FORMA DO FOGO

                                    para cláudia

   desde longe viemos sacrificando todas as luzes para que se destacasse contra as estrelas esta única coivara, ateada com caibros e restos de andrajos. aqui a esperamos. eu, kaúla e dalgue, já exausto.

   pouco a pouco a imagem que ele nos incutiu vai-se diluindo. dalgue, que a tanto tempo não vivia mais essas coisas que põem abaixo as portas do sossego e deixam os homens mais leves e sujos. e só por amor a ele permanecemos ali de olhos fixos na intermitência do fogo.

   tudo isso obra de um retrato sussurrado: mansa e insidiosa, sobrancelhas espessas, cabelos negros, fáceis de envelhecer, voz para os olhos, deslizando sobre o veludo da respiração. esse homem nem sequer esperou que a vida afrontasse o retábulo da beleza, nem que a solidão concluísse a sutil tarefa de entristecer e revoltar. decidiu ir logo à caça e aprisioná-la em estado revolto, quando supõe não pertencer ainda a ninguém, nem a ela mesma.

   e aqui a esperamos. com o frio, a luz fica mais elástica. sob o insulto da brisa as chamas se precipitam no ar para se consumirem. o vento orquestra um crepitar uníssono de lenha e crisálidas: cada asa que atravessa o fogo alimenta uma claridade úmida em nossos olhos. tudo quer ir embora, subir para a noite. queremos vê-la.

   possivelmente ela ainda esteja por perto e por trás de nossos ombros ria desse assédio indefinido. ela não foi embora.

   aos poucos o fogo vai perdendo sua fragrância arcaica. kaúla, que tanto nos animou durante a vigília, caiu com folhas e insetos esmagados entre as unhas. e agora que todos dormem à sua volta, dalgue espia com mais intensidade o espaço exato da ausência — um antro fluorescente ao redor das cinzas. sozinho, sente ganas de acordar a todos para nos contar a derradeira peripécia das chamas.

   é que ninguém percebe quando ela salta sobre nossas pálpebras, recolhendo com as mãos finas a ponta do vestido e aninha-se de novo, inteira, no coração do único ser desperto.

     Cândido Rolim

 

 
 
 
 

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