagar.
    — Menino! Tá na hora. Força! Levanta, que não vou chamar mais. Tô de saída pras entregas e vai ficar sozinho.
    — Não tenho medo. — Aconchegou-se tranqüilo na cama, de olhos fechados.
    — Quem perguntou? Falei pra levantar.Tô mandando.
    — Tô indo. — Seus olhos fixaram-se na imagem da mãe, que no fim do corredor, olhava a foto na parede, a mesma que ele vira na noite anterior. – Tá fazendo o quê, mãe? É o pai?
    — Não, não é nada. Sabe que vou até tirar isso daqui? É melhor.
    — Não! — os passos do menino são rápidos e evitam que  a mãe levante o braço para alcançar o quadro. — Não! Deixa ele aí. Não mexe não.
    Uma compaixão pelo garoto toma conta de seu coração. Ele ainda tem esperança... Vejo isso na sua carinha de esperto e malandro. Foi a única coisa que o homem me deu de bom. — Não vou tirar. — Um afago lhe escapou das mãos e percorreu a cabeça do menino. Quando deu por si, estava agachada, abraçando-o. — Não vou fazer isso.
    — Tá bom, mãe. Deixa eu lavá o rosto.
    — Vai logo então. — E seus braços desacostumados aos do filho, deixam ele correr livre para o fundo da casa. Uma respiração profunda a deixa tonta. Apóia a mão na parede. O sol ainda não iluminara direito a casa. Nem nota que as paredes são escuras e desbotadas.
    O menino, contente, aparece já vestido com sua roupa de trabalho. Ajudava a mãe a entregar o papelão recolhido no dia anterior. Era dessa forma que conseguiam o alimento de todos os dias. A mulher de cabelos presos e bem penteados, de expressão cansada, caminhava todas as tardes para recolher o material. No outro dia, bem cedo, percorria seus clientes, vendendo o que conseguira. Depois, ia para o trabalho, do qual tinha um ganho fixo. Era trabalhadora de mão cheia, honrava-se de seu esforço, reclamava de seu bolso vazio. Dava conta de sua família, reduzida a seu filho e ela. O menino ajuda no que pode. Eu sei disso. Precisava só parar de sonhar. O homem não volta. Olha seu jeito pra ir trabalhar. Parece que vai brincar. Notava que o filho ajeitava-se dentro da roupinha franzina e velha. Tinha o sorriso estampado no rosto e a alegria no coração. O homem não volta, já disse isso. Não acredita.
    — Mãe, tô pronto. Vamo?
    — Vamo logo.
    As mãos dos dois se uniram e prosseguiram para a jornada de sempre até, quem sabe, um dia.
    No teto do quarto, a aranha vermelha, parece que ainda mais vermelha!, corria em busca de teias mais fortes e longas. Era sua forma de sobreviver.
    Na parede do corredor, dependurados na parede alaranjada e desbotada, os quadros da vida permanecem imóveis.
    Nos quatro cômodos da casa mãe e filho viviam. Em dois deles, havia vida. Uma extinta. Outra em construção.

Márcia Cristina Rodrigues Pereira


 
 
 
 

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