CINCO TIROS NO PEITO

Sexta- feira.
19:00 P.M

        Levei cinco tiros no peito. Não há dor, apenas os estampidos do Colt.45 e minha visão inclina-se cada vez mais, um último e rápido deslumbre de meu algoz e pronto. Estou caído, de costas no asfalto molhado. A  minha primeira reação não é a dor, nem mesmo angústia ou o medo de morrer. E sim a raiva, a ira que me percorre as veias em alta velocidade. O ódio que me corrompe por dentro enquanto eu fico aqui, inerte. Fitando apenas a escuridão opaca de um céu sem estrelas, com a lua escondida em algum canto, enquanto a água da chuva fraca encharca-me o rosto. Misturando-se ao meu sangue, o qual eu posso sentir escorrendo de minhas entranhas e ser levado pela enxurrada. Não, não posso ter morrido, estou vivo, estou consciente embora não consiga mover um músculo sequer. Eu vejo tudo, o emaranhado de fios da rede elétrica, os pingos frios vindo em minha direção, caindo em meus olhos. Diabos! Eu ainda posso ouvir os passos de meu agressor ecoando pelas ruas vazias. Sim, estou vivo, estou consciente... mas até quando?

         — Mas que diabos está acontecendo...
        A voz é antecedida pelo ruído de uma porta abrindo-se ruidosamente. Ela soa familiar em meus ouvidos.
        —  Oh céus! Norma, ligue para a polícia...
         O dono daquela voz coloca-se em meu campo de visão, trata-se de meu vizinho. Aposentado, sessenta... sessenta-e-poucos  anos, sempre com o seu inseparável boné azulem seu rosto magro, a preocupação faz surgir mais algumas rugas. Ele morde o lábio inferior com força.
         — E mande trazerem uma ambulância! Há um homem baleado aqui!

        Logo, o caos reina absoluto. Todos resolvem sair de suas casas, todos falam ao mesmo tempo, dezenas de rostos fitam-me curiosos, horrorizados. Os murmúrios misturam-se, em uma absurda sinfonia.
        — Meu Deus!
        — ...e então eu ouvi...
        — ...tiros, cinco tiros...
       — Pam-Pam-Pam...
       — Pa, pá...
       — ...está morto...
       — ...alguém chamou a polícia...
       — ...ambulância...
       — ...o rabecão do IML seria mais apropriado!
 
        Eu não estou morto!! Não estou morto!!! Saiam de cima de mim!!!

        As pessoas curvadas sobre o meu corpo, começam a me sufocar, a me assustar com as suas palavras. Eu quero gritar, espernear, mas não consigo mover um músculo. Meus dentes estão cerrados, minha mandíbula está travada. E eu... mas que diabos! Eu não posso ter morrido, ainda estou consciente, sinto-me um pouco fraco... mas perfeitamente consciente.
        — Ihhh, esse aí já era...
        Eu não tenho como deixar reconhecer este rosto, eu não tenho como esquecer esta voz embriagada. É um de meus vizinhos, um sujeito beberrão, inconveniente. Sim, é ele mesmo, a barba cerrada, os óculos de aros redondos. Não há dúvidas, postado sobre a minha pessoa está:" O bêbado do 401".
       — Pera lá... não é o advogado do 311?!
       — O próprio!
       — Caceta!!! - Exclama o bêbado. Ainda debruçado sobre o meu corpo, exalando o seu habitual cheiro de whisky, capaz de me embriagar apenas com o seu hálito.
       — Deixa ver... - Diz ele enquanto aproxima-se de mim.

        Não toque em mim!!! Espere pelo socorro!!! Não toque em mim seu desgraçado!!!

        Ele não escuta os meus protestos, aproxima-se cada vez mais e toca em meu pescoço. Permanece em silêncio por um tempo, até que levanta-se, contempla a mão encharcada de sangue e exclama:
        — Puta-que-o-pariu!
        Logo, escuto o ruído de uma carro, aproximando-se cada vez mais, eu posso reconhecer o carro pelo ruído de seu motor. É um vectra. Cada vez mais perto. Eis que surge uma luz em minha mente, eu me lembro que a minha mulher não estava em casa. O seu carro não estava na garagem, sim ela havia saído com o seu carro... Que de fato, era um vectra!

        Ruído de pneus guinchando, freiando bruscamente, o freio de mão é acionado e uma porta é aberta. Passos tensos no asfalto, em seguida vem a voz inconfundível.
        —  O que está acontecendo?? Onde está o meu marido?? O que está acontecendo?!
        —  Calma...
        —  Papai?!
        Um calafrio invade-me o corpo, é a minha filha me chamando. Oh, só espero que não as deixem me ver neste estado... todo ensangüentado... elas podem pensar que eu morri!
        Antes que eu possa me dar conta, a minha esposa surge, ajoelhada diante de meu corpo estirado ao chão. Ela toca-me, chorando muito, e eu posso reparar que suas mãos ficam sujas de sangue, muito sangue. Espero que o socorro chegue logo, se eu perder muito sangue... posso morrer.
        —  Oh Meu Deus!! Meu Deus!
        — Papai??! - Ouço a minha filha me chamar mais uma vez, e então eis que ela surge, ao lado da mãe. A face assustada, as lágrimas correndo pelas bochechas macias.

        Querida, papai está bem! Papai vai voltar logo para a casa... papai promete!

        —  Quem fez isso com você?? Quem?! —  A indagação feroz de minha esposa, acende novamente a chama do ódio em meu íntimo. A revolta crescente apodera-se de minha pessoa mais uma vez. E o meu corpo treme por dentro.
        —  Alguém leve-as para dentro! Lá vem a ambulância!!

        As sirenes berram como animais selvagens, próximas aos meu ouvidos. Misturando-se aos soluços de minha esposa, e às vozes abafadas que brotam da atmosfera.
        —  Não toquem no corpo! Afastem-se, não há nada para se ver aqui! Voltem para as suas casas!
        —  Eu quero o meu pai...  —  Ainda ouço a minha filha murmurar em algum lugar, onde eu não posso vê-la. Seguindo-se pela voz rouca do aposentado.
       — Alguém leve as duas para dentro, porra! Há um homem ferido aqui!

        Um policial cruza o meu campo de visão, ele é negro, alto e tem a cabeça tão lisa quanto a casca de um ovo.  Outro policial surge, debruçado sobre o meu corpo, há uma expressão de horror em seu rosto.
        —  Caceta! Tragam a maca! Rápido!
        Dada a ordem, imediatamente eu posso ouvir o ruído de armações de metal sendo habilmente manuseadas. Seguida pelo som de borrachas deslizando no asfalto. Braços fortes me agarram e levantam-me, logo, a maca está correndo de volta para a ambulância.
        —  Vamos lá, quando eu contar até três.
        —  Por favor, salvem o meu marido! Não deixem ele morrer!
        Não, não vou morrer... prometo.
        —  Um...
        —  Agora não adianta mais... o peito dele está parecendo um punhado de carne moída!

        Cale essa boca seu bêbado nojento... eu não estou morto! Eu não vou morrer!

        — Dois...
        — Por favor, voltem todos para as suas casas, isto aqui não é a porra de um circo!
        — Três!
        Os policiais agarram a maca e a levantam com os braços, impulsionando-a para frente até que esta adentre por completo o interior da ambulância. Ouço a porta se fechar, e os murmúrios do lado de fora ficam cada vez mais abafados. Até que o motorista dá a partida na ambulância e a coloca em movimento.
        Ao meu lado está o policial negro e um paramédico em seu uniforme branco impecável, com a suas luvas cirúrgicas ele aproxima-se de meu corpo e toca a região ferida. O meu peito. Quando ele o faz, não sinto dor nenhuma, não sinto nada. Creio que deve ser devido ao choque. Mas que diabos, não faz nem meia-hora que a coisa toda ocorreu.
        — Realmente, o cara que fez o serviço não estava para brincadeira!
        — É... uma bela pontaria!
        — Isso foi serviço de profissional...
        Por dentro, eu quero rir da afirmação feita pelo médico. Profissional?! O Maia?! Imagino que em todos esses anos, a única coisa que o Maia teve a competência de conseguir ferir, foram meia-dúzia de moscas. Mas então me lembro de que eu próprio o subestimava, até que as coisas fugiram um pouco do controle...

        Eis que surge o paramédico, com uma espécie de pano negro nas mãos, lentamente ele vai desdobrando aquele tecido, fazendo-o crescer em suas mãos. Sinto um calafrio me percorrer a espinha. Não!! Eu não posso morrer!!
        — Não há mais nada que nós possamos fazer por ele. - Afirma o paramédico com pesar. O policial move a cabeça raspada para cima e para baixo, concordando.
        — É... esse vai ser mais um daqueles crimes difíceis de se resolver, sem testemunhas... sem suspeitos.
        — Bem, eu não poderia fazer isso na frente de sua mulher e filha, no entanto...
        Lentamente a escuridão me encobre, tudo fica negro diante de meus olhos, eu tento gritar, tento espernear. Estou desesperado. Eu não estou morto, Droga!! Ou será que estou?

        Tirem essa merda de cima de mim! Eu estou vivo, estão ouvindo?! Vivo!!! Eu não morri, não estou morto!! Eu não posso ter morrido, tirem isso de cima de mim!!!

        Da pior maneira possível, eu descubro que de nada me adianta gritar. Ninguém pode me ouvir, ninguém pode fazer nada por mim, todos pensam que eu estou morto... ninguém pode ouvir um morto. De tal forma que eu me calo com a minha dor, relembrando aquele momento crucial de minha vida, aquela meia-hora. Trinta minutos que fizeram a minha vida dar uma guinada de 360 graus.
        Maldito Maia!!!

 

        A chuva fina caía no pára-brisa do carro enquanto eu, apressado e desnorteado, voltava para a casa. Sempre com o limpador acionado, dançando de um lado para o outro, enquanto eu dobro a esquina, sempre com a cabeça voltada para os acontecimentos das últimas quarenta e oito horas. Baixo os olhos para o jornal pousado no banco do passageiro, nele a notícia me preocupa... muito. O dia foi tenso na firma, pressões de todos os lados, e nada de o Maia aparecer. Penso que talvez ele houvesse fugido, mas dentro de alguns instantes saberia o quão enganado estava.
        Com os diabos! O nome da firma era citado várias vezes em todos os jornais juntamente com o nome do Maia. Acusado de envolvimento com a máfia do judiciário que assola o país, talvez os esquemas fraudulentos houvessem dado certo por um tempo, mas agora os nomes começavam a aparecer. Como os cadáveres de pessoas que morrem afogadas um dia surgem à superfície, os nomes de envolvidos também vinham à tona. Um por um. E entre eles, o nome de meu sócio... e o de nossa firma de advocacia.
        Eu já avisto a fachada de minha casa, dobro a esquina mais uma vez e pronto, estou em casa. Saio do carro lentamente, caminho pela entrada de automóveis e paro diante da porta da garagem. Termino por abrir a pesada porta de madeira e vejo que o carro de minha mulher não está lá. Deve ter saído com Sofia, a nossa filha. Na garagem, um silêncio sepulcral domina. Uma pontada em meu coração lembra-me que toda calmaria é o indício de uma tempestade. Os cabelos finos em minha nuca vão arrepiando-se.
        Vou caminhando de volta ao carro quando dou de cara com o meu algoz, parado ao lado do automóvel, calado como um gato. Metido em sua capa de chuva, negra e brilhante ,ele me fita com seus olhos sombrios. Com ambas as mãos metidas no bolso.
        — Oh! Maia?! Você está bem? Não apareceu na firma hoje...
        — Calado. — Responde ele, sem alterar a voz. Ele, que durante muito tempo foi meu amigo, mas nos últimos dois anos a nossa relação passara de "amigável" para "suportável". Realmente, não era nada fácil lidar com pessoas como o Maia, todos nós já conhecemos pessoas deste tipo, estão em todos os lugares como uma praga. São tipos baixos, que têm prazer em ferir ao próximo, de qualquer maneira possível. Tipos mesquinhos, sempre achando uma maneira de passar-lhe a perna enquanto bate nas suas costas amigavelmente. Era esse tipo de comportamento, que o Maia levava à perigosos extremos, como um cão que sabe a hora exata de abanar o rabo ou colocá-lo entre as pernas, mas que morde traiçoeiramente assim que vê uma oportunidade. Um cão, não há comparação que melhor encaixa-se em meu sócio, do que esta.
        — Bem Maia, acho que nós temos muito o que conversar... vamos sair da chuva, vamos tratar destes assuntos em meu escritório. Do lado de dentro.
        — Oh, nós temos muito o que conversar sim, Luís. Mas aqui fora.
        — Se você prefere...
        — Claro que eu prefiro!
        — Maia pode-me dizer o que está acontecendo? Por seu Deus, o nome de nossa firma está nos jornais!! -É só isso com o que você se importa não é mesmo? Só com a maldita firma!! Você ainda tem muito o que aprender sobre valores nobres como... como "amizade"!
        — Não, por favor! Não me venha falar de amizade! Não você, não depois de tudo o que aconteceu!
        — Eu não tive culpa de nada! Você quis romper a nossa amizade, você está quebrando o pacto de nossos pais!
        — Por favor Maia, não seja estúpido! Nossos pais fundaram a empresa, nós a herdamos. Amigos são amigos... negócios são negócios!
        — Você é tão sujo! —  Esbravejara ele com seus dentes amarelados pela nicotina. Cínico, ele levanta a sombra do que um dia fora uma sobrancelha, e que agora, devido à um estranho problema psíquico tornara-se uma fina nuvem cinzenta, como a nuvem que anuncia uma tempestade.
        — Oh, veja bem o que você diz. Não é o meu nome que está em meio à um esquema fraudulento envolvendo juízes, promotores e certos advogados!
        — Os repórteres foram na firma e você nem mesmo para me defender... pois bem! É bom saber, colega, que se eu for preso você está ferrado!! Todos os seus podres virão à tona! - Enquanto diz estas palavras, Maia faz cara de vítima, porém o tom de sua voz é belicoso. Ele sabe que eu não vou me intimidar tão fácil. Todos nós temos os nossos podres, sem exceções. E ele sabe que os meus negócios não chegam aos pés dos seus, enquanto os meus podres podem acarretar em algumas chateações, os dele podem levá-lo para a cadeia.
        — Isso é bem típico de você, não é mesmo? Não dá um passo sem antes ponderar, não dá um passo antes que esteja totalmente seguro do que está fazendo. Até quando você vai ser uma pessoa medíocre e desafortunada? Até quando vai culpar os outros pelos seus infortúnios ?

        Neste momento eu já posso sentir o perigo no ar, o rosto do Maia fica vermelho por um instante. E isso é perigoso, é como um animal acuado. Ele pode atacar, pode morder. Eu passo por ele, abro a porta do carro como que encerrando o assunto. Mas ele não desiste fácil. Sua mão esquerda agarra-me o braço, e eu só espero que ele não perceba o quanto estou tremendo.
        — Ainda não terminamos!
        — Oh sim, terminamos sim!
        — Eu preciso de dinheiro Luís! Preciso fugir do país, meus bens estão bloqueados pela justiça.
        — Não vou lhe dar nenhum tostão!
        — Oh, não Luís, você não! Não espero que você me dê um centavo... mas há uma outra maneira.
        — Então por que me...
        — Talvez você não saiba - Começa ele, me interrompendo. - mas os nossos pais eram muito precavidos.
        — De que droga você está falando?
        — Talvez você não saiba, mas há um documento em nome da firma, uma espécie de apólice dizendo que: No caso de morte de um dos proprietários, existe um fundo para  firma... no valor de 200 mil dólares! Onde os únicos beneficiários são eu e você!
        — Seu desgraçado! Eu nunca ouvi falar desta apólice, você criou este documento! Você o fraudou!
        — Pode ser... mas pense bem, 200 mil dólares!
        — E o que faz você pensar que irá colocar as mãos neste dinheiro?
        — Você me ouviu bem, 200 mil dólares no caso de morte, e eu... bem eu não pretendo morrer tão já!

        A última visão que tive de meu sócio foi a de seu corpo troncado, curvado sobre minha direção, com um objeto de metal reluzindo na luz fria da noite. E então vieram os ruídos.

       BLAM-BLAM-BLAM-BLAM-BLAM

        Levei cinco tiros no peito. Não há dor, apenas os estampidos da 45 e minha visão inclina-se cada vez mais, um último e rápido deslumbre de meu algoz e pronto. Estou caído, de costas no asfalto molhado. A  minha primeira reação não é a dor, nem mesmo angústia ou o medo de morrer. E sim a raiva, a ira que me percorre as veias em alta velocidade. O ódio que me corrompe por dentro enquanto eu fico aqui, inerte. Fitando apenas a escuridão opaca de um céu sem estrelas, com a lua escondida em algum canto, enquanto a água da chuva fraca encharca-me o rosto. Misturando-se ao meu sangue, o qual eu posso sentir escorrendo de minhas entranhas e ser levado pela enxurrada. Não, não posso ter morrido, estou vivo, estou consciente embora não consiga mover um músculo sequer. Eu vejo tudo, o emaranhado de fios da rede elétrica, os pingos frios vindo em minha direção, caindo em meus olhos. Diabos! Eu ainda posso ouvir os passos de meu agressor ecoando pelas ruas vazias...
 

      II
Sexta -feira
20:00 P.M
No necrotério

        A freada brusca da ambulância desperta-me de meus devaneios, há o ruído das porta sendo abertas e a maca é empurrada para fora, a temperatura cai um pouco e então estou em movimento novamente. Deitado em uma maca, sendo empurrado por algum corredor cheirando a éter com um tecido negro cobrindo-me o corpo. Logo, a maca está em repouso novamente, e assim ela fica por um longo tempo, enquanto as horas avançam pela noite adentro.
        Será isso a morte? A repetição? O nada? Será este o castigo que tanto me falavam que me esperava? É este o castigo de um ateu, a punição por nunca ter acreditado em nada, por ter sido tão cético? Serei eu condenado a passar toda a eternidade confinado em um caixão, embaixo da terra, consciente e sem poder fazer nada? Será isso a morte? Não, não pode ser só isso, tem de haver alguma coisa! Tem de haver um outro lado! Imagino os dias claustrofóbicos que virão, olhando para o teto estofado de um caixão de pinho, sem poder mover um músculo, ficar só com as minhas lembranças enquanto os vermes alimentam-se de minha carne, que vai ficando putrefata dia após dia. Será esse o "fim"??
        Uma claridade opaca, vinda das lâmpadas brancas que pendem do teto ofuscam-me a visão. Alguém puxou o lençol que cobria-me o corpo, permitindo-me de enxergar alguns enfermeiros trajando seus imaculados uniformes brancos. Eles apanham-me nos braços e suspendem meu corpo no ar, em seguida sinto minhas costas tocarem uma superfície gélida, estou deitado numa mórbida e surreal mesa de metal. Uma mesa de autópsia.

        Larguem-me!!! Ponham-me de volta na maca....!!!

        A figura de um médico, cobrindo o rosto com uma máscara cirúrgica, invade meu limitado campo de visão. E todo o desespero do mundo invade-me com a fúria dos demônios, quando leio os dizeres em seu crachá metálico preso em seu jaleco.

        Dr. Humberto P. Gross- Legista

        O legista aproxima os dedos de minhas pálpebras, em seguida direciona o facho de luz de uma pequena lanterna no interior de meus olhos. Primeiro no esquerdo, em seguida no direito, até que desliga a lanterna e vira-se em direção aos enfermeiros.
        —  Ok, tirem a roupa de nosso "cliente"... vamos começar  a autópsia o mais breve possível!!
 Durante algum tempo, a frase do médico vaga por minha mente chocada. Então é isso... estou morto!! Condenado a passar a eternidade inerte, porém sensível ao que passa-se em minha volta. Toda a eternidade, fitando a escuridão no úmido interior de minha urna mortuária, sentindo os insetos alimentarem-se de meu corpo. Isso é morte... é esse o meu fim. Desesperador fim.
        Os enfermeiros trazem uma grande tesoura de aço, em seguida seguram-me com as costas voltadas para a parede e fazem um corte vertical em minha camisa. Logo, minha calça é cortada pela mesma tesoura, meus sapatos já nem sei onde estão uma hora destas. Vejo minhas vestimentas serem colocadas em uma caixa de papelão ao lado da mesa de autópsia. Dentro de segundos, estou nu, estupefato. Vendo um insolente enfermeiro levantar minha cueca e rir.
        —  Ei olhem só... o cara se cagou todo antes de morrer!! —  Todos riem, exceto o legista, ele permanece sério e carrancudo.
        —  Absolutamente normal- Diz o legista, enquanto apanha uma caneta piloto numa gaveta.—  Existem alguns casos, onde as funções fisiológicas da pessoa abalam-se devido ao choque...—  Todos ouvem as palavras do médico e assentem em silêncio.
        Todos deixam a sala, restando somente eu e o carrancudo doutor, este passa um longo tempo em pé diante da mesa de metal. Observando-me com curiosidade, desce os dedos até meu tórax dilacerado e toca-o. Ao retirar a mão, eu posso ver seus dedos encharcados de uma substância escura e viscosa... sangue. Meu sangue.
        O legista afasta-se, saindo de meu limitado campo de visão e desaparecendo. De algum lugar, vêm às minhas narinas um forte aroma de éter, seguido pelo ruído metálico dos aparelhos cirúrgicos sendo revirados. Eis que surge novamente, a imagem do doutor debruçado sobre meu...

        Cadáver?!

        corpo. Em sua mão, eu posso ver uma espécie de pinça cirúrgica refletindo o brilho frio, das luzes que iluminam o necrotério.
        A pinça aproxima-se de meu corpo, a vontade que tenho é a de me debater, gritar e espernear. Porém, não me resta nada a não ser observar o médico cravar o objeto metálico em meu tórax. Choque... não há dor! Eu sinto tudo,  a pinça atravessar a carne dilacerada, remexendo dentro de meu corpo. Ou seria cadáver? Posso sentir tudo... menos dor! Ela não existe, enquanto o legista enfia-me a pinça e fica ali, procurando até encontrar a primeira das cinco balas. Ele puxa o aparelho com força, eu vejo-o repleto de sangue e pedaços de carne, com uma bala de .45 em sua ponta.
        O médico coloca a bala numa bacia, certamente postada ao lado da cama. Eu não posso vê-la, mas ouço o ruído de plinct, quando o projétil é posto no recipiente metálico.
        —  Uau... meu garoto, quem fez isso não estava para brincadeira!! —  Murmura o médico, enfiando a pinça novamente em meu peito. De onde ele retira mais duas balas, colocando-as na bacia de metal, juntamente com as outras.
        Restam duas balas em meu corpo, o legista passa cerca de dez minutos procurando-as, até que apanha um outro aparelho, semelhante à pinça, apenas um pouco mais comprido. Crava-o em algum lugar, no fundo de meu tórax. De onde ele remexe por algum tempo, até que eu vejo sair de meu corpo, a quarta bala. Ela sai de meu peito, pingando uma mistura de sangue, catarro e pedaços de tecidos. Logo, a última bala também é retirada de meu corpo. Ambas estavam alojadas em meus pulmões.
        —  Huuummm... colt.45. Deveria ter varado o corpo... atravessado o peito!- Indaga-se o doutor, observando demoradamente, o projétil preso pela pinça.
        Nos próximos minutos, ele costura as partes ainda "expostas" de meu corpo. Em seguida, cobre-me novamente com aquele detestável  lençol negro. A escuridão total toma conta de meu corpo durante muito tempo, meu cadáver fica ali, esfriando no necrotério enquanto correm as horas silenciosas da madrugada. Onde fico sozinho, por um longo período de tempo, com a mortalha negra a cobrir me o ...cadáver! Sim, cadáver! Não existem outras hipóteses, estou morto... é o fim da linha. Desta vez, o desgraçado do Maia saiu-se vitorioso. Desta vez, ficara provado o quão psicótico ele é. Se bem que quanto à isso, eu nunca tive dúvidas.

 
        Quando conheci o Maia, ambos éramos muito jovens para nos lembrarmos em detalhes, o fato é que desde que me conheço por gente, o Maia sempre esteve presente. Nossos pais eram sócios da firma de advocacia, eu e ele tínhamos praticamente a mesma idade e estudamos nos mesmos colégios. Não foi surpresa para ninguém, quando, seguindo os passos de nossos pais, nos tornamos sócios da firma. Talvez, as pessoas sempre haviam esperado por isso. Fico seriamente tentado a dizer que, tanto o meu pai quanto o pai do Maia, já haviam nos preparado a vida inteira para isso. Como se os nossos destinos houvessem sido selados, ainda no útero materno. Afinal, sempre houvera uma aproximação "entusiasmada" até demais, por parte dos velhos. Nós não percebemos, sequer desconfiávamos e poderíamos jurar que estávamos juntos por mero acaso... oh, como fomos cegos!!
        As férias sempre eram em família, a minha e a do Maia. Feriados, natais, ano- novo... estávamos sempre juntos. Com mil diabos, perdemos até a virgindade juntos naquele prostíbulo em Santos! Havia um forte vínculo entre nós, artificial, porém forte. Tal qual irmãos, nós nos odiávamos e nos adorávamos ao mesmo tempo. O problema foi que, à medida que o tempo foi passando, o Maia levou estes dois sentimentos distintos, o afeto e o ódio, à perigosos extremos.
 Seu maior problema era não conseguir separar, fantasia e realidade. Vivia num universo paralelo, mentia o tempo todo, e em algumas ocasiões tinha atitudes incompreensíveis. Tudo para sustentar seu mundo particular, um lugar onde tudo é um mar- de- rosas. Estou inclinado a crer que com o passar do tempo, Maia foi penetrando cada vez mais neste seu universo próprio, revoltando-se contra a realidade, onde os fatos não tinham a mínima obrigação de conspirar ao seu favor.
        Aos poucos, fomos nos afastando. Ele tentava uma aproximação, não admitia ser rejeitado. A situação tornou-se insuportável, depois daquele problema ocorrido com suas sobrancelhas. Uma rara anomalia no  sistema nervoso, deixando-o ainda mais insolente e de certa forma, perturbando-lhe a mente já conturbada. Tomava remédios fortíssimos, esperando resultados milagrosos. Quando o médico disse-lhe que, talvez, suas sobrancelhas nunca mais voltassem a crescer, ele primeiro chorou em meu ombro. Depois, tornou-se espinhoso e paranóico.
        Em pouco tempo nossa relação estava insustentável, ofensas, discussões e até mesmo ameaças feitas por ambas as partes. O Maia colocou o dedo em minha cara e jurou que um dia, ia ganhar muito dinheiro. E então a firma seria só dele. Eu mandei ele se foder e saí batendo a porta. No outro dia, sua mente perturbada já armava uma infinidade de maneiras escusas e fraudulentas de conseguir dinheiro... muito dinheiro! Tornou-se um obcecado e foi enrolando-se cada vez mais em uma grande teia de aranha, envolvendo figurões do poder judiciário. Quando a bomba estourou, o nome de nossa firma estava em todos os jornais. E então, repórteres e jornalistas vieram me procurar, queria saber sobre os esquemas fraudulentos em que meu sócio envolvera-se.             Confesso que nesta hora, veio à minha mente, um grande pavor do Maia sair-se bem daquela situação. E fui subitamente assaltado por um desejo de fazer o meu sócio provar de seu próprio veneno, eu podia deixá-lo em maus bocados. Podia fodê-lo e ficar com a firma para mim... só para mim!! A ganância falou mais alto, e eu entreguei tudo. Propinas, obras superfaturadas, processos fraudados... um infinito mar de lama que eu fingia não ver.
        Então, o Maia sumiu do mapa e quando reapareceu sua mente já estava completamente confusa, foi quando levei cinco tiros no peito. Não, não senti dor alguma. Apenas ouvi o ruído do colt.45 enquanto meu corpo, à esta altura já sem vida, caía no chão molhado...

     III

Sábado.
23:45 A.M
O funeral

        Nas últimas sete horas, minha vida sofreu uma guinada de 360 graus. Levei cinco tiros no peito, fui colocado em uma maca e levado até o hospital, onde já cheguei sem vida. Observei um médico retirar projéteis de Colt.45 do interior de meu tórax, em seguida fui costurado de novo. Para então, vestirem-me um terno negro, daqueles que são cortados nas costas... roupa para cadáveres. Fui colocado no interior de um caixão negro, forrado de feltro vermelho e cravos. Um aroma que sempre apavorou-me,  lembrava-me a morte, as lágrimas... o aroma inconfundível de "cravo-de-defunto".
         Fecharam a tampa da urna, sob meus protestos desesperados. Mas, quem pode ouvir a voz do homem que está morto? De tal forma que eles fecharam o caixão, fixaram as tarraxas e transportaram-me para o velório municipal de Anuíbi. Aqueles quinze minutos, tempo que foi gasto no trajeto do hospital até o local onde sou velado, foram como horas e horas de pavor. A tampa da urna funerária, à poucos metros de meu rosto, provoca- me sensação de sufocamento. Uma intensa onda claustrofóbica invade-me o corpo, eu quero gritar, quero sair daquele caixão fedendo à cravos. Imagino- me condenado a passar a eternidade nesta agonia... o inferno!! Talvez, o preço de meu ateísmo. Toda a eternidade, sufocado dentro de um caixão... como na história do "enterrado-vivo".
        Quando finalmente, eles retiram a tampa do maldito caixão, e um choque maior que a onda de claustrofobia, arrebata-me. Eu vejo minha esposa e minha filha, ambas debruçadas sobre meu cadáver coberto pela mortalha fina como um véu. Elas choram... e eu tenho vontade de fazer o mesmo, será que um homem morto conseguiria derramar algumas lágrimas? Eis que então, meu corpo, por dentro estremece com a fúria de mil demônios. Minha visão eu posso sentir dezenas de aromas misturando-se. Sinto o cheiro das pessoas que encontram-se à minha volta. O perfume de minha mulher, o cheiro dos cravos, um leve aroma de éter  vindo de meu corpo, tudo mistura-se. Sinto um forte comichão, subindo dos meus gélidos pés, até minha cabeça que zumbe e parece querer explodir. A garganta resseca-se e parece arranhar-se, torna-se extremamente árida. Na parede à minha frente, eu vejo o relógio que marca meia-noite e um.
        Minha filha chora e passa a mão em meu rosto, acariciando-me. Eu sinto e ouço seu coração bater forte, sinto o cheiro de um poderoso medo infantil irradiar de seu corpo. Meus instintos tornam-se aguçados, como os de um animal selvagem. Minha cabeça parece querer explodir. O corpo treme por completo. O relógio marca: meia-noite e três. As cores parecem tornar-se mais vivas, eu posso ouvir a chuva caindo do lado de fora. Posso ouvir o que as pessoas conversam em volta de meu caixão. Os ouvidos estão zumbindo, como se milhares de vespas houvessem invadido-os. Os tímpanos vibram dolorosamente. A garganta arranha, o relógio marca: meia noite e cinco.

        Uma barbaridade...
        ...desapareceu...
        ...coitado, tão moço!
        Deus sabe o que faz...
        ...maldade, maldade pura o que fizeram...
        ...uma menininha de sete anos!
        Mas a esposa é jovem...
        ...outro, logo casa de novo...
        ...rica, jovem, bonita!
        E o sócio, onde...
        ...não quis falar com ninguém...
        ...chocado, você sabe como eles eram apegados desde criança.
        Deus é pai...
        ...Jesus Cristo há de ter piedade de sua alma...
         ...misericórdia!

        As vozes fundem- se uma na outra, confundindo- me loucamente, porém há uma voz doce e melodiosa que chega-me aos ouvidos, destacando-se entre as demais. Eu surpreendo-me ouvindo a voz de minha filha, ela não fala alto, apenas murmura em algum lugar onde eu não posso enxergá-la.
        Oh Deus pai, todo poderoso! Ai meu Senhor Jesus, faça meu papai voltar para a casa! Faça meu papai voltar para a casa... faça meu papai voltar para  a casa, amém!!! Faça meu papai voltar para a casa, amém!!! Faça meu papai voltar para a casa, amém!!!
        Amém!!
        Amém!!
        Amém!!

        Lentamente, tudo vai voltando ao normal. A garganta, as cores, os zumbidos em meus ouvidos vão cessando e não me é possível tornar a ouvir as vozes que me cercam. Porém, sinto uma estranha sensação de entorpecimento invadir meu corpo. Como uma poderosa anestesia local, começando a fazer efeito... Talvez, seja meu espírito começando a desencarnar. Talvez, seja só impressão minha. Talvez, eu esteja acordando deste terrível pesadelo.
     -

Sábado
10:36 A.M
O sepultamento

        Amanhece o dia, o funeral ocorreu sem grandes alvoroços, o Maia não deu as caras. O desgraçado deve estar preparando-se para sair do país. Maldito!

        Durante grande parte de minha vida, principalmente nos momentos mais difíceis, eu costumava deitar-me e ficar imaginando como seria meu funeral se eu morresse naquele momento. Indagava a mim mesmo, sobre quantas pessoas iriam ao meu velório, quantas iriam derramar lágrimas, quantas iriam sorrir. Alguém já me disse, há tempos, que isso poderia ser um exemplo clássico de auto-comoção, acusavam-me de sentir pena de mim mesmo. Poderia ser verdade, afinal, quem nunca sentiu-se a maior vítima das forças do universo, que atire a primeira pedra. De fato, há muitas pessoas em volta do meu caixão, entre parentes e amigos, acotovelando-se naquela que costuma ser a hora mais difícil para quem fica: O momento de dizer adeus ao falecido, antes que o corpo seja finalmente enterrado. Algumas pessoas choram, outras apenas mantém a expressão desolada.
        Assim como eu sempre pedira quando andava entre os vivos, não houve nenhuma oração, nenhuma reza em volta de meu caixão. Respeitaram minhas crenças céticas... minha crença no nada! Fiquei de certa forma, satisfeito com isso. Em determinado momento, alguém sugeriu rezar o terço, mas foi logo desistimulado pelos meu amigos e parentes.
        — Desculpe, mas você sabe que ele não acreditava nestas coisas...- Eu ouço alguém dizer, próximo ao caixão. Em volta do qual, todos acotovelam-se, passando a mão em meu rosto pálido e frio como gesso. Acariciando minhas mãos inertes, até que os homens da funerária surgem de algum lugar, e para o meu desespero... fecham a caixão. Não sem que antes eu possa ouvir, o ruído de minha mulher soltando um soluço abafado. Na escuridão claustrofóbica de minha urna funerária, as palavras de minha filha ecoam em minha mente.
        — Oh Deus todo poderoso! Ai, Senhor Jesus, faça que meu papai volte para a casa!! Amém!
 

        Oh, Juju, meu amorzinho... bem que o papai gostaria de poder voltar para junto de vocês!! Bem que eu gostaria...

 

        Então, está tudo acabado. Eu apenas fito a escuridão da urna mortuária, o desespero foi embora e deu lugar à um poderoso entorpecimento. Sinto meus músculos leves, como se não existissem mais, sinto- me como se eu pudesse voar.  O ruído da terra batendo no pinho, no início é assustador, mas aos poucos vai tornando-se familiar. Ritmado e relaxante. O aroma dos cravos não me incomoda mais, assim como o feltro torna-se confortável como um bom cobertor.
        O interior de meu caixão vai ficando cada vez mais escuro... à medida em que a pá despeja a terra sobre ele. O entorpecimento é poderoso, logo sinto-me como se todo meu corpo estivesse deixando de existir, misturado à uma sensação de sono... muito sono. Talvez, seja a hora de eu dormir... para sempre!
 
 

      IV

Domingo
00:30 A.M
O retorno

        Oh Deus pai, todo poderoso! Ai meu Senhor Jesus, faça meu papai voltar para a casa! Faça meu papai voltar para a casa... faça meu papai voltar para  a casa, amém!!! Faça meu papai voltar para a casa, amém!!! Faça meu papai voltar para a casa, amém!!!
        Amém!!
        Amém!!
        Amém!!

        Tudo ocorre muito rápido, eu sinto-me entorpecer, sinto meu corpo prestes à flutuar e então tudo torna-se negro. Como se fosse envolvido por um sono profundo e eterno. Mas Quando me dou conta, estou mais uma vez, acordado, no interior de meu sepulcro. Coberto por sete palmos de terra, trancado numa claustrofóbica urna funerária. Quanto tempo já passei aqui? Alguns segundos, ou minutos? Horas, dias... ou anos?
        As palavras de minha filha ecoam em minha cabeça, misturado ao som dos trovões que explodem nos céus. Estou consciente novamente, de volta ao meu caixão forrado de feltro vermelho. A escuridão não permite-me enxergar um palmo além de meu nariz, ela torna-se mais sufocante do que nunca. Estou desperto... e extremamente  faminto!  A garganta extremamente árida, sedenta. Assim como minha boca, onde sinto como se houvessem implantado um molde desconfortável em minhas mandíbulas. As narinas são inebriadas pelo aroma da terra molhada, que cobre meu corpo e sufoca- me.
        Desespero, sede e fome. Tudo é intenso demais, é impossível resistir aos clamores de meus instintos. Algo que vem da alma, incendiado-me furiosamente. Uma sede que vem de algum lugar profundo, das profundezas de meu coração que já não bate mais. E, pela primeira vez eu posso sentir meu próprio corpo. Uma mão está pousada sobre a outra, ambas parecendo-se dois grandes cubos de gelo. Talvez, se eu consigo sentir minhas mãos eu também possa movê-las.
 Imediatamente, meu ser inunda-se de horrorizado delírio, ao sentir meus dedos mexendo-se em meio à escuridão. De alguma maneira, posso controlar meu corpo novamente... como se houvesse sido premiado com uma nova e bizarra condição de vida. Será minha sina, retornar ao seio de minha família na condição de "Morto-vivo"?
        Sinto-me extremamente forte e angustiado. Tento mover meus braços e estes respondem aos meus estímulos, de tal forma que eu os levo em direção à tampa do meu caixão. Sinto os nós dos dedos encostarem no feltro que cobre a madeira, afasto o punho alguns centímetros, para então dar um forte impulso. Um outro trovão rasga os céus e mistura-se ao seu estrondo, o ruído da parte superior da urna sendo arrebentada por minhas mãos. Eu posso sentir aquela força sobre-humana correndo feroz em minhas veias, enquanto cavo desenfreadamente à procura do frescor da noite. Lentamente, vão formando-se brechas entre a espessa massa de terra molhada, logo já posso espiar a noite chuvosa. Onde uma lua grande, branca e gorda espia-me das alturas. Logo estou livre, de volta ao mundo dos vivos.
        Giro o olhar ao redor e tudo o que eu vejo são dezenas de lápides, cercado por uma infinidade de túmulos e sepulturas, eu ajoelho-me e urro para os céus. O som que é emitido de minha garganta, assusta-me, ele é sujo e rasgante, como o uivo de um demônio. No entanto, eu permaneço ali, de joelhos com a chuva fina colando os cabelos ao crânio e escorrendo por minhas faces. Água e terra de cemitério escorrem-me pelo rosto... as lágrimas de um homem morto.
        Levanto-me e caminho entre as lápides, com passos automáticos, como se a mesma força superior que sinto correr em minhas veias, controlasse meu

        Cadáver

        corpo inteiro. Chego até o imponente portão metálico que guarda o velho cemitério, este encontra-se trancado por um grande cadeado. Quando vejo, minha mão já está fechada em volta do cadeado, faço um movimento giratório com o pulso e logo o cadeado vai ao chão. Jazendo, inutilizado.
        Em questão de minutos, estou caminhando pelas ruas vazias de minha cidade. A chuva continua caindo forte, com trovões e relâmpagos rasgando os céus de maneira feroz. Meu corpo caminha, ainda sem um destino certo, ainda faminto. Iluminado vez ou outra, pelos raios e relâmpagos. Logo, avisto uma placa, ela me diz para onde estou indo... e o que eu pretendo fazer.

        Rua General Epitácio

        General Epitácio, rua arborizada e bem conservada. Onde reside a nata da sociedade de Anuíbi, apenas os grandes figurões, madames e distintos cavalheiros, playboys e patricinhas. Nesta rua encontra-se localizada a firma de advocacia Fernandes Maia, onde eu costumava trabalhar quando vivo. Onde meu sócio realizava as mais diversas falcatruas. Uma espécie de ira, com a voracidade de um animal faz meu corpo estremecer de alto a baixo.  Agora, caminho de maneira mais apressada, vez ou outra enfiando o pé numa poça de água barrenta.
        Como eu esperava, o mondeo do Maia está estacionado na garagem da firma. Levanto os olhos e vejo que a luz de meu escritório encontra-se acesa, o desgraçado deve estar cuidando dos últimos detalhes antes de fugir do país. Uma pontada do mais genuíno ódio acende-se em meu peito, e minha fome parece ser leva à limites extremos. A sensação que tenho, é a de que passei os últimos dois meses sem ver água e comida, tamanha a voracidade de minha sede e apetite.
        Caminho em direção ao prédio, ouvindo meus passos ecoarem em minha mente, sentindo meu corpo ser guidado por aquela estranha força que vive em meu corpo. Uma espécie de vírus poderosíssimo, clamando por vingança.
        Eis que um raio despenca dos céus, acertando em cheio um poste de iluminação à poucos qarteirões dali. Logo, grande parte de Anuíbi encontra-se mergulhada na mais repleta escuridão. Principalmente a rua General Epitácio, onde situa-se a malfadada firma. Eu sorrio, ao pensar que numa hora dessas, o Maia encontra-se na mais profunda escuridão. Como a obscuridade de seu próprio sepulcro... para onde pretendo enviá-lo da forma mais breve e dolorosa  possível.
        Vá acostumando-se com o escuro...
        Giro a maçaneta, e descubro que a porta encontrava-se aberta durante todo este tempo. Oh, caro Maia, deveria ser mais cuidadoso. Mas agora já é tarde, adentro a firma trazendo comigo a escuridão de minha tumba e algo frio como a chuva correndo em minhas veias. Sinto minha mandíbula fazer movimentos de contração, parecendo-se deslocar-se e voltar ao devido lugar logo em seguida. Toco em meus gélidos lábios de cadáver, e sinto que minha boca está inchada. Sem qualquer motivo aparente, lembro-me de um artigo que li certa vez. Algo sobre os tubarões, onde dizia que estes animais, quando prontos para atacar tem a capacidade de deslocarem suas mandíbulas. Com o intuito de aumentar a extensão e profundidade de sua mordida.
        Eu continuo caminhando, oculto pela escuridão, com a cabeça ainda divagando sobre tubarões. O ruído de meus passos são absorvidos pelo carpete macio, abafando qualquer barulho que possa alertar minha presa. Meus olhos parecem acostumados com a escuridão... na verdade, parecem ter sido feitos especialmente para enxergarem no escuro. Subo as escadas que levam-me até o andar de cima, onde ficam os escritórios. Local onde, provavelmente, posso encontrar o Maia.
        Em vez de ir direto até a sala do meu sócio, decido investir naquela que me pertenceu um dia e faço a escolha certa. Mais um descuido do Maia, a porta, novamente encontra-se apenas encostada ao invés de estar trancada. Empurro-a com premeditada cautela, e as maçanetas macias não produzem ruído algum, por dentro eu sorrio satisfeito. Eis que então, avisto o Maia. Ele está de costas para mim, e isso é bom pois permite-me mover-me soturnamente para o interior daquela sala. Iluminada fracamente, apenas pelas lanternas de emergência presentes em todo o prédio.

        Aproveite, pois no interior de um caixão, não existe a luz. Somente a eterna escuridão.

        Oculto pelas sombras, posto-me em um canto afastado, passando a observar os atos de meu traidor. Sempre com a chama do ódio incendiando-me por dentro. Queimando como brasa, o meu coração cadavérico. Qual será sua reação quando ver que seu sócio, levantou-se da própria tumba, caminhou pela noite sombria e encontra-se perto, muito perto - esperando apenas a melhor hora para surgir em meio às sombras, e estripar-lhe com as próprias mãos ?
        O Maia parece sentir um aroma diferente no ar, ele funga e em seguida olha para a sola dos próprios sapatos. Não Maia, isso que você sente não é cheiro de merda... é o apenas o cheiro da morte. Da sua própria morte. Um aroma de terra molhada, cravos- de- defunto e carne fresca, apenas esperando pelos vermes decompositores.
Ele caminha até o canto da sala, dirige-se até a mesinha onde costumo guardar minhas bebidas e serve-se de uma dose de whisky. Está de perfil... distraído e vulnerável. Mais uma vez, minhas mandíbulas contraem-se e parecem deformarem-se em  minha boca.
        Eu sinto que a hora é agora, lentamente deixo as sombras que ocultaram-me e "materializo-me" diante de meu assassino.
        —  Você tem péssima pontaria...
        Eis que o Maia vira-se em minha direção. Incrédulo, com o copo de whisky esquecido em sua mão, à poucos centímetros de seus lábios. Até que ele o deixa cair no chão, onde o copo espatifa-se. Meu assassino continua a fitar meu corpo, ainda trajando o terno em que fui velado. Com o corpo repleto de terra molhada, negra, fétida. Terra de cemitério.
        — Não é possível! - Murmura ele, com os olhos sombrios e lábios trêmulos.—  Ninguém pode sobreviver à cinco tiros no peito... —  Completa o Maia, ainda incrédulo, enquanto meu corpo aproxima-se do dele.
        Com um violento tapa, atiro-o contra a mesa de bebidas e faço-o espatifar-se sobre todas as garrafas. O Maia cai, ferido pelos estilhaços das garrafas estendendo as mãos e pedindo clemência. A mesma piedade que ele não teve, quando atentou contra minha vida.
        Quando eu vejo o sangue que escorre de seu corpo, sinto aquela força misteriosa tomar conta de meu corpo por completo. Escancaro a boca, produzindo um ruído rasgante como o urro de um demônio e sentindo meus caninos alongarem-se. Em poucos segundo encontro-me debruçado sobre o corpo do meu assassino, com uma mão eu o levanto pelos seus cabelos negros e anelados. Com a outra, faço um movimento rápido em seu pescoço, utilizando-me de minha unha afiada e suja de terra. Logo o sangue brota, escuro e tentador, como um animal feroz eu abocanho sua jugular. Cravando meus dentes bem fundo e embebedando-me com o majestoso líquido que jorra de suas veias, olhando no fundo de seus olhos. E vendo-os tornarem-se opacos, observando com deleite a sua vida esvair-se lentamente. Eu sinto-o morrer enquanto continuo deliciando-me com o sangue que sai de suas veias e escorre-me pela boca. Saciando minha sede, atenuando minha fome e apagando a chama da vingança que queimava-me a alma.
        Com um movimento rápido, eu separo sua cabeça do corpo e atiro-a no canto da sala. Colocando-me novamente em caminhada, deixando o prédio da firma e ganhando as ruas novamente. Sentindo a chuva forte lavar-me o corpo saciado, em pleno êxtase. Caminho feliz, voltando para o seio de minha família. Saindo de minha sepultura para retornar aos meus entes queridos, com o pensamento em minha filha. Em como ela vai ficar contente, quando souber que papai está voltando para casa. Estou retornando ao meu lar, onde as coisas vão ficar como sempre foram... ou quase!

 *" ...E aquele que foi brutalizado, guardará dentro de si o  nefasto desejo de vingança. À sua alma será negado um funeral Cristão, relegando-a a vagar pelo mundo . Na  imunda e repugnante condição de um demônio sedendo de sangue, por toda a eternidade. " — Amadeus 14:05. Textos apócrifos.

Bruno Machado
02/11/2000
Dia de Finados.


 
 
 

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