O desbunde do underground botucudo ou o pesadelo de James Shadow

     Ausente prá mais de três meses James Shadow voltou. Mergulhara fundo na utopia de desvendar o que seu parceiro afirmara e, aturdido, quase enlouquecera: “Papai Noel é um Canastrão!”. Brigara com ele e rasgara sua colaboração ao “Boca”. Quase levara à loucura o parceiro, depois de intermináveis discussões. Por fim, achara melhor buscar pelo bom velhinho. Achou que conseguiria perguntar-lhe, diretamente.
     Depois de perambular pelas Noruegas e Scandinávias da vida, voltava mais confuso do que antes e deixava o projeto para depois. Fez de volta a via crucis do frio ao calor e desceu para os trópicos, enquanto o termômetro subiu. Chegou à “rodoviária” de Botucatu quando o dia amanhecia. Estafado, apeou, pegou sua mochilinha, meteu o pé no rumo da cidade.
     Quando saía, deu de olhos num cartaz afixado nos vidros de uma das lojas. Quase imperceptivelmente seu coração disparou, antes mesmo que se desse conta. Coisa de “feeling” diria o parceiro. Lá estava ele, o parceiro, com seu “carão”, interpretando no cartaz inteiro. No Municipal? Pensou, Shadow. Mas logo ele que nunca subira naquele palco, nem mesmo para pegar a guimba do cigarro do Mário Lago. Ah não! Não pode ser. O Jaime? Não, o Jaime não. Definitivamente não! Esperava tudo do parceiro, mas deixar-se cooptar pelo sistema? (ops!) Essa não. Na última vez que estiveram juntos nada indicava isso e, nessa hora, um fio de esperança aliviou um pouco sua angústia. Afinal, o parceiro era antes de tudo um resistente contumaz. Rebeldes, ambos trilhavam, há anos, o underground da cultura local. Resistiram juntos nos salões do Nelli, afundaram-se nas cadeiras estofadas do Teatro Municipal e, vendo montagens estranhas, mastigaram as bolachinhas dos intervalos das mostras oficiais, mas nunca... NUNCA, conseguiram maior aproximação com as coxias do Municipal, do que no dia em que foram ao banheiro dos camarins.
     O parceiro navegava fundo na utopia criativa, não iria ceder agora, assim, sem mais nem menos. E as eleições ainda não haviam se realizado. Nem poderia aliviar seu coração. Teria que descobrir o que estava acontecendo.
     Já cedo, naquele dia, poderia ir até às proximidades do palanque em que o prefeito iria receber o governador. Com certeza ali estariam amigos comuns, já aquele atraírem professores e funcionários públicos, nada adeptos do mandatário. Com certeza estariam lá. E ainda, também, poderia cruzar com uns amigos petistas, em qualquer canto da cidade, inclusive na manifestação. Haveria? Com certeza! Professores, funcionários públicos e petistas estariam “batendo cartão”, ali, na frente do Covas, e, não deixariam passar em branco o festejo eleitoral.
     Veio vindo pela Floriano e vendo o “carão” do Jaime nas vitrines dos postos, das lojas. “Chi! pensou, A coisa tá preta!”. O que será que deu no Jaime? Pirou de vez. O Jaime no Municipal? Chegou à praça, lavou o rosto na torneira atrás do “repolho” e subiu, não sem antes olhar pra frente do Teatro. Alguma coisa apertava seu coração. Foi subindo. Na praça das escolas estava tudo armado: escolares com bandeirinhas, prefeitos, vereadores e muita gente de terno.
     O governador chegou, falaram, falaram... Shadow procurava insistente: deveria haver uma cara amiga para lhe tirar aquelas dúvidas. Talvez o próprio parceiro estivesse por ali. Olhou, olhou... procurou pelos amigos petistas... nada! Procurou Procurou pelos funcionários públicos... nada! Estava esquisito. Muito diferente de três meses atrás, quando deixara a cidade! Correu vistas ao redor, nenhuma cara amiga... nada do underground... ninguém com um “ovinho” na mão. Pensou de novo: “Esquisito! Muito Esquisito!”.
     Decidiu procurar pelo parceiro, nos lugares comuns. Iria correr cada um dos cantos, costumeiramente freqüentados por eles. Iria “fuçar” cada porta de boteco, cada mesa de bar, cada segundo da próxima madrugada. E, por fim, quando o encontrasse, iria perguntar-lhe, pessoalmente, assim, de frente: “Jaime, o que está havendo?”
     Atravessou o dia ouvindo evasivas. Encontrou o Wagner e lhe propôs o enigma: “Ô Jaime, o que aconteceu?” Amigos de antes, desde a entrevista no Boca e da TV, só recebeu em resposta um olhar do tipo que mergulha nas razões e um sorriso, amarelo, de dúvida. Depois foi a vez dos parceirinhos do underground, diletos do coração dos dois. E, de novo, num sorriso nos cantos de boca, a insinuação da dúvida.
     Tropeçou pelos cafés da Amando, escorregou pelas mesas do Ipê, vasculhou, com um olhar, o vai e vem dos “points” diurnos da Avenida. Nada, ninguém, para responder suas dúvidas... por que? Preparou-se para a noite.
     Saiu já tarde, com um “baita” capote para esconder o rosto do vento forte e seguiu, a pé, para a Avenida. Foi subindo e tomando um “goró” em cada porta, enquanto procurava uma cara amiga  e um espírito para aplacar suas inquietações. Consolou-se, “não teria escape”, afinal, por ali estiveram, sempre, as estrelas do underground local. Naqueles poucos metros, concentrava-se, desde tempos imemoriais, o maior volume, de “vasculhadores de mente e descobridores de alma” que a cidade já teve. Elocubrando, vergados, no entorno de um copo. “Encontraria alguém!”, sem dúvida, exclamou de si para si.
     Enganou-se. Hoje, ele sabe porque ninguém quis lhe decifrar o enigma que propunha: O que houve com o Jaime? Mas naquela noite fartou-se de perguntar para as carinhas conhecidas. Não poupou ninguém, nem mesmo os que, acostumados com a contestação militante dos dois, Jaime e James, davam de ombros para as intrigantes insinuações que lhes eram feitas.  Chateou-se de tanto insistir e foi-se. Deixou para a primeira noite da tal “Mostra de Teatro Jaime Sanches”.
      Pensado e feito. Na segunda estava lá, caminhando, com alguns minutos ainda de folga, quando... estatela-se no chão de paralelepípedos que antecede a porta principal do Teatrão. Puto da vida, olha em volta, levanta, limpa a poeira das vestes e, passados os tais minutos “ralados” no chão, chega, finalmente, à entrada.
      Mas, diacho! O “teatrista” chega na frente e começa a puxar a porta para fechá-la. Faz força, trabalha, lentamente, com um olho dirigido para James. Resfolegando, entre um palavrão e outro James exclama: “Psiu, oh. Oh, tô chegando. Péra aí, pô , que eu quero entrar.”
     O “teatrista” não se abala. Corre o olho de James ao relógio e fala: dois décimos de segundo atrasado, ô meu! Agora não dá, que o “sinal já bateu”.
     “Porra”, pensou James. Essa de “sinal bateu” é coisa do tempo do Jaime. E falou: “O parceiro. Tô precisando entrar. Vê se não embaça, não. Quero falar com o Jaime.”
     “Aqui não”, falou o teatrista. “O sinal tocou, a porta fechou e tô fechando esta também, que é  pra gente como você não encher o saco, com a peça andando. E tem mais, aqui não tem, mais, Jaime, não!”.
     James: “Como, não tem Jaime? Ô meu, tá gozando com a minha cará? O Jaime, chama ele aí,  logo!
     James falava e metia o pé no meio das folhas das portas, que, então, não se fechavam. O diálogo que se seguiu, entre ele e o “teatrista”, James não irá esquecer nunca:
     James: Vai logo, chama ele ou eu entro na marra!
     Teatrista: Acabou meu. Agora vocês não me enchem mais o saco. Acabou, não tem mais Jaime e você, alter ego dele, tá fora também!
     James: Ah, seu puto, vou entrar na marra, proferiu James, pela fresta da porta entreaberta.
     Teatrista: Já falei, aqui você não entra e não tem mais ninguém para ouvir vocês. Vocês foram engolidos, quase literalmente, pela vida. Graças a Deus acabaram-se aquelas arengas todas, aquela aporrinhação, aquele lenga lenga todo dia, depois das sessões. Não adianta chorar. Acabou.
     James: Olha aqui cara, você tá me falando que não tem mais, mas olha só. James Shadow  estava lívido, irritado, mais que nunca “vendido” quando apontou para o cartaz da Primeira Mostra Jaime Sanches. “Tá vendo...”?, perguntava.
     Teatrista: Tá vendo o quê? Será que você não se enxerga? Você morreu junto com o Jaime!
     James: Morreu? Morreu o quê, ô meu! Tô aqui vivinho e lhe enquadrando, seu burocrata de merda! Chama o Jaime aí, que eu quero entrar e falar com ele!
     Teatrista: Morreu cara. Você morreu, o Jaime morreu e nós ficamos livres da encheção de saco que vocês promoviam todas as noites.
     James: “Ahg...” James não conseguiu articular nada. Agora só sentia a dor das portas a lhe  espremerem os artelhos dos pés.
     Teatrista: (continuando) Vocês eram como fantasmas atrapalhando aqueles meninos que faziam teatro. Vocês enchiam a cabeça deles com utopias, dúvidas, questionamentos. Papo furado, cara. Vocês só sonhavam. Teatro de protesto, vanguarda, arena. Porra Nenhuma. Vocês só queriam armar confusão. Teatro existe pra que as pessoas se divirtam.
 

     As palavras do “teatrista” escorriam de sua boca com velocidade jamais vista, emolduradas por entonações que mostravam prazer e volúpia. Uma encenação de vencedores, sem causa.
     Defronte ao Teatro, ainda com os pés no meio das portas, James desdenhou dos olhos injetados de seu interlocutor e olhou por cima dos ombros dele. Lá no fundo, no saguão, um agitado burburinho nascia das rodinhas dos presentes, que se encaminhavam, placidamente, para a sala de espetáculo. O Teatro estava todo iluminado e colorido por belos cartazes. Gente bonita e cheirosa, “vazava pelo ladrão”. James lembrou que “já haviam visto esse filme antes”.
      Ele e o parceiro. Procurou Jaime pelos cantos, pelas rodinhas, festivas, alegres. Fez um último esforço para segurar a porta, virou para o “teatrista” e lhe disse na cara, a distribuir-lhe  perdigotos:
     James: Olha aqui cara., Eu não sei o que você está me dizendo. Percebo que tem alguma coisa errada, mas não sei. Só sei que tem coisa errada aí.
     Teatrista: Errados eram vocês. Todos os que estão aqui dentro estão, é, certos. Fazem teatro para divertir. Passar tempo. Teatro inteligente! Teatro de paz, chega de encrenca, cara!
     James olhou de novo para aquela gente lá dentro e sentiu invadir-lhe uma sensação que lembrava uma outra paz... ”realmente, pensou, havia paz lá dentro”. Voltou-se para o teatrista:
     James: Você está enganado, cara. Não somos nós que morremos, gaguejou... convencendo-se de que o “teatrista” usava a palavra morrer na sua conceituação literal. E, como se uma lívida lucidez tomasse conta de seu raciocínio, entendeu porque Jaime estava levando o nome da Mostra e tinha sua “cara” no cartaz dela. Respirou fundo e continuou:
     James: Sabe, cara. São vocês que morreram mais um pouquinho. É o teatro que morreu com a morte do Jaime. A tranqüilidade que vocês tanto almejavam tá aí, apontou: é a paz dos cemitérios e a unanimidade conquistada não passa do silêncio dos omissos. Vocês ganharam, cara! É verdade. Ganharam mais um tempo. A mediocridade ganhou com vocês... mais um pouco de tempo, também.. Mas não se alegre. Isso sempre dá uma impressão de ser eterno, mas termina. Vai surgir alguém... algum outro espírito que vocês chamam de “porco”, para colocar os pingos nos iss. Pode esperar.
     James tirou o pé do meio das duas folhas de portas do Teatrão. Olhou o teatrista nos olhos,  correu de uma “mirada” só, dos cartazes da mostra para os grupinhos que desciam as escadas de entrada. Sorriu, deu de ombros e pensou: “Porra o que eu queria mesmo fazer aí dentro? Essa não é a minha praia. Nem minha e nem a do Jaime. Tô fora!”
     Deixou o vento lhe refrescar a face e, antes de resolver pra que lado tomaria, olhou para o chão  e viu um punhado de cartazetes da Mostra. Pensou: “falta papel no banheiro lá de casa”.
     Abaixou e apanhou um punhado deles. No dia seguinte, convencido de que o underground local havia, docilmente, “desbundado” voltou a procurar o Papai Noel.

 João Carlos Figueiroa


 
 
 
 

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