César vinha sem motorista naquele dia. Já não bastava ter que acordar mais cedo, tinha que ir dirigindo até o endereço dado pela secretária nova, às seis da manhã, pelo celular. “Seu César, aqui é a Odete. O endereço daquela reunião importante é rua da Justiça, número 410. Tenha um bom dia”, dizia a mensagem da caixa postal.
“Que saco! Que saco! Se não fosse tão importante mesmo a reunião, deixaria para o meio da semana, não para uma segunda-feira. Porra, se não valesse tanta grana, eu não pensaria duas vezes em mandar esses argentinos tomar no cu”, ia pensando César ao volante, dentro de seu carro com ar condicionado, modelo novo.
Parou mesmo na rua, não havia estacionamento. Logo que saiu,
um negrinho, no máximo dezesseis anos, lhe abordou:
— Posso olhar aí, meu senhor?
— Olhar? — perguntou César, com o olhar de cima a baixo no negrinho.
— Tomo conta na boa, sou honesto, e o senhor me paga quanto puder.
— Olhar? Pra quê? Não, não, vai saindo, não
quero saber de ninguém olhando meu carro. Não precisa não.
— Só uma moeda, senhor... Minha família tá passando
fome...
— Todos vocês dizem a mesma coisa. Não quero saber, problema
seu. E nem pense em encostar a mão no meu carro, neguinho, senão
chamo a polícia, entendeu?!
Saiu com pressa, e o negrinho ficou ali, parado, com olhar perdido. “Filho da puta”, falou baixo. “Granfino filho da puta! Não custava nada! Não custava nada...”, pensava, quando uma única lágrima, seca, escorreu na pele negra do garoto.
César foi procurar o número. “Porra, que numeração e essa? Cadê o número?! Cadê o número?!”. Foi de ponta a ponta na rua, pensando ser mesmo problema da numeração. A rua, de mão única, era grande, estreita, vários carros estacionados nos dois lados. No meio, ia subindo aos poucos, sumindo aos olhos e morrendo na avenida principal do centro da cidade. César levou uns vinte minutos procurando o número, que não achou. “Caralho! Caralho! Essa vaca dessa secretária, que incompetente. Logo de cara já faz cagada. Burra! Burra!”. Tinha esquecido o celular no carro. Quando chegou, notou que o pneu estava não somente furado, mas rasgado, provavelmente por uma faca. “Preto filho da puta! Cadê você?! Você tá fudido, seu filho da puta!”, pensou com ira.
Logo viu o negrinho sentado numa guia, cabeça baixa, brincando com um graveto que caíra de uma árvore velha. Enquanto barrava a passagem de formigas, um sapato bico fino, bem lustrado, esmagou as formiguinhas.
— É esse aí, seu guarda!. Pode levar esse filho da puta, foi ele quem rasgou o pneu do meu carro!
O negrinho não teve nem tempo de perguntar o que acontecia, e foi logo agarrado pelo braço e levado à delegacia. César foi junto pra se certificar que o negrinho seria preso e tomaria uma dura. “Senão eu mesmo dou umas porradas nesse preto filho da puta”, pensava.
Na delegacia, perguntou o delegado:
— Nome?
O negrinho não respondeu
— Não tem nome, não, ô pivete? Vai falando, senão
encrenca pro teu lado!
— Não fiz nada. Não fui eu, não —respondeu o garoto.
— Não perguntei isso, pivete. Quero saber seu nome, vai falando,
vai falando!
— Gabriel...
— Nome de anjo e jeito de capeta! — falou César.
— Sou honesto! Nunca roubei ninguém não senhor! – respondeu,
assustado, Gabriel.
—Quantos anos você tem, garoto? — perguntou o delegado.
— Quinze —respondeu Gabriel.
— Conversa, delegado! Esse aí já é maior! Dá
umas porradas na cara dele, já é homem, não é?!
Na hora que furou o pneu foi bastante homem, mas foi burro de marcar
touca na rua, neguinho! — falou César.
— Calma aí, meu senhor. Ninguém tem prova aqui, e se
ele for menor a coisa fica diferente! — retrucou o delegado.
— Tenho quinze, moço, e não fiz nada. Tava só
esperando outro carro pra cuidar e receber um trocado pra minha mãe.
Sou honesto! Nunca fiz nada de errado, moço!
— Fica na sua, pivete! Por que então você rasgou o pneu
do carro do moço aí? — questionou o delegado.
— Não fiz nada, não fui eu, não fui eu!
— Quem foi então? Um fantasma? Só tava você ali
na rua, pivete, e nem teve cara de fugir! — disse o delegado.
— É isso aí, prende esse filho da puta! — reforçou
César.
— Não fui eu, eu não fiz nada, não, moço,
você não pode me prender!... — se desesperava Gabriel.
— Prende sim! É bandido, tem que ficar na cadeia pra aprender.
É marginal. Prende e dá umas porradas pra ele aprender! —
gritava César.
— Peraí, meu senhor! Não é assim, não,
Já falei, não funciona assim! Além de ninguém
ter prova, o menino pode ser menor. Aí muda tudo — respondeu o delegado.
César chamou de lado o delegado, Abriu a carteira, tirou um maço
de notas novinhas, e disse:
— É bandido, tá entendendo. Me fudeu a vida desde que
apareceu no meu caminho hoje, deu tudo errado, e ainda furou o meu pneu.
Prende ele! Prende ele!
— Peraí, meu senhor...
— Peraí nada! Toma logo a grana e bota esse filho da puta atrás
das grades!
Voltaram os dois pra mesa.
— Jaimeee! Leva o garoto pra cela três, junto dos outros suspeitos
— ordenou o delegado.
—Não! Não! Eu não fiz nada, moço, pelo
amor de Deus! Minha mãe tá me esperando! Eu não fiz
nada! Me larga! — desesperou-se Gabriel.
O garoto foi levado à cela, e César saiu ainda sério da delegacia, com seus óculos escuros modelo europeu. “Delegado filho da puta! É tudo igual, só funciona com dinheiro na mão. Se não sou eu pra fazer prender aquele bandido”.
Quando chegou no carro, lógico, o pneu ainda estava rasgado.
Abriu a porta para pegar o celular. “Porra, nenhum borracheiro nessa merda
de endereço errado! Nunca troquei pneu na minha vida”. César
então viu um rapaz, bem distinto, que vinha em seu caminho. Ele
era branco, alto, magro, se vestia bem, olhos claros, mas vermelhos.
— Por favor, você pode me ajudar, rapaz? — perguntou.
—Claro, claro, o que foi? — respondeu o rapaz.
— O pneu, fur... — nem completou a frase, e foi empurrado pelo jovem.
— Eu só quero grana! Só tua grana, mais nada! Tou precisando
de mais droga. Me dá a grana — dizia o rapaz, nervoso e descontrolado,
com uma arma na mão.
— Que é isso, calma aí... — tentava César.
—Calma o caralho. Rápido, é só a grana que eu
quero, mais nada. Vai, grana pra mão, desgraçado, antes que
eu te pique a bala! — dizia o rapaz, cada vez mais nervoso.
—Tudo bem, tudo bem... Calma aí, deixa eu pegar minha carteira...
— Eu pego, filho da puta, não me sacaneia! – gritou o rapaz,
metendo a mão no paletó de César —Não tem nada
nessa porra, seu filho da puta! Cadê a grana?! Cadê a grana?!
— Peraí, olha, eu tinha muito dinheiro aí — César
lembrou-se que todo seu dinheiro tinha ficado com o delegado — Peraí,
vamos conversar com calma...
Era um revólver trinta e oito, carregado com oito balas. Pelo menos cinco devem ter arranhado a lataria do carrão novo de César. O resto foi direto na peito e na cara dele.
Depois dos estrondos de bala, César chegou a pegar o celular no banco. Não deu tempo de atender o chamado: era a secretária nova, que deixou outro recado na caixa postal. “Seu César, aqui é a Odete. O endereço daquela reunião tá errado. O número é 410 como eu falei, mas o nome da rua é outro: é rua Sociedade Brasileira. Desculpe, eu me confundi com a agenda...”.
Cauê André Rigamonti