Rio de Janeiro, anos 60. Cabelos compridos, camisão florido,
calça vermelha boca-de-sino, velha de guerra. Paz e amor, bicho!
Nem era preciso dizer mais nada.
Uma ponta, às vezes, é o quanto basta para se fazer a
cabeça. Um lance que funciona, mas muito mesmo, quando o bagulho,
por exemplo, começa a rarear, a grana anda curta; ou em tempos de
arrocho por parte dos da lei.
Uma ponta, às vezes, é o quanto basta, se a alma não
é pequena, se a cabeça anda povoada por guitarras distorcidas
e, depois, quebradas ao término de algum daqueles concertos que
entraram para o domínio da lenda. A cena longínqua e inacessível,
os papos intermináveis noite adentro, caras muito loucos (mas muito
loucos mesmo!), bandas que saíram do nada, droga pesada, sexo selvagem,
festas intermináveis, capas de disco, revistas especializadas, o
papo de que Paul MacCartney já tinha morrido, bastando ouvir a última
faixa do Sgt. Peppers, aquela faixinha mínima, ao contrário,
ou sobre o papel da artista plástica japonesa Yoko Ono, cuja influência
sobre a mente do grande Lennon acelerou a já praticamente inevitável
dissolução do quarteto de Liverpool... É isso aí,
uma ponta é o quanto basta!
A outra ponta, guardara no bolso da camisa para quando a bola, isso
era inevitável, fosse baixando. Acabou sendo encontrada por um dos
policiais que lhe deram a geral inesperada. Sem conhecer muito bem a cidade,
inadvertidamente se metera por quebradas escuras. O que ele tinha em cima
era um trocado para o ônibus na volta, o convite para o show de uma
banda que ainda não conhecia (mas diziam que era da pesada!); e
ela, a fatídica, prova cabal de dois delitos a um só tempo.
Quanto ao primeiro, nada a fazer, já estava consumado. Já
o segundo, aí que estava o grande pepino, para arrochantes e arrochados:
o ainda por consumir.
Jogado para dentro da cela apinhada, o hippie paulista, interiorano,
sentiu pesarem sobre ele os olhos de todos, sobre a sua figura, digamos,
pouco convencional. Pelo menos ali, naquele aglomerado sub-humano (duvido,
em todo caso, que ele fosse, ali, capaz de reflexão tão elaborada,
com tal vocabulário...).
Era como se já o despissem do camisão florido, em cujo
bolso — ele apalpara, na dúvida, aproveitando um vacilo do milico
- resistia, ainda, valente e insidiosa, uma sementinha. Pressentia já
o instante em que a sandália de couro cru, companheira fiel e inseparável
de tantas viagens (as astrais, é preciso dizer, sobretudo!), lhe
fosse arrancada, à força, dos pés agora mais do que
fatigados.
Também de couro cru, também inseparável, a bolsa
a tiracolo, para sempre estufada de inutensílios inconfessáveis,
essa tinha ficado com os homens (como diria o Altemar Dutra, naquela música:
"pelo sim, pelo não"), aquilo ali dentro era uma maçaroca
indevassável.
E o pior... Era como se — maldita hora, bem que ele podia ter posto
aquela outra de flanela, florida, mas estava muito suja — já se
atrevessem a meter a mão no que de mais sagrado ele ostentava, a
eficiente e prestativa calça vermelha boca-de-sino, velha de guerra.
Ao apoiar firmemente as costas contra a parede, andando arisco e de
fastos, pensava ter erigido uma fortaleza inexpugnável. Eram ele
e a parede, um escudo. Quiçá suficiente, contra a bad trip
que insidiosamente se avizinhava, com mais do que prováveis atentados
à sua hippie integridade.
Súbito ouviu quebrar-se o silêncio, que só fazia
realçar a sua respiração asmática e ofegante.
Foi um lapso de alguns poucos intermináveis segundos. Era a intervenção
banguela e sacana de um dos seus, agora, companheiros de "pousada": "É
isso aí, rapaziada, é isso aí. Hoje tem galinha psicodélica."
E ele, ali, duro feito uma pilastra, colado contra a parede. E aquela
frase teve o condão de desatar gargalhadas estrídulas, impenitentemente
medonhas. Não havia como fugir à dura realidade dos fatos,
mesmo porque, àquela altura dos acontecimentos, a bola, inexoravelmente,
já ia mais do que baixando. Incômoda, uma certa larica era
o prenúncio apenas de que atravessar a noite e a madrugada não
ia ser refresco. Com fácil não seria — duríssima realidade
dos fatos — salvar a calça vermelha boca-de-sino, velha de guerra,
de tantos serviços prestados à humanidade a caminho da Era
de Aquarius, em geral, e à sua mente de natureza pacífica
e libertária, em particular. Impossível salvá-la do
olhar careta, machista e perverso daquelas almas penadas, empenhadas em
disputar espaço em poleiro único de tão minúscula
gaiola.
Mas seria desafiado a pôr abaixo a parede, ele e a parede, pensou,
uma fortaleza, um escudo, quem com ele se atrevesse a cantar de galo. Era
ele, querendo, por toda a lei, botar em funcionamento o juízo que
desde pequenininho ainda ouvira ser de galinha. E, agora, ainda mais essa:
galinha psicodélica. Na dúvida, decidiu-se por não
pregar o olho em nenhuma hipótese. Também tinha o seguinte:
já que estava mesmo nessa barca, não ia deixar passar a oportunidade
de poder dizer depois que vira o sol nascer quadrado. Neguinho não
ia acreditar, pensou. Depois ficou muito puto. Essa mania de nunca reprimir
piadas, como essa, fora de hora. E de evidente mau gosto. Atento
ao mais imperceptível movimento ainda que em esboço, tratou
de pôr na boca a sementinha aquela, a que sobejara escondida no fundo
do bolso do camisão florido. Ia mastigar, mas muito bem mastigada
mesmo, pensou. Bem moída, era isso aí. Um brilho que fosse!
Uma luz! Um tchans! Quem sabe?
José Pedro Antunes