O auto-retrato

    “Eu estou aqui nesta cela escura, diante do nada, confundido com a escuridão, devorado pelo medo do que está por vir...” Em um cubículo escuro, fétido e angustiante, um ser se consome temperado pelo seu próprio medo, um medo que cresce progressivamente, teimando em acompanhar a impetuosidade do tempo, um medo que ocupa todos os espaços, invade a fronteira da harmonia e profana a lucidez.
    “O que está para acontecer comigo não é nada que já não tenha acontecido, ou esteja por acontecer a tantos outros homens, aqui ou em qualquer outro lugar do mundo! Eu sempre lutei e não temi a nada e nem a ninguém, e agora em que tudo parece terminar, eu não morrerei como um covarde! Se tivesse que morrer cem vezes pela revolução eu morreria...A vida só tem sentido quando se está politicamente engajado, uma mente ideologicamente desarmada, é uma mente morta, um ignóbil é um escravo das forças opressoras, que afogam a vida social em um mar de injustiças, a única solução é a ruptura radical com a estrutura do poder. A subversão será a nova ordem. Uma geração de novos homens está por nascer das chamas da revolução, uma geração de homens conscientes de seu papel histórico, ideologicamente comprometidos com a justiça social, completamente voltados à vida social, a esfera dos interesses privados está condenada! Minha existência foi uma existência com sentido, eu ajudei a construir a nova história, uma história da libertação, da justiça e da felicidade coletiva...Nós construímos um novo ideal, um ideal imperecível!”
     A escuridão das trevas invade as centenas de celas, o horror avoluma-se e se faz o maior inimigo dos nervos esgotados, uma onda de frio se espalha como uma epidemia, gritos de desespero cortam o silêncio a proporção que a impetuosidade aritmética do tempo se protrai.
 
 

    “Por que estes vermes gritam? Covardes! Não sabem morrer com dignidade, não conseguem compreender que suas existências mudaram os rumos da história. Por quem choram? Por si? Pelos seus filhos e mulheres? A vida privada é um mal que deve ser destruído, anulado...Onde está a vossa dignidade? O verdadeiro amor é o amor pela revolução! O medo é um sentimento dos fracos, dos indecisos, é um sentimento pequeno diante da grandeza da certeza de um ideal concretizado. Nós morreremos mas entraremos para a história!!!”
     De repente os gritos cessam, o silêncio mergulha os homens em um desespero solitário, um conflito secreto que cada homem trava com seus próprios valores, lembranças e desejos. O muro que forma o paredão da consciência moral de cada criatura, desfaz-se em pó, e por trás da cortina da consciência pulverizada emerge um mundo dante secreto e desconhecido, um mundo que lança cada homem contra si mesmo, em um conflito que antecipa a própria morte.
     “Este silêncio é insuportável, eu já não me reconheço, o que está acontecendo comigo?! Eu vou ser fuzilado e nem mesmo conheci o amor de uma mulher! Será que eu estava errado? Será que a revolução transformará a vida dos homens para melhor? Tantas mortes justificam um ideal? Eu já não tenho certeza de nada, só me vejo abatido como um frango, um pedaço de carne ensangüentada, mais um dentre milhares de cadáveres sem identidade. Eu estou com medo de morrer? Nunca em minha vida eu havia me indagado desta forma, eu vou morrer e não fiz nada por mim, reduzi a vida a uma única esfera. Eu não quero morrer!!!”
     O desespero aperta e lança cada homem para fora de si mesmo, o delírio explode em uma agonia coletiva, enfurecida com o raiar dos primeiros feixes de luz.
    “Quem é você?! O que quer de mim?!” A cela escura e recheada de ratos e insetos, transforma-se em um templo religioso ricamente ornamentado, em todo lugar reluz um brilho dourado e ofuscante, imagens de santos e anjos se afiguram em aparência assustadora, o templo se torna cada vez mais colossal, uma complexidade de ornamentos barrocos se impõe, sons se formam atarantados, até eclodir em uma harmonia entorpecedora, o som está em todos os lugares, em um ritmo que se encaixa com a nave de forma inebriante. Um som seco estala no vazio, o brilho se apaga, o dourado converte-se em cinzas, um cavaleiro medieval salta de uma nuvem escura e rasga um homem ao meio em um só golpe, em sua espada não há sangue, por ela escorre uma tinta negra e pastosa.
    — Quem é você?! O que deseja de mim?! O qu...
    — Pare de se indagar seu tolo, não consegue perceber que esta é a causa da sua perdição! Não tenha medo de mim, eu não lhe farei nada que você mesmo já não tenha feito. Você já se olhou no espelho?
    — Não. Mas por que isto agora? Mostre-me o seu rosto! O cavaleiro medieval arrasta-o até o cadáver que jaz inerte, o prisioneiro se reconhece na criatura morta, e com o semblante desfigurado encara o cavaleiro que o intimida.
    “Quem é você?! Quem é você?!!!” — Não tenha medo, eu sou o padre que veio lhe trazer o conforto divino, meu filho. Não tema, pois dentro em instante você estará na companhia do todo poderoso, se a vida aqui não lhe foi grata, lá no reino dos céus tudo é felicidade. Não tema pois a vida pertence a deus, e se ele a tira é porque assim deve ser.
     O padre ergue-se com um olhar de piedade, o guerreiro medieval avoluma-se e em seu olhar o prisioneiro vê a sua própria morte. O padre empunha a cruz e em seu ritual sinaliza a sua misericórdia
em pingos gélidos. O guerreiro medieval empunha sua espada, e em um gesto firme lança sua espada contra o prisioneiro, o seu sangue colore a sua dor.
     O tempo escorre como o sangue que banha o pátio, o prisioneiro paulatinamente recupera a consciência, descobre-se úmido e fétido, sua calça está pastosa, um odor insuportável o irrita quando vem a sua mente a idéia do seu fuzilamento iminente, a cada disparo seu coração explode, a cada gemido agonizante sua mente escurece.
     Um som conhecido traz horror ao seu rosto, passos regulares e fortes se aproximam, o prisioneiro lança-se contra a parede e chora, seu pranto é um pranto solitário e interior, suas mãos buscam o solo, a luz que invade a cela lhe agride, em sua mente uma imagem se forma e não o abandona, um jardim bucólico o acalma, o sol se faz brando, o vento o refresca, o odor balsâmico enternece o seu espírito que só conhecera ódio e terror.
    “Eu vou morrer assim?... Minha vida vale mais do que tudo isso...”
 Risos o incomodam, seus algozes estouram a porta, ele está inerte, protegendo-se em suas fantasias.- A revolução acabou camarada! Nós vencemos, uma nova história começa hoje!!!
     “Eu não vou morrer?! O que aconteceu?” — Nós vencemos, um triunfo da justiça!
     O prisioneiro não comemorou, esquivou-se em meio a alegria fanática daqueles homens com quem um dia se identificara, o prisioneiro correu rumo a um novo mundo, um mundo de tolerância e de compromisso com a felicidade, um caminho sem violência o conduzia a um mar de alegria, em seu caminho ainda havia espinhos, mas o seu coração agora buscava o amor, seus olhos descobriam inebriados a beleza que sempre estivera ali, e o prisioneiro aliás já não mais pode assim ser chamado, pois se fazia um novo ser, um ser sem rótulos escravizantes.

Rodrigo Caldas


 
 
 
 

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