Éramos
três: Divino, de Leão Medroso; Zecão, de Homem de Palha;
e eu, de Homem de Lata. Divino fez as fantasias, ajudado pela mãe.
Pagamos o mico de desfilar no concurso do Hotel Glória, concorrendo
em Originalidade com “Em Busca de Dorothy no Esplendor do Jardim de Oz”.
Minha fantasia era feita com latas de cerveja. Tenho que admitir, um trabalho
primoroso de reciclagem. Zecão passou noites roubando palha de colchões
de hospícios e orfanatos para compor a dele. Só porque o
Divino e a mãe enfiaram na cabeça da besta que — para dar
autenticidade — o material da fantasia deveria estar “impregnado de compaixão”.
Acho que parte daquela palha deve ter se embrenhado no meu cérebro.
Foi a única explicação que encontrei para aceitar
desfilar ao lado de um Leão Medroso — com a juba feita com duzentas
e quarenta e quatro penas de pavão – e de um sujeito com a cabeça
cheia de enchimento de colchão. Não, não foi a única.
Existe outra. Fui subornado. Divino me corrompeu, acenando com um camarote
para o Gala Gay, de frente para o lugar onde Monique Evans estaria fantasiada
de Jeannie É Um Gênio. As duas sempre foram os meus sonhos
de consumo. Jeannie e Monique, Monique e Jeannie, esta noite fundidas numa
só mulher.
“Em Busca de Dorothy
no Esplendor do Jardim de Oz” não alcançou, digamos, o sucesso
retumbante que Divino esperava: a Glória no Glória. Nem a
palha da roupa do Zecão – ressaltada pelo apresentador como “tirada
de colchões do Pinel e da Colônia Juliano Moreira” — obteve
a menor compaixão do corpo de jurados. Divino ficou arrasado com
a desclassificação. Sorte que eu já estava com o ingresso
do camarote no bolso da bermuda, por baixo da profusão de latas
de Skol. Porque Divino virou purpurina. Ficamos, Zecão e eu, ao
deus-dará, cercados de tias, sem ninguém que nos ajudasse
a despir as fantasias. As latinhas do meu Homem de Lata estavam presas
umas às outras por umas seiscentas mil presilhas. Pelo menos foi
a sensação que eu tive naquela hora. E o filho da puta do
Divino havia desaparecido!!! E o que é pior: só ele sabia
desmontar aquela coisa. Fui consolado pelos beijos de Isabelita dos Patins
e outra colega, de nome Yolanda Beatriz. Muito pouco, diante do desespero
que seria envergar aquela fatiota metálica, sabe Deus por quanto
tempo. Zecão se deu bem, porque tinha porte de segurança
e palha nos miolos, o que era altamente favorável para um rapaz
perdido nos camarins do Glória. Em cinco minutos também se
perdeu de mim. Aos poucos tudo ficou vazio, as pessoas foram embora, o
cenário foi retirado. Fiquei sozinho, me sentindo o próprio
Prisioneiro da Máscara de Ferro – no meu caso, de lata.
Por fim, o homem da
manutenção me indicou a saída. Em questão de
horas passei da glória, ao fracasso.
Não sou de
me entregar com facilidade. Mas o calor de quarenta graus do Rio de Janeiro
é extremamente convincente, quando se trata de abater incautos travestidos
com fantasias feitas com latas recicladas de cerveja. Dentro da roupa devia
estar uns sessenta graus, embora a noite não fosse demorar a cair.
Amaldiçoei o Divino um milhão de vezes. O Zecão, coitado,
não teve culpa.
Atravessei as pistas
do Aterro quase pedindo para ser atropelado. Era Carnaval, lógico,
mesmo assim o povo me olhava estranhamente, como se eu fosse o E.T. de
Varginha na versão delirante do Joãosinho Trinta.
Decidi encher a lata
de cerveja, literalmente.
Dormi, bêbado,
no Parque do Flamengo e, milagrosamente, não fui assaltado. Acordei
perto da meia-noite, quando estava prestes a ser recolhido por um caminhão
de lixo da Comlurb. Escapei de virar lata prensada. O baile! Monique-Jeannie/Jeannie-Monique,
no esplendor de uma noite no Gala Gay!
O ingresso para o camarote
ainda estava na bermuda.
Vestido de Homem de Lata
tive muito trabalho para conseguir um táxi. Mas à uma e meia
da manhã – depois de ouvir toda sorte de gracinhas — eu chegava
ao camarote, no exato instante em que Monique, gloriosa dentro da fantasia
de Jeannie, fazia sua entrada triunfal no camarote em frente ao meu. Um
pouco atrás dela, Divino, o traidor – responsável pela confecção
do traje sumário da musa — fingiu não me reconhecer, mostrando
a pior faceta do Leão Medroso. Foda-se. Aconteceu que, naquele
mesmo instante, nossos olhos se cruzaram e Ela reparou em mim, até
hoje não sei porque. Tenho certeza que gritou “eu te amo” ou “meu
amo”, não ouvi bem, porque uns trinta metros de distância
nos separavam e já havia mais de mil palhaços no salão.
Vestido daquele jeito não
iria conseguir chegar perto dela, nem por um cacete. Os seguranças
não deixariam que eu me aproximasse. Nem com a interferência
do Divino (falo do Criador). Eu tinha que pensar numa estratégia
criativa para me comunicar com Monique/Jeannie, urgentemente. Foi quando
vi um rolo de serpentina abandonado num canto do camarote. Era amarelo,
ainda lembro. Uma tira de papel de aproximadamente trinta e oito metros
de comprimento, por um centímetro de largura (sei da metragem porque
já trabalhei em fábrica de confete), cuidadosamente enrolada.
Iria ser o cordão que me ligaria àquele sonho. Pedi uma caneta
emprestada ao garçom; e naqueles trinta e oito metros de puro carnaval,
escrevi a mais bela carta de amor que um homem de lata jamais poderia escrever
para a mulher de suas fantasias. Foram três horas compondo a missiva
febril; e neste período o baile era somente o ruído longínquo
da música de Zé Kéti.
Monique era Jeannie e era
Dorothy. A Dorothy de minhas buscas, no Esplendor do Jardim de Oz.
A experiência que eu
adquirira como ajudante na fábrica de confete foi decisiva para
desenrolar e re-enrolar a serpentina com perfeição. O torpedo
momesco estava pronto para ser disparado.
Em frações
de segundo calculei o empuxo do braço, a trajetória a ser
percorrida pelo rolo que se desfraldaria no ar, a posição
do alvo, tudo.
A carta partiu, cruzando o espaço
do salão na velocidade prevista. E por instantes pude vê-la
em câmera lenta, sobrepondo-se aos corpos suados, indo em direção
ao seu destino com a insustentável leveza das serpentinas.
Monique que era Jeannie que era
Dorothy, projetou o corpo levemente para a frente — braço estendido,
o seio pulando do decote como um folião em êxtase – e agarrou
a extremidade da delicada tira de papel amarelo. A música cessou,
o baile parou; e milhares de pares de olhos acreditaram na magia daquela
fina ponte suspensa no ar, aterrissando como uma pétala longilínea
no camarote fronteiro ao meu; sustentada de um lado pelo Amor fantasiado
de Homem de Lata; e do outro, pelo sorriso aberto de um sonho que povoava
o imaginário da multidão.
O instante mágico
pode ter durado tanto três segundos quanto três dias. Que importa?
Importa é que o baile estava no final e era preciso aproveitar cada
minuto de emoção do Carnaval.
Todas as mãos se
ergueram frenéticas para alcançar a carta-serpentina.
Meu sonho desfez-se em milhares de pedaços, exatamente no momento em que a orquestra começou a executar “ai, ai, ai, ai, tá chegando a hora/o dia já vem raiando, meu bem/ eu tenho que ir embora...”
José Antonio Cajazeira