Eu andava sentindo qualquer coisa de anormal, nas costas, uma dor chata, desânimo, inapetência ampla, geral e irrestritamente instalada. Uma febrinha que chegava todo dia em hora marcada, chegava mansa, safadamente encoberta. Um frio esquisito, não daqueles de bater-queixo, mas aquele que nos envolve na tristeza dos mantos lúgubres do desalento. Fui ao médico. Após cuidadoso exame e as devidas radiografias, o médico constata:Um desmaio pode acontecer em junho. (Millôr Fernandes)
— Você está com pneumonia. No pulmão esquerdo. Veja aqui sua foto:
E me mostrou uma chapa imensa, onde minhas costelas se faziam levemente "decoradas" por uma manchinha preta.
Naquele instante, a palavra pneumonia me soou em cadência melodiosa e triste. Em questão de segundos, balançou em meus pensamentos o decantado "a única coisa a fazer é tocar um tango argentino", do Manuel Bandeira, melancolicamente compassado em seu magistral Pneumotórax. Quando já me preparava para o psicológico trinta e três, a voz do médico me faz voltar à realidade:
— Não é tão grave assim, ainda, vou-lhe passar a prescrição, mas já lhe aviso para tomar cuidado com o que come, com o que bebe, com o que veste, como dorme, como sai, como entra...Você será a única responsável pelo seu pronto restabelecimento.
— Está bem, doutor. De agora em diante vou ter mesmo cuidado. Agradecida.
— Um momento, senhorita. Nada de sorvetes, de sucos ou bebidas geladas.
— Mas, doutor, eu gosto tanto...
— Não pode! Se quiser, tudo sem gelo.
— Mas, doutor, esse "tudo" inclui coca sem gelo? Suco quente? Putz!
— Então tome chá!
— Mas eu detesto chá! Nem um bocadinho, doutor?
— Nem um bocadinho. Nada, nada de gelado.
— Mas nem um golinho à toa?
— Não!
— Nossa, que desumanidade! Nem um sorvetinho de chocolate, daquele que escorrega goela abaixo?
— Não!
— E nada de comidas pesadas, nada de feijoada, nem de rabada, nem de caldeirada. Somente sopinhas leves, nada de sobrecarregar o estômago que, bem ou mal, responde malcriadamente ao vizinho do andar de cima. E se conversam de vez em quando. Aliás, o estômago é o que reclama mais.
— Nada que termine em ada, doutor? Nem goiabada? Não entendi nada!
— Doce pode. Mas não abuse.
— Uma latinha?
— Uma latinha? De doce? Você já fez os exames de diabetes?
— Esquece, doutor.
— Nada de clubes, de natação, de ginástica, repouso absoluto.
— Nada de ginástica, doutor? Nem levantar o pezinho de vez em quando?
— Nem pé, nem mão, nem nada!
— Ficar como uma defuntinha, sentada?
— Sentada, não, deitada!
— Deitada? Mas pode deitar com a cabeça levantada?
— Eu disse deitada! Deitada de corpo todo. De preferência com a cabeça mais abaixada que o corpo.
— Como é, doutor? Deitar de cabeça pra baixo?
— Não! Assim, ó, olhe aqui!
Neste momento, o médico deitou-se na maca e deixou estar sua cabeça balançando para fora, como se estivesse vomitando.
— Não sei se conseguirei deitar assim, doutor. Preciso treinar um pouco.
— Tudo bem. Treine em casa! Aqui não é academia! E use somente blusas de mangas compridas. Bem abotoadas no pescoço. Nada de blusinhas decotadas, nem de sainhas, nem de shorts, nada de pernas ao vento, nada ao vento!
— Nada, doutor? Nem um resto de pescocinho?
— Nada! Já disse! Nada de nada!
— Mas as coisas gostosas estão proibidas, isso é muita maldade! Muito autoritarismo! Aquilo que o senhor disse da coca-quente é brincadeira, não é? Eu não estou com problemas intestinais! Coca quente é purgante! Quem pode viver assim? Quem é que pode?
— Ah, e nada de sair à noite. Sereno faz mal. Não quer ter muitos anos de vida?
— Ouça, seu doutor, querer eu quero, mas lá isso é vida???
Ana Paula Sabbag