Eu, Flávia, vendedora de vestidos, experiente profissional... vestidos de toda sorte de tecidos, vestidos para senhoras de fino trato, vestidos de veludo, seda, algodão, couro, rendado, delicado; eu, tremia. Vinha, aproximando-se de mim, num andar calmo e seguro, uma mulher madura, cabelo louro, olhos azuis, corpo levemente atarracado. Vinha em minha direção, esta mulher que, concentrada, examinava vestidos como quem remove incômodas teias de aranha. Os trajes estampados esvoaçavam nos cabides enquanto ela os ia afastando, com gesto delicado e asqueroso. Eu tremia, disfarçada e polidamente, tremia. Então, ela pousou os olhos em mim.
Que oceano naqueles olhos, que azul fluido que me assustou! Que presença que aquele olhar irradiava! Olhos de leoa, de felina, mas uma fera cansada, que ainda sustenta majestade no espírito derrotado. Era ela, a famosa escritora. Ali, bem diante de mim e pousando aquele olhar morto-selvagem. Por um instante achei que existia, que minha alma, quase lacaia, era alguém para ela.
Corri a atender-lhe, prestimosa, rápida, eficientemente. O que a senhora deseja, dona Lya? Nada, estou dando só uma olhadinha nos vestidos da estação. E virou as costas, pondo-se a espanar meia dúzia de coloridas estampas, que dançavam, irrequietas, ao toque de suas mãos. Ai, que meu coração é de cristal e se quebra até com nota musical, e que notas mais frias e geladas esta mulher me oferece! Por acaso ela não gosta de nordestina, por acaso ela não gosta de quem não tem segundo grau? Ai, mas que madame mais cruenta que não me reserva nem um pouco de afeto? Deixa estar, que não desisto assim tão fácil.
Fui revelar o meu amor. Assim ela haveria de me enxergar. Não querendo interromper, dona Lya, mas eu queria dizer a senhora que sou sua fã, admiro seu trabalho e já li vários livros de sua autoria. Ah, é mesmo? Fico feliz que tenhas gostado. Ai, que eu não sabia mais o que dizer diante daquele azul profundo gelado, que se abria pra mim frio como gaveta de necrotério. E que necrotério querido! Bem, não vou mais lhe atrapalhar, dona Lya, fique à vontade. Ela sorriu. Lya sorria, deprimida.
Fui até o fundo da loja e contive-me. Que mulher é essa que não se deixa tocar, que não se permite um sorriso menos polido, que se faz de muralha, que se planta num deserto mais seco que a caatinga? Contive-me de lhe fazer um carinho.
A escritora, identidade desvelada, esparramou mais uma dúzia de tecidos macios, esparramando o aconchego que não mostrava, e foi-se embora. Saiu para a rua, pavimentada de pedras, sem olhar para trás e quase duvidei de sua visita, não fossem os tecidos remexidos e as aranhas perdidas nos fios.
Outro dia ela voltou. Mesmo cabelo louro, mesmo olhar, mesma postura
de quem anda em perna de pau: pés doloridos, e mãos tontas.
Fiquei observando, devagar me aproximei, já sem tremores. Poderia
me dar um autógrafo dona Lya? Estendi-lhe “As Companheiras”. Ah,
sim, pois não, respondeu em nítido descontentamento. Qual
o seu nome? Flávia, Flávia S. Medeiros. Rascunhou: Para querida
Flávia Medeiros, um carinhoso abraço. Obrigada, dona Lya.
E lá fui eu para o fundo da loja. Ela seguiu balançando os
vestidos, que nunca lhe agradavam o suficiente para comprar. Tocava os
tecidos, acariciava as texturas lisas, às vezes levava ao rosto
uma seda, um crepom. Espanava os trajes coloridos como quem se livra de
teias de aranha. Depois que ela saía eu me punha a repor no lugar
sua presença e a acalentar os filhotes de aranha, e a dizer para
mim, mas que necrotério querido!