Apesar de não saber direito o que era aquilo, foi a garrafa que
me trouxe melhor impressão. Rótulo amarelo ouro e palavras
italianas escritas em letras vermelhas. Coloquei uma dose caprichada naquele
copo de vidro cor de vinho e mandei tudo numa talagada só. Meio
amargo no começo, mas melhorzinho depois de dez segundos. Mandei
uma outra dose, apesar de preocupado com o cheiro que poderia deixar. Sabia
que era uma bebida forte e poderia me dar a relaxada que eu precisava para
encarar aquela entrevista. Fiz um bochecho com Anapyon. Engoli um pouquinho,
porque aquilo ali também devia ter uma dosezinha de álcool
ou de qualquer outro dopante.
Minha mãe estava tirando a mesa do café e fez um elogio às
minhas roupas. Me disse para ficar calmo que ela ia ficar rezando por mim.
Agradeci e dei um beijo nela antes de sair. Além da reza, talvez
precisasse de uma bela carreira de pó, mas isso não poderia
pedir a ela. Também não queria mais usar esse recurso, pois
da última vez fiquei meio paranóico achando que estava dando
na cara a minha doideira. Precisava parar de usar esse tipo de artifício
e tentar resolver a coisa a seco. Não é possível que
eu nunca daria conta de me sair bem nesse tipo de coisa: era só
responder algumas perguntas e fazer alguns testezinhos. O que é
que tem de mais nisso? Mas na hora aquilo se tornava uma coisa de outro
mundo e eu ficava completamente bloqueado. Nessas horas gostaria de ser
como o Júlio, o meu amigo gerente de banco, que era o cara mais
despachado que eu conhecia. Mas tinha de ficar confiante dessa vez, haveria
de me sair bem. Acho que aquela dose cumpriria bem o seu papel relaxador.
Saí de casa mais cedo, evitando a correria e a tensão que
sempre marcaram as entrevistas anteriores. Iria de metrô, que tinha
uma variedade de passageiros bem mais interessante e divertida. Caminhei
lentamente pelo corredor que me levou até o guichê 3, onde
comprei uma passagem de ida e volta. Desci as escadas até a plataforma
onde aguardaria o embarque. Tirei o paletó cor de chumbo, pois o
calor aumentara bastante. Pensei ser efeito da bebida, mas não era
possível que aquela dose tivesse tal poder. Preferi uma hipótese
mais aceitável: a razoável quantidade de pessoas que ali
se aglomerava. Posicionei-me atrás de um senhor que lia um jornal,
mas nenhuma daquelas manchetes me interessou, no news. Além do mais
eu não estava conseguindo ler direito, pois as letras menores pareciam
meio embaralhadas. Desisti. Poderia esbarrar com uma daquelas malditas
dicas de como se portar numa entrevista de emprego, que sempre acabavam
me confundindo e me deixando mais tenso.
O primeiro trem do metrô
já havia passado, mas não coube todo mundo. Fiquei para o
próximo. O cara do jornal embarcou e ficou lá, meio apertado.
Passei, então, a observar um grupo de pessoas mais a frente, onde
uma bela mulher se destacava. Daquela tipo executiva, com aqueles terninhos
de nome francês e pasta 007. Ela tinha um certo ar superior que parecia
manter as pessoas a uma distância segura. Fiquei observando a postura
da mulher, automaticamente tentando imitar o seu jeito, já que uma
boa postura era dica constante em qualquer manual para entrevista de emprego.
Foi quando um sujeito se postou ao seu lado, encobrindo a minha visão.
O camarada era a pessoa que havia chegado mais próximo da mulher
e, em menos de 5 segundos, havia engatado uma conversa. Me pareceu uma
pessoa conhecida, mas não pude vê-lo direito, pois ele ficou
de costas para mim. Poderia ser o Júlio, que era o mais cara de
pau que eu conhecia para chegar assim em uma mulher, coisa que nunca tive
coragem de fazer. E lá estava o homem, vestido com um terno igual
ao meu - um pouco mais bem passado, é verdade - dando em cima da
gerente multinacional.
O segundo carro chegou e
desta vez deu para embarcar. Foi até bom, pois o vagão não
estava muito cheio, ao contrário daquele que levou o homem do jornal.
Duas barras de segurar à frente estava o casal que se formara na
estação: a executiva e o garanhão do rosto encoberto.
Uma estação depois os dois já conversavam animadamente.
"Que lábia!" - pensei. Foi quando pude ver o rosto do sujeito, que
mudara de posição devido à nova leva de passageiros.
Nos primeiros 10 segundos eu realmente pensei se tratar de uma fisionomia
conhecida, mas depois vi que era mais do que isso: era a minha cara! Impossível,
tirando o cavanhaque bem aparado, no lugar da minha barba mal encorpada,
aquele ali era eu! A primeira reação que eu tive foi me esconder
atrás do crioulo gordo que estava na minha frente e espiar o sujeito
meio detetivamente. Incrível. Nunca imaginei a possibilidade de
existir alguém tão parecido comigo. Será que era um
irmão gêmeo? Por que ninguém nunca havia me contado
a respeito? E se ele foi jogado na lata de lixo quando nasceu, mas conseguiu
sobreviver? Cara, que viagem! Lembrei-me da bebida do rótulo amarelo
e sua dose alucinógena. Só podia ser isso: o calor, as letras
embaralhadas e agora o irmão gêmeo. Continuei observando o
cara, como se estivesse olhando no espelho. E ele lá, jogando a
maior lábia na executiva, que desceu duas paradas depois, não
sem antes lhe dar um cartão e um belo olhar de despedida. Bem que
podia ser eu. Comecei a desconfiar que era quando ele tirou a carteira
do bolso e guardou o cartão. Aquela carteira marrom com a presilha
e as bordas em bege poderia ser brega, mas era única. O seu Afonso,
sapateiro amigo meu, é que havia feito para mim, sob exclusividade.
Se no começo eu estava
intrigado, agora estava completamente espantado e quase não noto
a chegada da minha estação. Só me toquei porque o
meu clone desceu e eu procurei na parede o nome da estação
e lá estava o meu destino escrito em letras vermelhas. Fui andando
atrás do sujeito, de modo que pudesse observá-lo bem. Não
restava mais dúvidas, nem irmão gêmeo poderia ser.
A cicatriz perto da sobrancelha direita estava lá. E outra: as roupas
eram idênticas, apesar do lencinho no bolso, combinando com a gravata,
que lhe dava um toque mais chic. Subindo a escada rolante que dava acesso
à rua, ele atendeu um telefone celular. Era outro diferencial, pois
eu não tinha celular. Parecia ser uma versão sofisticada
minha, um upgrade da minha reles existência. Fiquei com medo de alguém
reparar a nossa semelhança, mas ninguém sequer nos dirigia
o olhar. Cheguei mais perto, na tentativa de tentar escutar algo e o ouvi
dizendo que estava a caminho e confirmando um horário, que era o
mesmo em que eu iria fazer a minha entrevista. Pensei em cutucá-lo,
puxar conversa, chamar a atenção, esclarecer as coisas, mas
fiquei com medo. Poderia ser uma dimensão paralela, eu interferiria
num mundo que não era o meu. Já tinha visto em filmes, mas
nunca pensei que aconteceria comigo. Caracas! Fiquei sem saber o que fazer.
O sujeito - ou eu próprio - entrou num café e eu resolvi
entrar também, ainda com medo dele ou de alguém perceber
a semelhança. Mas, como na escada rolante, ninguém parecia
nos notar. A teoria da dimensão paralela ganhava força. Ele
sentou no balcão e pediu um capuccino. Eu sentei numa mesa próxima
e pedi uma dose de campari. Enquanto o garçom caminhava até
o balcão, pude ver, na prateleira do bar, a mesma garrafa de rótulo
amarelo que havia bebido em casa. Seria ela o portal para a outra dimensão?
Quando o garçom voltou, perguntei o nome da bebida e ele disse que
era fernet. Mesmo não sabendo o que era, fiz que sim com a cabeça,
demonstrando conhecimento. O clone terminou seu capuccino, enquanto o meu
campari ainda estava na metade. Ao sair ele deu uma olhada por todo o café,
inclusive na direção da minha mesa. Não tive opção
a não ser virar o copo de campari, de modo que tampasse um pouco
o meu rosto. Mas ele não esboçou nenhuma reação
ao passar os olhos por mim.
Saí meio grogue do
café e continuei a segui-lo. Nessa altura eu já tinha a certeza
que eu e ele éramos a mesma pessoa e que iríamos para o mesmo
destino. E comecei a achar isso bom, porque tenho a impressão que
ele seria mais eficiente na entrevista. Acho que toda aquela tranqüilidade
era efeito da mistura alcoólica com a dimensão paralela.
Fui seguindo a passos largos para a empresa, sem saber o que iria acontecer
quando aparecêssemos juntos na sala. Resolvi deixar ele entrar na
frente e ver no que ia dar. Mesmo assim, fiquei meio de esgueio e pude
observar a sua confiante entrada na sala. Cumprimentou a senhora que fazia
a recepção, que pediu a ele para aguardar, pois outro candidato
estava sendo entrevistado. Ele agradeceu e sentou-se tranqüilamente
na poltrona sob a janela. Nesse momento senti uma pontada no estômago
e um fulminante enjôo, que fez rodar a minha cabeça. Meio
zonzo, procurei um banheiro, que, por sorte, era próximo. Mal entrei
e estava vomitando uma mistura rubro-negra, que era a única coisa
que eu tinha no estômago naquela hora: campari e fernet. Foi o suficiente
para a minha melhora, apesar do rosto sem cor que vi no espelho do banheiro.
Lavei o rosto, fiz uns bochechos, dei uma ajeitada no visual e voltei ao
meu posto de observação. Ao chegar próximo de onde
estava, vi a senhora recepcionista vindo em minha direção:
— Sr. Vagner, é
a sua vez. Chamei o senhor, mas não vi que havia ido ao toalete.
Agradeci meio sem graça
e pedi para aguardar um pouquinho. Precisava ganhar tempo e por as idéias
em ordem. E o meu clone, onde estaria? Ela podia não ter visto ele
entrar e agora me chamou. Confusa, a coitada. E se eu fosse lá
e desse de cara comigo mesmo lá dentro, que situação
não seria. Olhei na poltrona em que ele estava sentado e não
havia ninguém. Será que eu havia vomitado a chave que me
dava acesso àquela outra dimensão? Será que aquilo
tudo fora uma grande alucinação? Putz! Agora toda a tranqüilidade
acabava rapidamente e a antiga tensão pré-entrevistas chegava
a galope. Não havia outra alternativa, tinha que ir lá. Não
podia avisar àquela senhora que ela estava enganada, pois eu já
estava lá dentro sendo entrevistado. Passei pela recepcionista e
me dirigi até a sala de entrevistas. O pior é que agora a
minha cabeça estava doendo. Merda! Abri a porta e lá estava
o senhor de barba grisalha me esperando para decretar o meu mais novo fracasso.
Acho que minha solução seria um bom psicólogo. O consolo
foi tentar acreditar que naquela outra dimensão as coisas devem
ter sido diferentes.
Leonardo Rezende Rodrigues