O PAREDÃO

No bar, um amigo. Antes do amigo, o paredão. Na esquina, observo o movimento. Fumo. Um rapaz elegante e um livro técnico nas mãos. A noite promete. Retiro da bolsa um pequeno espelho. Retoco o batom. Avermelho os lábios. Muito a fazer antes de fechar os olhos e tentar dormir. O corpo arde, deseja. Profissionalmente. Sou uma profissional. Fumo.

A noite apenas começa. Hei de aparecer no bar. Rever um amigo. Dizer-lhe que ainda sonho com o príncipe encantado. Ele, em seu cavalo branco, virá arrebatar-me das garras dos cotidianos noturnos e sumiremos estrada afora. Pedirei ao músico a minha canção, gravada antes de eu a compor. Ouvirei do amigo: você anda bebendo demais, ó senhora do paredão.

Que vá à merda. Pedirei outra cerveja. Virarei na frente dele um copo deste líquido estupidamente gelado. Insistirei em meu pedido musical e o garçom não me contará pela milésima vez a mesma história. Depois, voltarei para cá. Mas nunca, jamais, nunca, olharei nos olhos do amigo. Ele já me conhece demais.

***

Assim fiz. E cá estou eu, presa, bêbada, ousada, ouvindo ao longe minha música. Um sofrer sem porquê. Um gosto nem doce nem amargo. Embriagada, transando metaforicamente com o paredão. Viúva negra à espera de assassinar o macho. Vil objeto à espera de um dono. Quem usa é usado. Quem é usado, usa.

Melhor não pensar nestas coisas. Faz mal para o sorriso, além de alimentar rugas. Por isso acendo novo cigarro, retoco a maquilagem. Disfarço-me. Meu corpo é instrumento atrativo do que faço. Não posso decepcioná-lo. Nunca exerci outra profissão. Na transa, freguês nenhum reclamou. Ao contrário, muitos voltaram. Este senhor que se aproxima parece-me, entretanto, desconhecido.

Chegará até mim, perguntará o preço e o local. Dirá que está caro. Contará mentiras. Lindas mentiras. Rirei fingindo acreditar. Me levará do paredão e antes do meu orgasmo, dirá que chega, que valeu. Me pagará e mais tarde contará bravatas numa roda de amigos. Mentirá sobre sua satisfação animal. Sorrio.

Não tem jeito de príncipe encantado montado em cavalo branco. Turista, deve ter muito dinheiro. Acho que vou aumentar o preço. Como ele vai reclamar, ainda saio ganhando. Há vários lados para se ver um único objeto. Sinto-me até inspirada. Embriagada, em busca de amor. Sede de prazer. Tenho pensamentos bonitos. Sorrio.

Mas não adianta. Nem diminuiu os passos. Besta é ele. Não quis provar doces lábios, mãos macias, língua atrevida. Negou-se sentir-se homem, tirar minha roupa, domar meu corpo sedutor. Depois partiria levando consigo a minha lembrança e os seus medos, enquanto eu voltaria ao paredão e esperaria o próximo.

O próximo há de ser tímido e relutará em se despir. Sem problemas. Eu o dispo. Ou ainda, será um homem agressivo. Ordenará eu raspar meus pelos e me penetrará só pensando nele. Me agredirá como a sociedade me agride. Regressará. Quem sabe será uma mulher, que oferecerá suas coxas para eu deitar, enquanto acende um baseado.

Tolos pensamentos. Tolas ilusões com gosto de pecados. Já não ouço mais minha música. Estou perdida envolta em finas sedas, que não passam de grades, de jaulas decoradas por teias de aranha. Apeguei-me à ilusão de tal forma que já não consigo usar máscaras para mim mesma. Mas eu não preciso de mim, preciso de clientes.

Clientes de cabaret de luxo, onde serei rainha, onde cantarei para os fregueses a minha canção: Ainda é cedo amor, mal começastes a conhecer a vida, já anuncias a hora da partida. Sem saber mesmo o rumo que irás tomar. Preste atenção querida... Hum... um lugar luxuoso... luxo! Na França, por exemplo. Sei dançar can-can?!?

Se não sei, aprendo. A noite prometia. Não deveria beber tanto. Sinto-me tonta, como à beira de um abismo. Minha vida, mistura de vidas. Agonizo. Quero um colo, uma palavra. Os olhos de meu amigo que me conhece tanto. A velha história do garçom. A vodca, a caipirinha, a cerveja estupidamente gelada. Quero ser mito e em menos de um mês morrer. Coincidência esta de morrer poucos dias depois de tornar-se mito. Droga, estou chorando, preciso retocar a maquilagem.

Não deveria ter misturado vodca com cerveja. Nem cabeça confusa com corpo ardente. Com vontade de vomitar, agarro-me a este paredão, fiel companheiro de tantas noites. Este sim sabe das máscaras que os habitantes dessa cidade usam. Máscaras que se reproduzem velozmente. Entre uma máscara e outra há uma fresta de espiar. Sou profissional curiosa. E bêbada.

***

Voltei ao bar. Pedi ao garçom um analgésico. Em comprimido, claro. Ele me trouxe. Esqueceu a água. Não fez mal. O tomei com cerveja. Meu amigo já foi. Um freguês do bar não tira os olhos de mim. Hoje não, amanhã. Ganho mais do que muita gente por aí. Os olhos dele me seduzem. Qual a cor dos olhos de um príncipe? Quero dormir, descansar. Ouça-me bem amor. Preste atenção... Garçom, mais uma cerveja. Eu tô muito bem, tá ouvindo? Traz uma champangne francesa legítima. O mundo é um moinho... Ama-me. Sinta-se rei. Vai triturar teus sonhos... Sinta-se rei. Tão mesquinhos... Rei francês com prostituta de luxo. Vai reduzir tuas ilusões...

Carlos Reis


 
 
 
 

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