O absurdo da identidade

     Eu talvez seja um cara estranho, talvez, digamos assim, eu não seja um cara um tanto convencional, no sentido daquele que se submete ás regras sem as discutir, eu gosto de problematizar, não sei nem o porquê, talvez eu não seja nem bom nisso, nem muito inteligente, mas só sei que sou assim, e até que demorou que eu chegasse a esta conclusão tão obvia. É imbuído desta natureza que busco me orientar nesta vida, esta mesma que sempre me pareceu um tanto absurda, e pra falar a verdade, sempre tive uma ponta de inveja destas criaturas superiores que encaram a vida sem mistérios , sem porquês. É isto aí, a vida se desenrola diante de mim eivada de estranheza, foi movido por este sentimento tortuoso, que eu acabei me lançando em uma das aventuras mais fantásticas. Como conferimos sentido as coisas? Qual a fronteira entre o sentido e o absurdo? Esta seria uma aventura sem volta, seria uma experiência que poria em xeque a minha própria identidade.

     (Em um lugar no espaço, em um intervalo no tempo, uma criatura se move por trás de um conjunto de predicados, buscando um pouco daquilo que todos nós buscamos, prazer e arte.)
     — Você está um tanto triste, passou o tempo todo calado, o que há?
     — .......eu não estou triste, de onde você tirou essa idéia?
     — Tudo bem eu entendi, não quer falar.
     — Falar não é tão importante, os sentimentos são fluidos, as palavras são talhadas para apreender, encarcerar, se eu não falo talvez esteja triste, se você assim pensa que por palavras tudo se pode expressar, se não me expresso estou apagado e logo triste. Mas se não falo por crer que palavras são cárceres de idéias e sentimentos, não falar não é indício de melancolia, mas busca de liberdade, longe das categorias lingüísticas, e próximo da fluidez dos meus sentimentos, é busca de outra forma de representação.
     — Mas como posso saber dos seus sentimentos e desejos, se você não os objetivar através de palavras, talvez elas não sejam perfeitas, mas são uma sublime criação, corroborada pela experiência dos homens.
     — O mundo objetivo de que fala, é antes um mundo objetivado sobre convenções e acordos do que uma realidade plausível e mensurável. A objetividade é tão relativa quanto os critérios que a dão suporte, é uma invenção absurda porque tenta fugir ou se dissuadir do próprio universo de fantasia e absurdo a que está confinada.
     — Suas teses aparentemente persuasivas não se sustentam porem diante de um critério muito óbvio, o senso comum. Nós agora estamos aqui, conversando em uma galeria de arte, e isto é um fato incontestável, um critério objetivo.
     — Não pretendo lhe convencer de que aqui não estamos, mas se o senso comum é aquilo que permanece em nossas suposições, isto por si só, não é suficiente para me convencer de que eu tenha encontrado um critério objetivo, pois a próxima inferência pode por tudo por água a baixo.
     — E então, onde está a fronteira entre estes quadros surreais que nos cercam, e a monotonia cartesiana dos meus compromissos e deveres?
     — Talvez esteja na lente dos teus óculos, no instrumental que você usa para interpretar o mundo, aquilo que vem antes e de que você nem se dá conta, os teus preconceitos. Vem comigo! Olha este quadro, não com olhos ordinários, tira a armadura do teu cotidiano e contemplando este universo tenta te descobrir aí, em um mundo sem parâmetros.

     O espaço surge onipotente, uma onipotência que daria um nó na fórmula euclidiana, formas imprecisas, irregulares, uma dimensão de traços e riscos que fogem à catalogação dos meus tímidos conceitos, a geometria do absurdo é avessa à lógica, é a manifestação icônica da liberdade. Um mundo de cores explode, e na delicada lente do meu globo ocular se processa uma batalha cromática, uma revolução de sentimentos traduzidos em cores.
     Os meus conceitos já não tem nenhuma utilidade neste mundo, as palavras são desdenhadas, sufocadas, por novos signos, signos subterrâneos, que emergem com a força avassaladora da emoção, dilaceram o meu ser dante unívoco, despedaçando-o em sensações que se sucedem rarefeitamente, em uma loucura tão convincente que eu já não me dou mais por mim, para que pronomes, pronomes aqui são absurdos. Os sentimentos cavalgam, cavalgam em formas e cores. O azul do fundo do meu novo mundo me embriaga de uma forma indescritível, o branco carrega o meu espírito, e o amarelo se impõe em um brilho ofuscante. O cenário é o de um templo grego, espaçoso, sustentado por sóbrias colunas. O tempo é irrelevante, e a aparente realidade do templo se desfaz, na total ausência de uma tridimensionalidade. Será esta a sensação da loucura? Se loucura for atravessar a monotonia da geometria euclidiana e desdenhar do cárcere da lógica silogística, que sejamos todos loucos, uma loucura sem tempo, espaço, pronomes ou qualquer categoria sufocante.
     O sentido das cores me faz recordar, a minha experiência fervilha em um lago de onde emerge um sem número de emoções. Deste lago que eu ignorava que existisse em mim, eu me descubro dois, três, quatro...Em uma sucessão que me faz transcender aquele cotidiano monótono da identidade do ser em constante oposição.
     O absoluto é o limite, e o nada o único resquício de uma lógica que não mais se faz relevante. A consciência se desfaz no lago fervilhante das emoções, o substrato do ser sem unidade, emerge em toda a sua impetuosidade instintiva, primária e singular. O agora e o eterno se fundem em um mundo atemporal, o sentido não está prescrito canonicamente, o deus que move as peças no tabuleiro prescinde de estratégias, o rastro dos signos é imprevisível, e a fronteira do que eu aprendi a chamar de “real” já não é mais avistada. A minha bússola enlouqueceu, isto mostra que até ela entendeu que eu não sou nenhum naufrago neste texto.

     — Ei! Há alguém aí? Você resolveu dormir diante do quadro de Salvador Dali?
     — É maravilhoso! Por algum lapso de tempo eu deixei de existir, tudo isto deixou de existir, eu até nem sei se “eu “, “você”, não somos um sonho...
     — Se eu e você não existimos é algo que podemos discutir depois, quando tivermos bebido algumas.
     — Me desculpe, mas eu acho melhor não ir, eu prefiro ficar um pouco só, creio que não seja uma boa companhia hoje.
     — Se prefere ficar aí, curtindo tua apatia, eu não posso fazer muita coisa, nós estaremos lá caso resolva aparecer.

     Que absurdo se processa em minha mente, de repente eu já não sei se estou vivendo em um mundo real, em meio às outras pessoas, ou se estou aprisionado em uma parte dos meus sonhos, que acabaram me convencendo que se tratava da realidade. É bem verdade que a teoria quântica pôs por terra este negócio de matéria, tridimensionalidade, etc. Mas são teorias difíceis de se apreender, é muita abstração para uma mente só. Eu ainda estou confinado naquele quadro, talvez aquele maluco filósofo tenha razão em questionar meus conceitos sobre a minha própria identidade. O absurdo agora é aqui, diante destas regras, conceitos e estruturas que estreitam os meus horizontes, qual a fronteira entre o significado do meu quadro surreal, de um universo onde a estrutura está ausente, e este mundo de formas e estruturas escravizantes? Como minha identidade emerge do caos, minha consciência emerge de campos de energia, do movimento aleatório de um turbilhão de elétrons?
 Em que eu me diferencio de um ornitorrinco? Será que se abstraída a estrutura e o jogo de oposições da aventura lingüística do meu cotidiano, eu me distinguiria do ornitorrinco? Ou daquela máquina fotográfica com a qual eu fotografei minha última viagem?

     — Quando uma narrativa enlouquece, quando um protagonista se desintegra em um bicho exótico e até a poucos séculos inclassificável, quando um quadro de um pintor catalão excêntrico invade e desestrutura um conto, reduzindo-o ao absurdo, a narrativa foge ao controle e a estória não pertence mais a quem a narra.

     O ser inerte em seu leito tenta se libertar dos moldes estreitos da narrativa do seu cotidiano. Tenta implodir o seu ego, quase no estilo budista, tenta atingir o estado que nenhuma experiência hedonista lhe proporcionara antes, a disposição dos objetos lhe parece confusa, tudo muito lógico, tudo muito organizado. Ele assim passa a noite a se contorcer, até que um troço muito confuso o fez tomar uma atitude absurda! O despertador tocou e ele, não me perguntem como, lembrou-se que tinha um compromisso.
     — Eu não dormi nada esta noite, não sinto meus braços e pernas, meu rosto parece um pouco pesado, acho que não me sinto muito bem.— Pega na pasta de dentes como sempre fizera todas as manhãs, aperta o tubo de pasta e maquinalmente, sem pensar, a coloca delicadamente na escova, levanta o rosto e se fita diante do espelho.
     — Como eu de fato estou estranho hoje, não sei se isto é sonho ou eu enlouqueci de verdade, mas se não me engano este troço que o espelho está refletindo é um ornitorrinco.- Continua escovando os dentes impávido, como se sempre tivesse sido um ornitorrinco, como se tudo o que estivesse ocorrendo fosse muito natural.
     — O que minha mãe e meus amigos vão pensar ao descobrirem que eu não sou mais um homem, e sim um ornitorrinco? Para mim tanto faz, apenas eu mudei de espécie no quadro taxonômico dos seres vivos, eu não preciso mais de pastas de dentes por exemplo, nem de cama, pois o que diriam os meus amigos ornitorrincos, aliás eu nem os conheço ainda, há! Eu preciso trocar minha namorada por uma ornitorrinca, como eu direi isto a minha namorada, sem ofendê-la tanto? E os meus amigos hoje no trabalho qual será a reação daqueles palhaços?

     Sua mãe e irmão mais novo já estão à mesa, quando ele chega de uma forma que todos estranham, todos o olham absortos, não acreditam no que vêem.
     — O que aconteceu com você meu filho? Você está diferente?- Um silêncio constrangedor afoga a todos em uma expressão clara de surpresa.
     — Não se assuste mãe, eu agora sou assim, a senhora tem de se acostumar. Pode ser que eu possa não ter uma aparência tão agradável quanto antes, mas eu ainda tenho sentimentos...
     — Eu não o compreendo, você sempre acordou alegre, e ainda hoje que é um dia especial pra você, eu lhe confesso que não sei o que aconteceu, este seu discurso dramático...
     —  Depois conversaremos mãe, eu não tenho tempo para lhe explicar agora...tchau!!!
    O ornitorrinco é mesmo um bicho estranho, é uma mistura muito louca, meio pato, mas não tem penas, tem nadadeiras, mas não vive só na água, tem cauda e pêlos, e é um mamífero que põe ovos. Como é fácil de perceber, quando da sua descoberta na Oceania, este bicho deu um nó na cabeça dos biólogos acometidos do mal de Lineu, o mal da classificação compulsiva, esta invenção absurda da evolução é feita da junção dos outros bichos, ou será que os outros é que são feitos de partes suas? Pergunta difícil de se responder, mas foi transformado em uma criatura assim que o protagonista deste negócio que se propunha até umas linhas atrás, a ser um conto, foi transformado.

     — Acredito que nenhum código de trânsito preveja este caso de que agora sou protagonista, um ornitorrinco não pode ser punido pura e simplesmente por estar ao volante, isto por si só não é crime. Eu sou um ornitorrinco dentro da lei, exijo ser respeitado.- Os carros correm sem rumo, o ornitorrinco guia sua máquina com maestria sem ser notado.
     — O que farei quando o meu chefe me descobrir um ornitorrinco? É caso de rescisão de contrato, pois eu não sou mais revestido de forma humana, eu além de ornitorrinco estarei desempregado, como irei sobreviver? Um ornitorrinco mendigo é o cúmulo! Ou eu peço ajuda aos naturalistas, ou eu vou para a Austrália.

     O absurdo está nas coisas, pessoas? Ou nas suposições que fazemos delas? É o imaginário um universo incompatível com o real? Se assim o for, por que precisamos tanto de máquinas de fantasia, como: romances, contos, músicas, quadros de arte, esculturas, etc.? Não será o mundo positivo comtiano, anti-metafísico, a maior das fantasias? Ou será que o leitor desta pequena fantasia nunca se sentiu um ornitorrinco, inexplicável, incatalogável, um ser atípico que punha por terra todo um laborioso sistema explicativo? Vai ver que o consenso das mentes é uma farsa, uma farsa maquiavelicamente feita para nos entorpecer, e nos fazer crer em “verdades” insondáveis, só para acalmar nossos ânimos e dar sentido, um sentido meio enganador, meio mutante, a este mundinho tão absurdo.
 
 

    (Em um manicômio, o ornitorrinco encontra sentido em um mundo marcado por incompreensões e absurdos, lá ele se reconhece diante do espelho...)

     Eu não sei! Eu não sei! Por que eu haveria de saber?! Quanto mais agora que eu estou aqui na Austrália, este céu, esta natureza, eu não quero mais saber...
     Você me entendeu?! Eu não quero M A I S  SA..BER...
     — Por que você não faz um esforço? Você está escondendo a verdade sobre você mesmo, está com medo da realidade, não fuja, não se deixe dominar pela insensatez, pode ser um caminho sem volta, você tem uma família, uma mãe que te ama e está sofrendo muito com tudo isto.
     — É insensatez sua, você é um presunçoso que acredita cegamente nestes modelos interpretativos do funcionamento da psique, pois bem, para o meu caso suas teorias não funcionam, nós os ornitorrincos somos seres superiores, indescritíveis, inexplicáveis. Eu não acredito em psicólogos, psicanalistas e tudo quanto é de doido que se reduz a um “logos” muito bem policiado e amarrado, vocês são escravos dos seus discursos e se reduzem a estreitos esquemas interpretativos que não conseguem dar conta de uma ruptura radical com o modelo de conduta monotonamente prevista como “normal” em seus compêndios.
     — Não me venha com escapismos, você está doente e isto é um fato, será melhor que você tente si ajudar, eu e minhas teorias não fazemos milagres. Os ornitorrincos não discursam, ou problematizam sobre os métodos dos seus médicos!
     — Esta conversa não me agrada, eu sou um ornitorrinco e não tenho que ser submetido a estes absurdos! Eu não sei!!!

     "A vida aqui nesta bizarra instituição meus caros amigos ornitorrincos, é um dos mais contraditórios fenômenos desta forma de cultura de que eu pude tomar conhecimento, estas criaturas tão bestiais, estes tais homens, são cheios de manias e vícios que para um ornitorrinco fica difícil de compreender. Lá no mundo dos homens “normais” há uma contínua e incessante forma de autodestruição, as suas fêmeas se prostituem, os machos vivem constantemente entorpecidos, entregues a vícios e futilidades, creio que a vida aqui não valha muita coisa, embora eles a tutelem em seus códigos, eu não confio nestas criaturas abjetas, criaturas que subvertem a fantasia, desdenhando dos sonhos e vivem criando desesperadamente regras e instituições para encarcerarem a si mesmos, racionalizar suas identidades em esquemas monótonos e diria até mesmo suicidas!
    Aqui por sua vez, mal grado estes psicanalistas com seus discursos cientificamente policiadores, a vida dos homens se desenrola com mais liberdade, a fantasia eclode em todos os cantos, a arte percorre as artérias deste corpo louco, eu, como não poderia deixar de ser, só poderia está aqui, tentando descrever este universo dos homens, o universo do absurdo desvendado por um ornitorrinco. (....) Há já ia esquecendo! Que ornitorrinco burro que eu sou! Aqui no manicômio eu me tornei escritor, eu vou mandar uns contos pra vocês ornitorrincos metidos a críticos literários, mas só quando eu terminar de escrever este meu mais recente e maluco conto de um ornitorrinco que pensa que é um homem e fica preso num troço que ele chama de realidade.”

Rodrigo Caldas


 
 
 
 

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