A história é
simples, elementar. Dalva não queria namorados, estava cansada do
primarismo dos machos, da pressa que eles não sabem disfarçar.
Eu não tinha pressa: isso era uma vantagem mas não garantia
coisa alguma. Dalva me olhava sem atenuar a desconfiança. Esperava
eu dizer grandes frases, ambiciosas, construídas quase todas à
base de promessas. Mas eu não fazia grandes frases e só prometia
aparecer no dia seguinte.
Dalva ia se desarmando aos
poucos, mas muito aos poucos, já que meu ritmo não permitia
rapidez nem para seu experimentado ceticismo. Eu nem tentara beijá-la
ainda, e já fazia um mês que nos falávamos.
No escritório de
contabilidade onde Dalva trabalhava eu nunca aparecia, nunca. Não
iria atrapalhá-la em pleno trabalho. Mas telefonava sempre quinze
minutos depois do começo do expediente e quinze minutos antes do
fim. Para lembrá-la que era lembrada, para lembrá-la que
eu sabia lembrar. A memória é lenta, ela sabia.
Ligava sempre de um orelhão,
com uma ficha apenas, deixando claro que seria breve. E só perguntava
como ela estava, como as coisas iam na vida pacata que ela escolhera contra
tantas ameaças.
Antes que ela mesma suspeitasse
aprendeu que eu não seria uma ameaça. E foi ela quem propôs
o primeiro cinema. Foi ela quem, na terceira saída, beijou furtiva.
Foi Dalva a pessoa que traiu um princípio de impaciência.
Eu tinha tempo, trinta e cinco anos vividos, mais do que o suficiente para
não cair em tentações ligeiras e ainda possuía
energia para saber esperar. É preciso força moral e força
física para saber esperar. Eu me orgulhava dessa força, me
olhava no espelho e via o rosto limpo de um homem de verdade. Os olhos
de um homem onde se não há brilho não há estrela
cadente.
Esperei, é o que
devia fazer, é o que eu tinha ganho do mundo, sua lição
de estrategista frio contra todas minhas ilusões esfaceladas durante
a infância, a adolescência, a juventude e os primeiros anos
de adulto. Esperei. Dalva me olhava, agora, já com aflição.
Eu tinha meu trabalho, ele
exigia investimento a médio e longo prazo. Cansado de ver colegas
sucumbirem em empresas fantasistas, eu não arriscava uma ação
precipitada, e media meus lances, cozinhava a expectativa fútil
da clientela, não oferecia além do que podia. Visitava as
pessoas, fazia contatos, ia estabelecendo com o correr dos dias, das semanas,
dos meses (minha meta eram os anos, saber conviver com os anos sem me antecipar
a eles) relações de troca, de compra e venda onde a mola
fosse a oportunidade e uma oportunidade é quase sempre uma aparição,
uma fagulha única.
Um dia recebo um fonograma
em minha casa: é de Dalva, e ela mostra os sinais inaugurais de
uma ansiedade até então amordaçada. Quer porque quer
que eu me decida. Me decidir? Um sorriso feito da mais funda tristeza corta
minha boca.
Ligo para ela, não
mais do orelhão: “é que...” E nada mais digo.
Ficamos uma semana sem nos
falar. Minha carne quase não descansa, porém passo os dias
na cama depois que volto das visitas aos clientes. Não tenho telefone.
Não gosto de uma chamada estridente. Não quero contatos fáceis
nem equívocos, tão fáceis de se criarem na vida. Dalva
é essa fagulha? Preciso separá-la do que ela viveu e vive
para vê-la melhor.
As pessoas se protegem do
que verdadeiramente pensam e desejam numa existência de mentiras.
Durante muito tempo Dalva foi traída pelo discurso e a violência
dos outros, e quanto está diante de alguém que se nega a
isso queixa-se da ausência de uma fala que conduz ao discurso que
a deixou abandonada e reclama uma energia que é o passo inicial
de uma violência que a ofendeu. É nela mesma que vive sua
inimiga e se está pronta para trair-se, pronta estará para
me trair.
Outro fonograma: Dalva.
Diz que não me entende. Que agora estava levando fé mas está
deprimida com minhas contradições. Contradições?
Mas que afirmação minha foi desmentida por mim? Que aceno
fiz e logo depois infielmente desfiz?
Chego ao espelho só
por hábito: sei exatamente o que vou enxergar.
Paulo Bentancur