No canto do mundo, aprisionado,
lembrava. Os homens que chegavam, vinham num rodopio pelo espaço
do desencontro e se espatifavam na sua cara. Não abraçavam
nem beijavam. O mundo cheio de ódio e miséria. A cidade,
de feras e pessoas caladas. A cela, aquele fedor de mijo, além de
torturas, claro. E a noite rescendendo a solidão. Nem teto, nem
mulher, nem livro, nem cama. Só.
Em torno, a vida e a morte.
Vim de longe. De onde
vim as pessoas abraçavam e beijavam. Havia teto, e mulher, e livro,
e cama. Num tempo e noutro: havia quem gostava de plantar flores nesse
mundo. A noite rescendia mais a amor que à solidão. A mulher
era aquela agonia de estar toda perto e dentro de mim. Mas eu... onde
estava? E em que agonia ela me encontrava? E em que agonia Deus não
encontrou mais a gente nesse lugar?... (Ah, ainda lembro, fomos embora
em viagem precipitada, mais uma vez não pude recusar a fuga. Houve
noite nessa viagem: uma noite que durou muito tempo e ainda não
acabou...) Antes o hospital, eu dizia. Antes a guerra, eu dizia. Antes
a morte, eu dizia. Uma coisa ou outra era uma forma de continuarmos juntos,
lutando. O contrário de tudo também não foi continuarmos
juntos, fugindo.
Em torno, a vida e a morte
Afinal, que fiz?
Em torno, a vida e a morte.
Lá vem os homens
de novo e pelo espaço do desencontro. E agora não vêm
mais sozinhos, trazem consigo deuses e demônios. Deixaram crescer
os cabelos e as unhas, pintaram os corpos de piche e compraram armas para
suas mãos. Tem-se a certeza, não mais a impressão,
de que eles vêm derrubando coisas e gente. Aí entram aqui
onde tudo o que o homem faz é riscar um palito de fósforo
após outro , e cospem fumaça na sua cara. E o homem acuado
no canto, temeroso abatido, infeliz e miserável, começa a
entender que se iniciou a tortura.
Em torno, a vida e a morte.
Afinal, que fiz?
Em torno a vida e a morte.
Pegaram o homem e jogaram nesse outro mundo. Nus: o homem e o mundo.
A fumaça: a encher o mundo e a sufocar o homem, que tosse e tenta
escapar. Mas a fumaça: a encher cada vez mais esse mundo e a sufocar
cada vez mais o homem. Só a lembrança coexiste nesse vazio
de fumaça. Só a lembrança.
Em torno, a vida e a morte.
Afinal, que fiz?
Em torno a vida e a morte.
De onde vim tinha muitos
livros. Eu lia, acomodado, todas as vezes fumando. Tinha jornal, sabonete,
escova de dente, revista; tinha cerveja, cigarro, cheiro de roupa lavada;
tinha violão, amigos e uma mulher com quem eu trocava amor e experiência.
Tinha também radiola e discos; juntos ouvíamos Chico, Milton,
Vandré e outros, inclusive os clássicos. Mas afinal, que
fiz?
Antes o hospital, eu dizia.
Antes a guerra, eu dizia. Antes a morte, eu dizia. Porém não
me querem no hospital, nem na guerra, nem fora desse mundo... Enfim, não
me querem morto. E a vida que me oferecem também não é
esta que está aí a qual todos têm direito e podem
dispô-la como bem entender , mas outra maior, onde procuro a morte
e não a encontro. Meu mundo agora é este: as pessoas me torturando
aqui dentro, eu todo nu, sem poder morrer, só lembrando. Não
sei o que fizeram de minha mulher, nem adianta querer saber, porque me
tiraram o caminho e os passos. E também porque já não
sou um ser localizado no tempo. Se olho uma árvore, não tenho
tempo pra pensar que dela, mais tarde, podem brotar flores e frutos. Não,
não posso pensar: jogaram-me no depois do futuro. Só posso
lembrar, e o faço sem medo, mesmo sabendo que livre só existe
o vento. O vento é livre, o homem pensa. Eu era livre antes? Já
pensei que o vento é livre porque foi feito antes do homem
e não necessita de coisa alguma. Sendo gerado depois e precisando
sobreviver, o homem é hoje um ser que tem medo. E, no entanto, só
quem não tem medo é que faz medo. Claro, a coisa que existe
com mais força é o medo. Lembro que estou aqui, porque não
tive medo. Não tive medo de pensar nem de falar. Mesmo quando amei,
amei sabendo que depois que se ama jamais se é o mesmo. Agora queria
pensar que Maria não existe assim como Deus.
Em torno, a vida e
a morte.
Afinal, que fiz?
Em torno a vida e a morte.
Deus? O cérebro do
homemo pára aí: ele fica lembrando. Em torno, a vida e a
morte. Depois mastiga seco a palavra-pensamento. Mastiga seco a palavra:
Maria. E se distancia no passado; mastiga seco outra vez a palavra-pensamento
e grita por parentes e amigos, e repete a palavra: Maria.
Em torno, a vida e a morte.
Afinal, que fiz?
Em torno a vida e a morte.
Lá vem os homens
novamente. Chegam e disparam suas armas contra o homem, depois falam: "Não
se alegre, essas balas não matam".
Em torno, a vida e a morte.
Afinal, que fiz?
Socorro Trindad
Do livro: "Chame o ladrão - contos policiais brasileiros", antol., 1978, Edições Populares, SP