Era tão azul, que
não se conteve. Passou horas, dias, meses, anos olhando para aquela
imensidão. Aquele azul era tão infindo que poderia morrer
ali, olhando para ele. Sentado na sala, absorção pictórica.
Andando pelas ruas. Tudo em sua volta tinha que ter aquela cor. Um dia
ela se foi. Não, não era de seus olhos que sentia falta.
Era do azul. Ali naquele azul se refugiava, ali se acalmava.
Saiu. Comprou várias
latas de tintas azuis. Precisava reconstruir seu esconderijo predileto:
o azul. Pintou todas as paredes, e os móveis, e o teto de azul.
Mas não era a mesma coisa. Nada ali poderia acompanhá-lo
às ruas. Não poderia sair arrastando seus tapetes ou seus
móveis. Não. Precisava exatamente daquela imensidão
azul. Não haveria outra como aquela no mundo.
Começou a desesperar-se.
Precisava olhar de novo para aquele azul. Mas não sabia onde encontrá-lo.
Era seu vício e seu remédio. Estava viciado. Foi para pontos
movimentados da cidade e começou sua procura. E a cada dia que se
passava perdia peso, cabelos, se entristecia.
Decidiu partir para uma
nova tática. Ali, as pessoas andando não lhe davam tempo
de absorver seus olhos, os poucos azuis que ali encontrava. Passou a marcar
alguns pares anis que por ali trafegavam cotidianamente. Passou a perseguí-los.
E colocou em prática seu plano. Há dias não ia mais
ao trabalho. Há dias não ia mais a lugar algum.
Cometeu, então, seu
primeiríssimo seqüestro. Não sentia culpa. Por quê?
Ele só queria se encontrar de novo. Levava as vítimas para
seu apartamento. Sempre com os olhos vendados. Não importava se
jovens, crianças ou velhos, homens ou mulheres. Amarrava-os no seu
sofá azul. Sentava-se em frente a eles e ficava horas olhando seus
olhos. Atônitos e sem nada entender, as vítimas eram soltas
em locais distantes e diferentes. Para não ser reconhecido, mudava
os locais de suas buscas todos os dias e, também, usava disfarces.
Passaram-se anos, e nada.
Até que um dia encontrou os mesmos olhos azuis de antes. Um pouco
mais envelhecidos, é claro. Mas eram eles. Não teve dúvidas.
Seqüestrou-os e levou-os para sua casa-azul. Havia se mudado para
uma casa mais afastada, pois seu apartamento estava um tanto manjado.
Feliz, levou seus troféus
para casa. Sentou-se à sua frente. Passou dias olhando-os. Mas,
menos de um mês depois, sentiu que havia algo errado. Em tantos anos
de procura, seu vício não era mais aquela imensidão,
mas o prazer da captura. Porém, já procurado pela polícia,
tinha agora um grave problema. Aqueles olhos, por conhecê-lo tão
bem, poderiam denunciá-lo. Hesitou. Pensou. Passou mais uma, duas
semanas tentando se controlar. Mas não podia mais.
Odiava sangue. Matou-a sufocada.
Enterrou-a abaixo dos lírios. E voltou ao seu mais novo vício.
O prazer de manter a força sobre o outro. Os seqüestros passaram
a ser semanais. Precisava de um tempo para ver a dor da vítima,
o pavor e seu prazer, ainda assustado, quando ia embora. Outro prazer tornou-se
ler as manchetes: Maníaco faz mais uma vítima.
Maníaco, ele? Jamais. Porém, um certo dia, uma das vítimas,
em um acesso de medo e de pavor, que teve como característica a
agressividade, arrancou-lhe o disfarce. Seria mais um que poderia identificá-lo.
Mais um assassinato. Mais um corpo abaixo dos lírios. Em outra vez,
uma de suas presas tentou escapar na porta de casa. Agrediu-o. Mais
um cadáver. Depois de vários outros, pelos motivos mais insignificantes,
percebeu que, mais uma vez, havia mudado de vício.
E agora o que lhe restaria,
quando se cansasse de matar? E se cansou. Passou dias sentado sozinho em
sua sala se autopunindo, não pelas mortes, mas pela falta de opções
para substituir aquele vício. Saiu pelas ruas pensando o quê
poderia fazer. Viu discos antigos, gibis, selos, experimentou drogas lícitas
e ilícitas. Nada. Matar não te dava mais prazer e não
encontrava nada mais que suprisse sua necessidade viciosa. Até que
se deparou com uma caixa cheia de bolas-de-gude. Contava-as e recontava-as.
Horas e horas sem parar, ali, contando as mesmas bolas, pois pareciam
entre si, então se perdia. Imagina se fosse uma imensidão
de bolas-de-gude? Não teve dúvidas. Procurou a polícia
e fez a proposta. Desconfiava onde estavam todos aqueles cadáveres
procurados, mas para contar tinha uma condição mínima.
Queria em seu apartamento – pois já havia se mudado – todas as bolas-de-gude
que pudessem encontrar na cidade, no estado, no país, no planeta.
Os policiais riram. Ficou
furioso. Ia saindo quando decidiram dar margem à sua loucura. Um
dia depois, recebia dois caminhões das bolotinhas de vidro. Contou
onde estavam os corpos. Todos foram encontrados. Rastreando as informações
falsas do último locatário da casa, chegaram ao autor dos
crimes. Foram ao seu apartamento prontos para prendê-lo. Bolas-de-gude
saiam por todas as janelas, caiam pelos jardins e varandas. Os moradores
já não suportavam mais. Não podiam entrar. Não
havia como. Depois de muito trabalho entraram no apartamento. Nada, pois
o autor dos crimes já tinha outro vício. Fugir. Na verdade,
era o que mais sabia fazer. Fugir. E, como sempre, desde o azul, fugia
única e exclusivamente de si mesmo, sem nunca ter se encontrado,
não seria a polícia que iria encontrá-lo.
Muitos anos depois, velho,
cansando, muitos vícios depois, sentou-se em frente ao espelho.
Mirou-se. Mas não podia ser. Quem era o estranho em sua casa? Chorou.
Auto-acusou-se. Não, não podia ter feito tudo aquilo. E encontrou
seu último vício: punir-se arduamente. Procurou a polícia.
Entregou-se. Olharam aquele velho ajoelhado e riram. Não. O culpado
já havia sido preso e estava morto. Suicídio. Não,
não podia ser. O culpado era ele. Sentou-se, descreveu todas as
suas artimanhas. Foi levado para um hospício e passou a ferir-se
constantemente, um ritual vicioso que fez com que os médicos tirassem
tudo de perto, cortassem suas unhas no mínimo, o amordaçassem.
Não adiantava. Batia a cabeça na parede. Ficava sem comer.
Mas dava um jeito de cultivar seu mais novo prazer: a própria dor.
Então decidiriam
fazer um teste. Levaram-no para o presídio. Nunca mais se feriu.
Era tratado adoravelmente por todos, homenageado em festas, até
no aniversário da cidade. E seu novíssimo vício era,
agora, se fingir de louco. Virar herói. E virou. Quando morreu foi
enterrado com honrarias.
Ana Cristina Almeida Vilela