O feio

    Largaram um bebê na minha porta. Pensei logo nos efeitos devastadores da ressaca e gargalhei daquela cena tanto quanto minha cabeça permitira. Fechei a porta. Dei uns dois passos tortos e ouvi um choro. Santa Cerveja, quanto realismo! Voltei e abri a porta. O pacote estava lá, ou melhor, o bebê estava lá em forma de pacote. Coloquei o bebê pacote para dentro tentando não arregalar mais os olhos. O recém nascido era feio demais. Embora tivesse a composição básica de um ser humano, algo deu muito errado na mistura dos ingredientes. Pensei comigo, chora porque é feio demais. E quem é feio demais contempla a própria face o tempo todo. E de fato ele não precisaria de nenhum conceito de beleza para que se considerasse medonho. Nasceu para ser feio e assim viveria o resto dos seus dias.
    No dia seguinte ele já tinha sete anos. Bateram na porta. Era um molequinho com seus alguns anos ou mais.
    — O feio tá aí?
    — Como?
    — O feio. Ele tá aí? Combinamos de jogar uma pelada no campinho.
    — Ah...vou chamar.
    O feio saiu e me disse para não lhe esperar para o almoço. Voltaria no final da tarde.
    Já passava das seis e nada. Resolvi fazer um sanduíche. O feio chegou, tomou um banho e apareceu com uma roupa nova.
    — Passa a maionese.
    — Acabou.
    — Vou sair para comprar mais.
    Ameacei colocar a mão no bolso para entregar-lhe o dinheiro, mas ele já havia ido. Voltou em vinte minutos com dez anos e a roupa curta. Passou a maionese no pão e comeu em silêncio. Falou que no dia seguinte iria procurar emprego.
    Dois dias depois lá vinha o feio com carteira de trabalho, calça jeans, chinelo, cigarros e dezenove anos. Conseguira trabalho numa construção na vizinhança, portanto levaria marmita de casa. Sairia de casa às seis da manhã e retornaria às oito da noite quando não fosse para o pagode.
    Na quarta-feira fui ao cartório e acabei passando pela construção do feio. E lá estava ele, empurrando um carrinho de argamassa, tentando não derrubar tal conteúdo. Lembro-me dele ter reclamado do serviço do disque-entulho, que só colocou o baú na obra vinte e sete horas após o solicitado. Percebi que aquele seria o dia do pagode. Voltei do cartório, passei na padaria e o feio estava saindo da construção com calça jeans, camisa listrada, cordão de ouro com crucifixo. Mais feio do que jamais esteve. Mais cheiroso do que permitia um único frasco de perfume. O feio havia comprado um fusca e deu carona para mais três.
    Na madrugada ouvi o motor do carro do feio, mas foi tudo que ouvi. Ele entrou num silêncio de ofender os ouvidos, e do seu perfume restara muito pouco.
    Estranhei durante a manhã que o feio ainda dormia, e como se ele notasse meu estranhamento levantou. Falou que estava no seu dia de folga, merecido para seus vinte e sete anos de vida. Tomou um café preto com pouco açúcar e saiu no seu fusca. Retornou à tarde, trazendo dois de seus filhos.
    — A mãe deles não vai poder cuidar hoje, arrumou um serviço na casa de uma dona. O mais novinho foi junto porque chora demais.
    O feio levou os dois até a cozinha e fez macarrão com salsicha. Comeram, conversaram, riram, mas não se olharam para que não a feiúra do pai não fosse questionada. O feio estava feliz. Como eu nunca havia visto antes.
    A construção chegara ao fim e eu confesso que jamais vira prédio tão bonito. Venderam todas as unidades para pessoas de extrema beleza. Não havia quem não parasse. Não havia quem não sonhasse.
    O feio agora trabalhava na tinturaria. Já estava com trinta e oito, portanto velho demais para carregar tijolos. Tingiu calças, blusas, saias. Fez amarelo o vestido das viúvas, vermelha a saia das meninas castas, branco o terno dos noivos que conheceriam a família das meninas de saia vermelha. Como que me agradecendo por algo que desconheço, pintou de azul a minha casa.
    Um dia o feio adoeceu. Não tinha plano de saúde já que para quem tinha mais de cinqüenta custava caro. Ficou quietinho em seu quarto, respirando baixo e comendo pouco.
    O feio morreu uma semana depois, de doença ou de velhice. No velório, o caixão estava fechado, para que alguém pudesse chorar.

Adriana Brunstein


 
 
 
 

« Voltar