Punha suas mãos ao lado do barquinho para que ele não afundasse no lago.

— Por aqui, guerreiros, avante!

O menino procurava cuidar bastante da caixinha de fósforos vazia. A água jamais poderia entrar dentro dela, pois senão toda a tripulação morreria, desde o capitão da embarcação, até os escravos que vinham no porão, remando. Tinha visto um navio igualzinho, na noite anterior, no filme que passou. O meu é maior, muito mais espaçoso e veloz... Percorrendo toda a volta do lago, o menino ia conduzindo junto com sua embarcação, também tripulação, fantasia, sonhos, o filme da noite passada,...

Era pequeno, de sardas e cabelos vermelhos. Seu cabelo era liso, caía sobre a testa; seus olhos, claros, mostravam uma grande ingenuidade, simplicidade. Sim, porque todas as crianças são dotadas de simplicidade, de coração puro e feliz. Sim, são sim... Por que dizer isso? Porque não conseguira dobrar as folhas do caderno, para fazer um barquinho, como sua professora ensinou outro dia. Tentou diversas vezes, e uma lágrima umideceu sua perna, que estava dobrada sob ele. Após dois minutos de pequenos olhares em volta, avistou ao longe, uma caixinha colorida, caída perto da estrada. Levantou-se, passando a mão no rosto, já enxuto do choro iminente, e caminhou, devagar. Abaixou-se, colocou a caixinha (era de fósforo, aquela...) na palma da mão e observou. Num instante, já estava na beira do lago. Foi simples demais.

Passava quase todos os dias e horas de brincadeira próximo daquele laguinho, cercado de pequenas e fortes árvores, que faziam sombra na estrada de terra que ligava a cidade ao sítio que estava com os avós. Os pais tinham uma vida corrida e entendiam que a liberdade nas férias escolares era a melhor das lições. Estavam certos, pois o coração do menino era livre, assim como seus passos. Percorria toda a extensão da estrada, durante seus passeios e perto do horário do almoço, sentava-se próximo das árvores, impedindo a ação dos raios do sol, em sua pele clara e delicada.

— Que calor! — dizia, agitando rapidamente a camiseta, molhada pelo esforço da caminhada.

Sentado, encostado na estaca que segurava a cerca, ele permanecia até se refrescar um pouco. Tudo era cercado para impedir o acesso ao lugar, um verdadeiro paraíso, que ficava atrás da diversidade de plantas.

Naquela tarde, o barquinho já tinha desbravado quase toda a costa brasileira, todo o litoral norte, como a professora tinha dito, nas aulas de geografia. E o silêncio só não era maior, pela presença de pássaros pequenos e multicores, que cantavam, cantavam o tempo todo. Até que um som bem discreto pôde ser ouvido. Era um violino. Tinha uma bela melodia, belíssima, que fez o menino parar de brincar e sentar-se, com as pernas semi-abertas, sobre a grama úmida. Ali foram-se horas, e o sono já havia dominado o garoto. Ao cair da tarde, tinha as pernas agora encolhidas, juntas ao seu corpo, que permanecia relaxado e calmo, recebendo leves raios solares, do pôr-do-sol. Até que a música parou e seus olhos se abriram, no mesmo instante.

Quando deu por si, seu barquinho tinha seguido para o meio do lago e... Nossa! Que isso? Esticou-se, de joelhos, com uma das mãos dentro da água, apoiou seu corpo para alcançar alguns dos botões de rosas que estavam sobre a água. Não acreditava que via aquilo. Ninguém veio aqui...

— Tem alguém aí? — gritou o menino.

Nenhuma voz respondeu, como era de se esperar. Já conseguira pegar duas das seis flores que estavam ali. As outras, com o movimento do menino, foram se distanciando. Não entendia como tinha acontecido. Foi embora, levando as rosas, querendo ainda entender. Não tinha respostas para a avó. Nada, não, vó....

No outro dia, não pôde voltar no lago e ficou em casa, curando-se do leve resfriado. Atchim!!!!

No final da semana, conseguiu convencer a todos que não tinha perigo voltar lá, porque estava bem. E voltou. E ouviu a música. E adormeceu. E quando acordou... De novo! Agora eram apenas duas rosas. Alcançou-as e as levou pra casa. Novamente, ninguém entendeu  o porquê do menino estar com rosas nas mãos. Nem eu, vó...

Essa rotina se repetiu por todo o mês, durante suas férias. E chegou o dia de voltar para a cidade.

— Mãe, posso passar no lago antes de ir?

— Pra quê? Estamos em cima da hora. Anoitecendo, a estrada fica perigosa.

— Volto logo...

— Tá, vai lá...

Seus passos foram apressados... sua corrida foi acelerada... a correria foi inevitável. Chegou em fim. Sentou-se, cansado, na beira do lago. Era a última vez que o veria. Depois, só no final do ano... Muito tempo, né?... Ouviu um pequeno acorde e... era a música... o violino... Só que era triste, nunca fora assim. Viu diante de seus olhos, uma menina se aproximar do lago e jogar uma rosa branca. Quem é? Uma voz o fazia permanecer ali, parado. Não pôde se mover. A menina foi se afastando lentamente. Estava de vestido branco; parecia ter quase sua idade. Ele a observava. A música terminou. A menina tinha desaparecido.

— Filho, vamos dormir?

— Onde, mãe?

— Na cama... já é tarde e o sofá não é confortável... não se esquece de desligar a televisão. O filme acabou?

— Nem vi, mãe. — Caminhou em direção à cozinha, coçando os olhos.

— Viu sobre o que era o filme, pelo menos?

— Sim, era sobre um menino, um lago, flores... algo assim... Ah, tinha uma menina também.

— Tem certeza, filho?

— Não, mãe... não tenho não... — os dois riram e se abraçaram.

— Sua avó ligou pra ver se tínhamos chegado bem. Perguntou se queria ter trazido uma das flores da roseira dela. Parece que nas férias, você gostou bastante de colhê-las.

— É... foi bom o tempo que fiquei com a vó e o vô...

— Pra que pegava as rosas?

— Pra nada, não... Deixa pra lá, mãe.

Os dois se deram as mãos e o menino apagou a luz da cozinha.

Márcia Cristina Rodrigues Pereira.


 
 
 
 

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