Era uma noite fria e silenciosa, como
todas aquelas outras noites frias e desesperadamente solitárias,
em que o silêncio dói na alma. Eu era apenas mais uma criança
como tantas outras da minha pequena e obscura vila do interior da..., era,
pelo que me recordo, uma existência monotonamente tranqüila,
meu pai era um simplório lavrador, de formas rijas e expressão
lacônica, ele acordava cedo, trabalhava intensamente, sua vida se
confundia com a terra, acho que a sua própria identidade, isto estava
impresso em suas mãos calejadas, seu caráter taciturno, obscuro
porém humano, de uma humanidade diferente, aquela que vem da terra,
do chão que se semeia, que se colhe. Meu pai era assim; forte e
indecifrável como a terra. Ele me levava para a lavra, e pelo que
me recordo foram experiências intensas. O cheiro da terra úmida,
o grito do vento, o verde que rasgava todo aquele cenário tão
vivo em minhas lúcidas lembranças, as poucas e mais fortes
de que tenho.
Minha mãe era uma mulher linda,
de uma beleza rústica que aqui não se vê. As mulheres
da minha vila eram as mais belas, suas formas bem definidas chamavam a
atenção até de uma criança pudica. Minha mãe
era uma delas, uma mulher que fascinava pela força do seu olhar,
pela expressão inteligente de sua testa, pela beleza de sua boca.
Até pelo que me é possível
recordar, minha mãe me impressionava não apenas pela beleza
singular de que fora agraciada, mas pela dedicação à
família. Ela não só fora uma mulher bela, mas uma
mãe completa. Pelo que sei ala veio da mesma vila que meu pai, lá
nas terras altas... eles se casaram jovens, embora do local de onde eles
vieram e segundo os costumes da época eles tenham se unido no período
apropriado. Meus parentes também viviam lá naquela vila remota,
e pelo que sei tinham tido a mesma trajetória.
A minha vila era uma de tantas outras
da região, nós falávamos a mesma língua, tínhamos
a mesma religião, vivíamos no mesmo mundo. Um mundo no qual
o tempo não tinha tanta importância, um mundo sem máquinas
e tecnologia, a vida das pessoas acompanhava a dinâmica do sol, começava
com ele e se encerrava quando o sol saía do cenário, em um
brilho que me arrepia até hoje. Era o momento mais esperado do dia
para mim. Eu corria para o rio com meus irmãos, nós jogávamos
pedras na água, admirávamos o efeito do seu choque na superfície
plástica do rio, e nos embriagávamos com o brilho único
do crepúsculo. Este era o meu maior prazer e do qual eu tenho certeza
que nunca mais
saberei vivenciar como vivenciava na minha vila perdida.
Eu me recordo dos rostos tristes daquela
gente minha quando dos tempos de pobreza, tempos em que a terra se nos
divorciava, tempos de natureza rebelde e terra infecunda. Nestes dias a
vida se demorava a passar, o tempo era triste e as pessoas lançavam
um olhar triste que descoloria tudo ao seu redor, seus olhos tragavam toda
a minha esperança e me deixavam vazio por dentro. Foi nos dias tristes
de terra muda que eu me descobri e aprendi a conversar comigo mesmo.
Mas sempre vinha o tempo de alegria,
de vida, e dos rostos belos do meu povo saltava vida e felicidade; cada
olhar coloria o mundo, e eu transbordava no meu delírio feliz.
Os homens riam e bebiam, as mulheres
belas e formosas, enfeitavam-se e dançavam. O meu amor era a minha
vila feliz. As crianças cortavam as ruas com seus cânticos
inconfundíveis, velhos vinham à porta e contemplavam tudo
com um ar de sabedoria, apreciavam como se quisessem dizer: “Sim meus filhos,
vivam e suguem ao máximo a seiva da vida, pois a vida é um
milagre que deve ser saboreado até o último momento.”E estes
homens e mulheres que aprenderam com a sabedoria do tempo que não
se faz inimigo, tinham em seus rostos marcados uma felicidade diferente,
e que nos suscitava segurança.
Meus irmãos eram como eu, apenas
crianças com olhos infantis. Era assim que eu os via. Nosso tempo
e interesses corriam em uma dinâmica diferente do tempo e interesses
dos adultos, nosso olhar poético e o nosso mundo era ilimitado,
a minha vila era um lugar que tinha um encanto mágico, nós
falávamos com as flores e os pássaros, a água nos
lavava a alma, eu nunca mais encontrei uma água assim.
Mas nem tudo era colorido como pode
parecer, eu me recordo que lá na minha vila havia doença
e morte, mas elas nunca me chamaram a atenção, elas estavam
tão distantes de mim. Eu só me recordo de uma figura tenebrosa
em minha vila antes da invasão. Era um velho de aspecto cadavérico
e doentio, ele vivia solitário em sua existência tenebrosa,
recluso em sua cabana, ele nunca desposou nenhuma mulher, nem nunca se
distanciou muito da vila, era uma figura estranha, eu não esqueço
a sua face inerte, seu andar desajeitado, ele era ridicularizado por toda
a vila, e eu como uma criança não fugia à regra, embora
o temesse desesperadamente. Ele morreu sem que ninguém se desse
conta, ele quando de sua morte, apesar do medo que sempre sentira dele,
me pareceu inofensivo e assustado, ele levou uma existência solitária,
obscura e inútil, não se sabia de onde vinha, exceção
aos mais velhos, nem se existia alguém no mundo que tivesse algum
vínculo com ele, eu o vi morto e não senti medo, só
pena..., só pena.
Mas até então eu não
tinha vivenciado algo de tão forte e brutal, que mudaria a minha
vida, foi em uma dessas noites frias e perdidas no tempo, em uma vila obscura,
perdida em algum lugar que o mundo civilizado não dá importância.
Eu me recordo daqueles homens uniformizados, de expressão brutal,
olhar vazio e armas sedentas de sangue. Foi por gente assim que a minha
vila foi transformada em fogo e sangue, eu já não me recordo,
já não quero recordar, é um turbilhão de sensações
desagradáveis, gritos,
fogo, sangue e morte.
Eles falavam uma língua incompreensível,
riam e destruíam vidas como se estivessem comendo ou bebendo, e
de fato eles estavam fazendo isto, e eu só vim entender muito tempo
depois. Eles abusaram de nossas mulheres e beberam as nossas almas.
Eu vi uma mulher ser estuprada por dois
soldados bem na minha frente, eles penetraram até na alma dela,
e terminaram com um tiro seco que estraçalhou o seu cérebro.
Eu me escondi dentro de uma caixa, e das brechas eu vi o que eu nunca imaginara.
A vida era também brutal. É este o sentimento que me toma
até hoje, a vida é essencialmente violenta. Eu vi meus pais
e irmãos serem mortos como porcos, minha mãe implorava pela
vida dos meus irmãos que choravam..., eu estava anestesiado, durante
muitos anos não consegui recordar desta passagem da minha
vida.
Minha família foi exterminada,
meus amigos foram mortos, minha vila apagada, e eu esvaziei por dentro.
Foi assim que vi meu mundo acabar, foi
assim que minha vida foi destruída, quando um povo resolveu
subjugar outro através das armas, da violência.
Foi assim que meu sonho acabou e eu me descubro
hoje tão brutal, violento e civilizado.
Rodrigo Caldas