Ecos do Passado

I
    O velho olhou pela janela de seu apartamento as ruínas do que outrora deveria ter sido uma bela e movimentada metrópole. Já estava acostumado com a paisagem desoladora. As ruas, cobertas de escombros, sempre ficavam vazias. Vez por outra surgia uma sombra entre os edifícios. Às vezes, podia observar no céu veículos voadores que pareciam pássaros planando. Passavam acima das nuvens.
    Sabia que lá embaixo, enfrente à porta do edifício, dois homens uniformizados, com rostos escamados e arredondados, mantinham-se em guarda. Não o permitiam que fosse a lugar algum. Somente alguns passeios autorizados uma vez por dia, durante três horas. Levavam-no sempre para um campo verde no meio das ruínas da cidade. O lugar deveria ter sido um parque belo, com um lago limpo e muitas flores. Hoje, estava tudo malcuidado. O mato tomava conta dos jardins e o lago verde estava com muito limo. Não se importava com a tristeza do local, bastava poder andar um pouco, sentir o sol e respirar o ar. Eram as horas que se sentia livre. Uma liberdade vigiada, mas podia ir para qualquer lugar no parque.
    Não ficou surpreso quando cinco homens uniformizados atravessaram a rua. Já estava bastante acostumado a eventos estranhos. Dois haviam entrado no edifício. Dois minutos depois, André bateu à porta e entrou.
    Nunca soube de onde André vinha. Ele sempre surgia, batia à porta, pedia licença e entrava. Era muito educado. Sempre o tratavam por vosselência. Levava as roupas sujas, trazia roupas novas e limpas, deixava sempre comida e água, e arrumava o pequeno apartamento. Nunca, porém, conversava. Algumas vezes, parecia que ia dirigir a palavra a ele, mas sempre interrompia com medo de alguma coisa. O velho sempre fazia perguntas simples, como: Como passou o dia hoje? Não respondia. Ignorava as perguntas. Seria bom se o rapaz falasse com ele, pois sentia-se extremamente só. Uma vida limitada e solitária, cheia de privações. Desejava o contato humano. Ao ver o André, ficava feliz.
    Houve uma vez que o camareiro dirigiu-lhe a palavra, logo após ter saído do congelamento, quando o trouxeram para o apartamento:
    — Meu nome é André e serei o seu camareiro.
    Foi a única coisa que falou durante cinco anos. Achava que depois disso haviam lhe tirado a língua. André era o único homem com um rosto apreciável, não tinha a forma escamosa e redonda dos outros que nesses anos teve contato. Seu rosto tinha a mesma forma de rosto que via no espelho. "Humano!" Somente ele e o André pareciam humanos.
    Enquanto André arrumava o pequeno apartamento de um único quarto, com uma pequena cozinha nunca usada e um banheiro, escutava do lado de fora da porta duas vozes que conversavam em línguas desconhecidas. Eram os dois estranhos que haviam entrado no prédio.
    Não conseguia lembrar de nada antes de ter sido descongelado. Estava desmemoriado. Lembrava-se de uma escuridão cheia de sonhos confusos, dos quais acordara numa sala bem iluminada e limpa.
    — O seu descongelamento foi bem-sucedido. Logo estará bem, não fique com medo.
    Ele não estava com medo. Na verdade, não sabia bem o que estava sentindo. Havia outras pessoas na sala, talvez mais duas, porém não conseguia entender o que falavam. Era uma língua nova, que desconhecia. Também não sabia se conhecia outras línguas. Tinha uma leve impressão de que já ouvira aquelas palavras uma vez na vida. Olhou ao seu redor e não conseguiu ver ninguém, somente uma forte luz projetada no seu rosto. Pouco depois voltou a ficar tudo escuro, quando acordou estava no pequeno quarto do apartamento onde morava hoje.
    André colocou umas roupas novas sobre a cama e saiu. O velho olhou para a roupa e percebeu que era uma roupa de gala, num estilo desconhecido. Verde e com muito dourado.
    — Gostou? — perguntou o estranho depois de entrar silenciosamente.
    Era um homem uniformizado, como os que guardavam o edifício, só que vestia azulão invés do preto dos outros.
    O velho olhou o rosto do homem. Era escamoso, olhos estufados e uma cabeça redonda. Não possuía cabelos, como os outros uniformizados. Era muito alto, talvez tivesse uns dois metros.
    — Essa é uma roupa de festa! — falou o velho com prazer. Finalmente alguém falava com ele em cinco anos.
    — Irá fazer uma viagem comigo... Iremos para bem longe desse lugar.
    — Um lugar bonito? — perguntou só para manter a conversa, não estava interessado em ir a lugar algum.
    — Um lugar que nunca viu antes. Uma das mais belas cidades desse planeta, construída logo após a vitória.
    — Que vitória?
    — A vitória dos Anuakin... — calou-se. Não imaginava o quanto o velho à sua frente não lembrava de nada. Eram fatos que haviam acontecido há mais de cem anos. Cento e trinta anos? Não sabia precisar ao certo, era péssimo em história, apesar de ser bom em línguas. Ficou pensativo.
    — Há! Bom! — disse o velho.
    — Você ficou noventa anos congelado. A vitória foi concluída após trinta e cinco anos de sua prisão. A capital do planeta foi iniciada dez anos depois da vitória e cinco anos mais tarde... — o homem uniformizado estava longe tentando repassar em sua mente os fatos dos últimos cem anos. Havia se esquecido do velho por algum tempo.
    Um segundo homem uniformizado, também de azul, entrou no quarto e falou algumas palavras desconhecidas. Eram dois oficiais. Podia ver em seus uniformes uma insígnia não existente nos outros de preto. O segundo havia tirado o primeiro do transe de lembranças.
    — Desculpe, acho que não me apresentei. Sou Draken e aquele é Drone. Querem comemorar o dia da Vitória com você, na capital. — riu com escárnio. — Veste a roupa que está na cama — falou em tom de ordens. Seu semblante ficou perverso.
O segundo homem começou a vasculhar o quarto, parecia que procurava algo.
    — Ele não fala a sua língua — disse o oficial. — Não se preocupe, está fazendo o trabalho dele.
O velho pegou a roupa colocada na cama e um pequeno cordão prateado com um crucifixo que caiu no chão.
Draken abaixou e o pegou. Drone viu e ficou furioso, disparou centenas de palavras desconhecidas. Draken gritou:
    — André!!!
    O camareiro entrou assustado. Drone acertou o rapaz com um estúpido tapa no rosto que o fez cair no chão. Era tão franzino o coitado que não tinha força para levantar depois da agressão. Ficou agachado, de joelhos. Mantinha a cabeça baixa esperando outra violência qualquer. Foi Drake que intercedeu a favor do rapaz. Falou diversas palavras e se pôs entre Drone e André.
    Drone deu uma ordem a André que deixou o apartamento imediatamente.
    — Desculpe essa selvageria — Drake sabia que o outro não podia entendê-lo. — André, em respeito ao que o senhor acreditava (à sua crença), colocou esse símbolo entre suas roupas. Foi uma atitude irresponsável, mas achei que não haveria risco algum. Esse símbolo já foi esquecido e são poucos os que sabem o que significava. Por isso pedi a Drone que o deixasse usar.
    Fosse o que fosse aquele símbolo, ficou contente em poder ostentá-lo. Sentiu uma força estranha tomar conta de seu corpo quando o pendurou no pescoço. A memória queria revelar alguma coisa, mas voltou a ficar cega.
    — Como é meu nome? — perguntou o velho a Drake.
    — João qualquer coisa — disse instantaneamente.
    Não tinha qualquer bagagem para levar. Por isso, só saiu com as roupas do corpo. Três homens de uniforme preto os esperavam do lado de fora do edifício. Eram subalternos. O velho podia compreender.
    O dia estava agradável e o sol fresco batia em seu semblante. Atravessaram a rua. O velho parou diante das ruínas de uma construção e ficou admirando o formato abobado do que teria sido um telhado e as duas torres que resistiam em apontar para o céu. Havia uma imagem de madeira, gigantesca, maior que ele, pendurada em cima do que restou de um portal. A imagem era igual a do cordão que usava. Seu corpo estremeceu com a visão. Sentiu medo e continuou acompanhando os estranhos uniformizados.
    Duas quadras depois havia uma área limpa, sem escombros. Algumas marcas no chão denunciavam algum tipo de sinalização para quem vinha do céu. O velho lembrou-se de um helicóptero. Sorriu quando essa imagem surgiu em sua cabeça.
    Não foi um helicóptero que posou num dos quadrados riscados no chão. Era uma aeronave, de forma circular com  uma parte cortada em "v". A parte cortada parecia a frente.
    Caminharam em direção ao estranho veículo, tão pouco maior do que um helicóptero. Outra aeronave surgiu em sua mente: avião. Voltou a sorrir. Entraram no veículo e se amarraram ao cinto. Ninguém falava nada. O velho não tinha vontade alguma de conversar. Lembrou-se de André, do quanto o tapa deveria ter doído. Sentiu a dor como se houvesse ele mesmo apanhado. Foi dominado por uma compaixão estranha.
    A aeronave se elevou ao céu na vertical. Sentiu a velocidade quando foi jogado para traz.
    — Como se chama esse veículo? — perguntou o velho a Drake, que havia sentado ao seu lado.
    — Na sua língua se chamaria biscoito. Na nossa, "radon".
    — Parece uma pizza! — respondeu o velho, fazendo graça.
    Foram duas horas de viagem. O velho aproveitou e dormiu. Acordou com um sacolejar. A aeronave parecia estar descendo, mas na horizontal. Podia ver o belo dia ensolarado do lado de fora. Lá embaixo, observou uma bela e extensa praia. Depois, pode ver campos sendo cultivados. Uma cadeia de colinas, algumas casas isoladas e, finalmente, um gigante...
Foi assim que percebeu aquele estranho mundo. Um gigante deitado se espalhando por todos os lados. Muito concreto e metal reluzente. À medida que a aeronave descia, podia ver os gigantescos edifícios. Alguns em forma de pirâmides, outros de arcos, caixas, ferraduras e irregulares. Havia uma movimentação intensa lá em baixo: pareciam formigas apressadas, entrando e saindo dos prédios. Muitas aeronaves engarrafavam o céu. Subiam e desciam dos edifícios, num vertiginoso vaivém. Não compreendia como não se chocavam no ar. As avenidas tinham uma movimentação frenética de veículos parecidos com vermes e, de dentro deles, saíam formigas. Não eram formigas, mas indivíduos, ou seja lá o que fossem esses estranhos seres.
    — Há muitas cidades como está? — perguntou o velho.
    — No planeta? Não. Essa é suficiente — riu com a pergunta. — Temos uma com o mesmo modelo em Marte. Também temos uma base de reparos de cruzadores na Lua. As espaçonaves que chegam e saem do planeta são obrigadas a pousarem lá. Fazem um vistoria e partem para Marte. Depois viajam até Saturno e esperam abrir um portal e logo após, partem para casa.
    — Ah! — respondeu o velho fingindo que entendia. Não lembrava de muitas coisas sobre o espaço.
    A aeronave baixou até ficar abaixo do nível do telhado dos prédios. Havia muitas cores reluzindo. Alguns pequenos jardins se sobressaindo no concreto. Terraços vistosos e movimentados. Milhares de janelas nos prédios.
    A aeronave ia abaixando na horizontal. Havia uma movimentada avenida embaixo. Era reta e parecia infinita. Outras aeronaves parecidas formavam na frente uma fila quádrupla. Seguiam todas na mesma direção, acompanhando a avenida. A velocidade era reduzida.
    O velho ficou horrorizado quando uma gigantesca sombra foi projetada sobre a cidade. O sol havia desaparecido por completo. Olhou para o céu e viu em estado de choque uma gigantesca espaçonave cruzando a cidade. Tinha dezenas de janelas, luzes, mecanismos... Calculou dez quilômetros de extensão. Ela estava muito alta, mas foi capaz de apagar a luz do sol por três minutos. Não fazia qualquer ruído. Estava subindo numa velocidade fantástica.
    — É um dos cruzadores imperiais indo para casa — disse Drake, meio saudoso. — Não leva muita coisa, o objetivo dele é trazer...
    — Trazer o quê? — perguntou o velho.
    — Civilização!
    A avenida se abriu no final para um campo de pouso. Era um quadrado com mais de quarenta quilômetros quadrados de extensão. Duas espaçonaves praticamente ocupavam todo o campo. O velho percebeu o motivo do engarrafamento ao longo da avenida. Quando uma daquelas gigantescas espaçonaves subiam, ou desciam, tudo parava em volta. Evitava-se o risco de colisão.
    A velocidade da aeronave aumentou tão repentinamente que o velho foi empurrado para trás. Sobrevoavam as espaçonaves, que pareciam verdadeiras cidades. Podia perceber a movimentação lá embaixo. As espaçonaves possuíam prédios, avenidas e veículos circulando, em sua superfícies.
    — Novos colonos. — disse Drake apontando para baixo.
    — De onde vêem?
    — De Anuak. Muito longe!
    Eram duas espaçonaves, dispostas uma do lado da outra. Uma estava em processo de desembarque e a outra, de embarque. Estavam voando próximo ao teto de uma delas. Só assim o velho pôde perceber o quanto eram gigantescas. Duvidou por hora que fossem capazes de levantar do solo, mas havia visto uma sobrevoar a cidade.
    No final do campo de pouso a avenida retornava, com o corredor de prédios de ambos os lados. Apesar do fluxo contínuo de aeronaves, não havia filas lentas. Percebeu que iam mais rápido.
    Sentiu muita sede. Não desejou pedir água. Deveria agüentar um pouco.
    Logo a avenida terminou. Havia à sua frente um prédio em forma de arco. Uma plataforma se sobressaía de uma das paredes. Algumas aeronaves pousavam e outras saíam. Todas eram pequenas e de diferentes formas. Apinhavam alguns indivíduos na plataforma. A aeronave foi descendo lentamente na vertical até tocar a plataforma e ser puxada para dentro do prédio.

II
    Um oficial, também de uniforme azul, cumprimentou o velho com tanta cortesia que ele pensou ter voltado há algum passado estranho. Outro uniformizado, agora de laranja, saudou-o erguendo o braço para o alto. Drake e Drone também ergueram o braço para o alto em respeito ao de laranja.
    O velho percebeu que o oficial de laranja tinha o rosto humano como o dele, sem escamas e sem cabeça redonda, apesar de rapada. Talvez fosse a moda local, fez uma piada em sua mente.
    — Vossa...
    — Santíssima — respondeu o outro oficial de azul.
    — Santíssimo, eu estou aqui para conduzi-lo aos seus aposentos. Sou o gerônio do castelo... — como o velho exibiu um semblante como se não entendesse, o homem completou: — Uma espécie de general. Sou o comandante da guarda palaciana.  Queira nos acompanhar?
Não havia escolha. O velho acompanhou o gêronio. Drake e Drone ficaram na pequena aeronave. Entraram num corredor.
    — Sou Amilton.  Esse é o meu ajudante de ordens, Fliton.
    O velho olhou para as mãos de Fliton e percebeu que estava sem luvas. Percebeu as mãos e os quatros dedos escamosos, todos sem unhas. Não tinha o dedo indicador.
    — Há outros... Como você?... Quero dizer...
    — Humanos? — sorriu.
    — Há sim, muitos ocupam cargos importantes como o meu. Existem até mestiços como Fliton...
    O velho tinha percebido que a cabeça do outro não era redonda, mas humana, apesar da escama.
    — Nós incorporamos bem a cultura superior dos anuakin. Na verdade, eu já nasci nela. Muito depois da vitória que tirou os humanos das trevas, do inferno e da vida ruim que levavam. Temos riquezas para todos, ninguém passa fome. O solo e os recursos do planeta são bem aproveitados. Não há poluição e outras coisas que li nos livros sobre os humanos antigos.     Religiões que matavam e acentuavam as desigualdades foram abolidas, assim como as fronteiras. Hoje podemos até ir ao espaço. Visitarmos mundo até então nunca vistos.  Tudo maravilhoso!
    Uma velha que passava pelo corredor se curvou. O velho estendeu a mão num ato reflexo e deu para ela beijar um anel que nem se lembrava mais que trazia no dedo. Parecia ter feito isso muitas vezes e sua memória teimava em não esquecer.
    — Para os mais velhos vossa santificada ainda significa alguma coisa!
    — O quê? — perguntou o velho, astuciosamente.
    Continuaram a caminhar pelo corredor. Foi o mestiço que falou:
    — Uma ordem já abolida.
    Chegaram a uma porta que se abriu com o toque da palma de Amilton. Esse é o seu quarto. O príncipe deseja que descanse bastante para logo mais à noite, quando o receberá para as comemorações.
    — Que príncipe?
    — O Regente desse planeta, o herdeiro de Balsan, Imperador de Anuak e colônias...
    — Colônias?
    — Vinte planetas colonizados. Sendo a Terra o décimo nono! — falou orgulhoso. — Salve o Príncipe!

III
    O príncipe queria vê-lo. Isso significava que era uma pessoa importante, ou teria sido. Fez um esforço para se lembrar. Parecia que tinham apagado sua memória. "Aquela mulher se ajoelhando e o saudando". "Teria sido um Imperador?" "Claro, o Imperador da Terra! Destituído pelas forças alienígenas depois de uma sangrenta guerra". "Esse símbolo pendurado no pescoço deveria ter sido o brasão do seu Império". Gargalhou com tais pensamentos. "Por que estava achando graça?"
Caminhou pelo apartamento. Era muito luxuoso!. Cortinas amarelas e brancas, almofadas, cadeiras e um sofá macio. Passou a mão pelo pano do sofá. Entrou no quarto e contou dez portas de armários. Uma cama gigantesca tomava quase todo o quarto. Os painéis espalhados por todas as paredes eram interessantes. Um espalhava perfume ambiente, outro soltava comida, acendiam as luzes... Era um mundo estranho.
    Sentiu-se novamente solitário. Isso era bom. Preferia ficar só. Estava acostumado, depois de tantos anos. Abriu uma porta e entrou no banheiro. "Os painéis!" — pensou, um tanto confuso no uso deles.  Havia uma coleção de frascos perto da banheira.     Abriu a água quente da banheira, jogou a roupa numa prateleira e se deitou. A água estava gostosa, talvez nunca houvesse sentindo algo tão gostoso. Experimentou jogar o conteúdo de um dos frascos na água, escolheu o mais cheiroso. A espuma que se formou o fez relaxar. Não era a espuma, sim o perfume tinha efeitos de relaxamento.
    Se tivesse entendido alguma coisa do que estava acontecendo, talvez não conseguisse dormir. Mas como não estava compreendendo nada, afundou na banheira e adormeceu. Teve um sonho, que só lembrou em parte depois de acordar:
Estavam num edifício enorme e falava a uma platéia. No interior, havia centenas de pessoas. Na parede um gigantesco crucifixo e um homem jazia pregado nele.  Era o mesmo crucifixo que trazia no peito, o mesmo visto na cidade em ruínas. Não lembrava o significado das palavras que proferia. Saíam em diversas línguas.
    Uma senhora aproximou e disse a palavra "paz". Outra, vestida de branco, desceu uma escadaria e gritou loucamente "amor". Essas duas palavras estavam vazias de significado.
    O edifício foi diminuindo até se tornar luxuoso. Ouvia uma multidão gritar. Não compreendia a língua que falavam.

    Acordou com uma terrível sensação de angústia e ficou tentando compreender onde estava. Pronunciou uma palavra que ficou em sua memória: Amor! Não sabia ao certo o que significava, mas parecia algo importante. Apertou o crucifixo no peito. Estava com os pensamentos agitados quando foi interrompido por um garçom que entrou no banheiro, sem cerimônias. Trazia uma bandeja com café e vários pães e croissants diferentes.
    — O gerônio me pediu para lembrar-lhe que estará aqui às 21 horas para levá-lo ao príncipe. Suas roupas para os festejos estão no armário do quarto, primeira porta à esquerda. Há um barbeador, escova de dentes, etc. no painel à esquerda do espelho.
    O rapaz era negro e não possuía escamas como os outros nem vestia uniforme militar, mas um outro uniforme verde não visto ainda. Parecia muito submisso.
    — Minhas roupas estão na prateleira — disse apontando.
    — Não! Aquelas roupas não são apropriadas. Tenho ordens para levá-las. Tudo o que senhor precisa está no armário do quarto — disse com um tom petulante.
    O garçom saiu e ele ficou meditando sobre tudo que estava acontecendo. Percebeu uma profusão de vozes que vinham do lado de fora do prédio. Eram tantas as vozes que chegavam a ele como um som único.
Vestiu a roupa encontrada no armário, um manto branco. Olhou no espelho e ficou horrorizado:
    — Pareço um sacerdote! — disse ao espelho. — Colocou o cordão no pescoço e completou: — Agora está completo!
— Não sabia o motivo de tais pensamentos.
    Voltou ao banheiro e fez a barba. Cortou-se em vários lugares.
    Aproximou-se de uma janela panorâmica, estava fechada. Apertou todos os botões próximos na esperança de abri-la.     Quando conseguiu, maravilhou-se com a imagem de uma cidade acesa. Milhares de luzes brilhando, como estrelas no céu.       Uma lua cheia brilhava atrás dos altos prédios. Pequenas aeronaves, mas em milhares, passavam em alta velocidade.

    Olhou para baixo e percebeu uma multidão numa grande praça gritando ordens. Não conseguia entender o que pronunciavam. "Meu Deus! Como havia gente se avolumando lá embaixo". A palavra Deus surgiu como espontânea na sua boca. Não sabia de onde havia surgido. Era tão estranha quanto amor e paz.Apertou um botão com a ponta dos dedos e viu a janela de vidro se abrir para a brisa de uma varanda. Caminhou até o peitoril. Deveria ter uns dez andares de altura. Eram uns dez andares. Houve um silêncio repentino. De repente, rompeu-se um grito uníssono.
    — Papa! Papa! Papa!
    Depois uma cantoria que tinha na letra as palavras Deus, João, Amor e Paz.
    Não conseguia entender bem. De repente, começaram a correr num grande tumulto. Raios coloridos rasgavam o céu. Vermelhos, azuis, amarelos... Quando terminou o espetáculo, havia centenas de corpos espalhados em baixo de sua janela. Percebeu que a manifestação era por sua causa. Contra ou favor. Sentiu-se mal em saber que deveria ser responsável pelas mortes.
    Uma explosão se fez ouvir ao lado. Havia sido um estrondo ensurdecedor, depois diversas explosões menores. Era dentro do prédio. Percebeu uma bem forte. Tentou sair, mas não conseguia acionar o mecanismo que abria a porta. Estava trancada.
A porta abriu e Amilton entrou. O velho sorriu preocupado. Tinha uma cara de pânico depois de ter presenciado o massacre lá embaixo. Fliton estava com ele. Bloqueou a passagem pela porta. Devia ter mais cinco guardas no corredor.
    Amilton vasculhou todo o apartamento, olhou entre as almofadas, arrastou os móveis. Trazia consigo um aparelho que ficava piscando em sua mão. Foi a primeira vez que o velho viu uma arma. Deveriam ter muitas. Estremeceu com essa idéia. Armas eram perigosas.
    Logo Amilton ficou calmo e pediu que o velho sentasse. Os guardas permaneceram junto com Fliton do lado de fora. O jovem sentou.
    — Eu gostaria de saber o que está acontecendo? — apontou para a janela.
    — Lá fora? Foram rebeldes que não sabem o que é bom, lutam contra o progresso e o retorno a barbárie. Sabem que está aqui. Esperam libertá-lo para uma cruzada contra nós.
    — As explosões?
    — Um maldito traidor colocou rebeldes dentro dessa ala do palácio para matá-lo.  Drake era o único que tinha acesso ao setor de convidados. Com a ajuda de Drone, descobrimos tudo a tempo. O senhor está bem?
    — Sim estou!... Quem sou eu? — aproveitou para perguntar. Estava intrigado com toda aquela confusão.
    — Uma espécie de santidade, adorada pelos antigos humanos. Uma espécie de deus bárbaro. Parece que acreditam que seja um deus! Sei lá! Chamam-no de Papa.

IV
    O velho deixou-se cair na confortável poltrona. Estava esgotado! A noite tinha sido demais para ele. Além disso, havia todos os acontecidos durante o dia. Olhou para as mãos trêmulas. O anel brilhava com o reflexo da luz, parecia significar algo muito importante.  Esforçou-se para lembrar de alguma coisa em seu passado, mas era tudo escuridão. Vasculhou curiosamente a pequena sala. Não sabia onde estava. Amilton o deixou ali depois da festa. Não havia compreendido nada daquelas comemorações pomposas. Amilton não se dava ao trabalho de traduzir tudo. Uma sucessão de discursos e muita ovação. Muita comida era servida. Todos os pratos eram à base de algas e frutos do mar.
Estava reunida na festa a nata da sociedade. As mulheres surgiam vestindo roupas pomposas, e os homens pareciam competir com elas em brilho.
    — O que comemoram? — havia perguntado o velho a Amilton.
    — O Dia da Conquista! O Dia da Vitória! — respondeu com fervor.
    O velho não sabia explicar, mas havia ficado muito triste. Continuou cabisbaixo até que alguém o apontou. Ouviu-se uma gritaria em júbilo. Não era na verdade uma gritaria, mas uma sucessão de uivos horripilantes.  Sentiu-se pequeno quando todos colocaram os olhos esbugalhados em cima dele. Um silêncio medonho correu a sala. O velho sentiu um vento frio percorrer a espinha. Não sabia se devia dizer alguma coisa ou ficar calado. Preferiu a última opção.
Uma figura altiva com roupa brilhante chamou atenção de todos para si. Amilton explicou que era o Príncipe Regente da Terra. Não havia, porém, explicado porque todos haviam olhado para ele. Na verdade, Amilton fingiu não entender quando o velho fez a pergunta.
    "Talvez tivesse sido um traidor do seu povo". "Quem sabe um dos responsáveis pela queda de seu povo"? "Um traidor da humanidade"? Os pensamentos do velho divagavam. Não suportaria se as memórias voltassem e descobrisse que colaborou com o fim do domínio da humanidade na Terra.
    Um grande quadro se sobressaia na parede oposta. Era o desenho do mar. No horizonte, um sol gêmeo brilhava. O velho levantou e caminhou até o quadro. Duas figuras escamadas pareciam sair das águas. Pareciam ser seres mitológicos.     Aproximou-se mais do quadro, não enxergava bem. Eram dois homens-peixes. Figuras horríveis, mas surpreendentes!
    — Esse quadro mostra o momento em que Gera e Hermo saíram das águas, no meu planeta. Gero e Hermo foram expulsos do paraíso e condenados a viver na superfície. Haviam desafiado os deuses quando comeram da alga da ciência e tecnologia. Queriam ser como os deuses, dotados do conhecimento. Conseguiram o que desejavam, mas tinham que viver fora do paraíso. Todos seus descendentes foram obrigados a depender da ciência e da tecnologia — explicou uma voz nas costas do velho.
    O velho virou-se para um homem opulento que havia entrado na sala. Era o príncipe, reconheceu.
— Esse quadro faz parte das nossas crenças, um tanto parecidas com as crenças em que acreditava, sua Santidade! — curvou-se, fazendo uma reverência.
    O velho perscrutou o homem de cima a baixo. O príncipe não tinha a pele escamada nem os olhos esbugalhados. Era humano como ele e Amilton. Uma longa cabeleira ruiva descia pelas costas até o glúteo. O velho estava surpreso, os humanos vistos até agora não possuíam cabelos. Não havia reparado nada naquele homem durante a festa. Eram tantas as figuras que circulavam pelo salão...
    — Vejo pelos seus olhos que tem muitas perguntas! — sorriu, apontando a poltrona para o velho. — Esse quadro foi pintado por mim!
    — Belo quadro! — respondeu o velho tentando ser amável.
    — Gosto das artes. É uma pena que, durante a invasão da Terra, a arte produzida na Terra tenha sido destruída. Poucas coisas sobraram. Havia há bem pouco tempo uma política de destruir qualquer traço cultural do seu povo. Foi um erro! Eu devia ter guardado tudo... Meus comandos eram um tanto animalescos em relação às artes nativas. Hoje os nossos laboratórios antropológicos tentam recriar tudo que era produzido aqui pelos nativos... Tenho um grande acervo em cristais que falam sobre a sua religião...
    O velho não entendia coisa alguma. O príncipe falava e falava sobre arte, religião e sociedade nativa. Desejou dormir, estava    cansado. Nada o interessava.
    O príncipe ficou em silêncio quando percebeu que o velho estava sonolento.
    — Nada disso o interessa! Esqueci que ainda não colocaram a sua memória. Nada tem sentido! — havia um tom de sarcasmo na voz.
    — Por que é diferente dos outros? É humano igual a mim? — estava curioso.
    O príncipe sorriu. Tirou as luvas e mostrou as mãos. Não era tão humano assim.
    — São cobertas de escamas e parecem nadadeiras! — espantou-se o velho.
    — Somos uma raça em mutação — caminhou até o quadro. — Essa mutação está sendo muito rápida. Estamos pagando os nossos pecados — ficou olhando para o quadro. — Dizem que começou logo após sairmos dos mares.
    — Vão se transformar em humanos?
    — Não sabemos. Há milhares de anos convivemos com essa dupla aparência. Todos os meus antepassados tinham cabelos ruivos. A nossa aparência depende muito dos genótipos dos antepassados.
— Muitos de vocês são feios! — disse o velho com sinceridade.
    O príncipe voltou-se para o velho:
    — Houve um tempo em que tomaria cuidado com as palavras — sorriu. — Depende do que vossa santidade considere ser feio ou bonito! Isso é muito relativo.
    O velho ficou em silêncio — Sua alteza disse que tiraram a minha memória? — perguntou o velho, bocejando.
    — Tiramos a memória antes de ser posto em congelamento. Nossos técnicos estudam a sua memória e aprendem muito sobre você. Tenho tudo gravado em nossos cristais.
    — Por que não a coloca de volta?  Preciso muito dela! — sorriu.
    — Nossas experiências com outras personalidades demonstraram haver muito sofrimento quando são acordadas com as memórias. O choque é menos forte quando a colocamos depois.
    — O que farão comigo? Não sei se fui traidor, ou coisa tal?
    — Vejo confusão em sua mente, muita confusão, mas logo tudo será claro!
    — O que será claro?
    — Vou direto ao assunto — o príncipe puxou uma pequena cadeira abandonada ao lado da poltrona e se sentou. — Sua Santidade é a última personalidade do século passado a ser acordada. Você representa uma Terra antiga: de fome, mortes, fragmentação dos povos, ideologias conflitantes, crenças e valores ultrapassados. Hoje somos apenas um povo de prosperidade. Há algumas divergências locais, como as vistas na praça. Uma raridade despertada pelos seus seguidores.
    — Quem sou eu?
    — Era um líder religioso e Chefe de Estado na fragmentada Terra. A sua Igreja foi responsável por várias guerras. Nós, finalmente, conseguimos abolir a guerra, pelo menos entre nós. Irmão não luta mais contra irmão.
    — As mortes de hoje de manhã?
    — Eram os últimos cristãos — disse o príncipe. — Depois que morrer, deixarão de existir. Possuem esperanças de voltar ao mundo de valores antigos. Idiotice!
    — O que querem de mim? — perguntou sem hesitar.
    — Há cem anos acordamos, anualmente, uma personalidade importante do seu século. Sempre no dia em que comemoramos a conquista da Terra. Você é o último!
    — E o que fazem com essas personalidades? — temeu perguntar.
    — Homenageamos! O povo adora!  As comemorações desse ano são as maiores.  O seu carisma é tão grande que desperta ansiedade em todos os lugares... Temos algumas dose de violência, provocadas pelos seus seguidores fanáticos.
    — Como será essa homenagem?
    — Será de uma forma muito especial...

    A praça estava apinhada de indivíduos. Eram todos anônimos que vinham de todas as partes da cidade para ver a grande festa. Uma multidão se aglomerava. Câmeras mostravam a praça em telões espalhados por toda a cidade. O sol estava nascendo por entre os edifícios.
    O velho caminhou por uma plataforma. Estava livre, nada de amarras e algemas. Andava para frente numa espécie de ponte. O silêncio só era quebrado por alguns murmúrios. Do alto de uma sacada o príncipe observava tudo. Amilton também deveria estar observando de algum ponto, compartilhando o júbilo de todos.
    Num rompente, a multidão levantou a voz e pediu a libertação da sua santidade. Gritavam em voz uníssonas, incompreensível para o velho. Um raio de luz atingiu a mente do velho e fez a vontade popular, devolvendo a memória roubada. Todos gritaram em júbilo.
    Sentiu prazer nas lembranças, nunca havia se sentido tão contente por tê-las. Lá estava o seu mundo, com as suas idéias de paz e com a esperança de seu Deus. Lembrou-se do romper da guerra, da união dos povos e da resistência. Judeus, muçulmanos, católicos e protestantes unidos num só objetivo, contra um inimigo comum e poderoso. Ele aclamado como líder da Grande Resistência Religiosa.
    Lembrou-se dos terrores, da destruição das cidades, das bombas atômicas e da grande fogueira que o mundo se tornou...     A resistência, a queda de sua basílica e prisão...
Andava para frente numa espécie de ponte. A multidão fez um grande silêncio, só quebrado por alguns murmúrios.
    A multidão novamente levantou a voz, mas para comemorar o fim da caminhada do velho pela plataforma. O velho ficou no centro do círculo. Tinha as suas lembranças. Compreendia tudo. Não sentia medo ou raiva. Não havia mais lugar para ele naquele mundo. Ajoelhou com dificuldade. Tirou o terço que guardava no bolso e o colocou entre as mãos. Estava rezando para o seu Deus, para o Deus de toda a humanidade.
    Uma pira em chamas se elevou para o céu transformando em cinzas o símbolo de uma Terra antiga.

Marco A. M. Bourguignon


 
 
 

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