Mané terminou de pintar o muro da casa. Doze metros de comprimento, dois e dez de altura, uma fortaleza. Em cima, ofendículas: cacos de vidro pontiagudos, impedindo o atrevimento de aventureiros. No outro dia, cedinho, saindo para comprar pão, oh! desgraça das desgraças, horror dos horrores: o muro branquinho estava completamente pichado de letras e sinais ininteligíveis. Não deixaram um metro livre. Uma porcaria só. Mas a surpresa maior Mané teve ao afastar-se com a mão na testa, em expressão de incredulidade, andando de costas para o meio da rua: o segundo andar da casa, superprotegida, estava todo emporcalhado por aqueles malditos borrões de spray de tinta preta! Impossível, nem os cachorros acordaram! Cambada de filhos-das-putas, os cachorros e os pichadores!
Mané chamou de volta os pintores, gastou uma dinheirama, pintou tudo de novo, três demãos para cobrir o pretume, que teimava em aparecer por debaixo da tinta branca.
Não demorou nada, tudo pichado de novo.
Mané teve ataques de ira, de ódio. O sangue subiu-lhe à cabeça, os pensamentos de morte, de vingança, tomavam conta de suas idéias. Resolveu tocaiar os pichadores. Mandou pintar mais uma vez, armou-se de dois revólveres e passou a noite à espreita. Nada! Os safados parece que adivinham! Uma semana sem dormir para nenhum resultado, Mané resolveu sair à caça. Sorrateiro, andou pelas sombras, procurando, procurando. Lembrou-se de ter visto o Palácio das Artes, prédio tombado pelo patrimônio histórico, acabar de ser restaurado por fora naquele dia. Um pressentimento. Seguiu para lá, escondeu-se, já quase adormecia quando eles apareceram como fantasmas na noite, silenciosos. Furtivos como gatos, escalaram as paredes, subiram às janelas, treparam pelas colunas, espirraram suas tintas horrendas pelas superfícies de contornos maravilhosos, pelo mármore de Carrara, pelas grandiosas luminárias de ferro fundido, mas só até quando Mané começou a disparar. Um rolou sem um grito, o outro berrou ensangüentado, enquanto os outros, por entre os barulhos dos estampidos, fugiam apavorados em desabalada carreira.
Antes que alguém pudesse vê-lo, Mané esgueirou-se para casa como aparecera na cena do crime, pelas sombras.
Durante alguns dias, os pichamentos cessaram. Quando recomeçaram, continuaram os crimes. Mané especializava-se, pegava as manhas dos pichadores, adivinhava onde eles iam atacar e atacava junto. Nunca sacava primeiro. Só depois que os pichadores começavam a lanças os jatos de nas paredes é que ele começava a atirar. Ninguém ainda vira o seu rosto. Como um ninja, ele se mantinha tanto quanto possível no escuro, todo vestido de negro, disparava suas balas mortíferas, certeiras, matava alguns, feria outros, alguns fugiam ilesos fisicamente, mas jamais seriam emocionalmente os mesmos. E voltava para casa, vingado e revingado, para dormir — poder-se-ia classificá-lo assim? — o sono dos justos. Se não era, parecia, pois só acordava lá pelas tantas para apreciar doentiamente as manchetes dos jornais: "EXTERMINADOR DE PICHADORES ATACA DE NOVO", "MAIS UM BANDO DIZIMADO PELO ASSASSINO DE PICHADORES".
As matérias jornalísticas traziam entrevistas e apreciações de juristas, sociólogos, psicólogos, psiquiatras, cada um dando suas opiniões técnicas sobre o criminoso, enquanto a opinião da população se dividia, uns contra, outros a favor dos nefandos atos de Mané, que se sentia encorajado pelos que afirmavam que um justiceiro assim devia ter surgido antes.
Mas a polícia, a despeito do que dela se dizia, não era ineficiente. Um dia, sob o comando de um delegado cabeçudo, uma patrulha que vinha passando, também, as noites sem dormir chegou ao local da chacina na hora em que ela ocorria, quando Mané acabava de dar cabo de mais uma turma em pleno ato de vandalismo. Mané não encontrou saída. Todas as ruas foram estrategicamente bloqueadas, numa ação bem coordenada, e ele foi, mais facilmente do que se imaginara, algemado, recebendo voz de prisão em flagrante. Ainda pôde ouvir o delegado determinar, em tom de voz triunfante: - Recolhe o elemento!
De nada adiantou a simpatia do povo. Mané foi julgado e condenado por seus crimes escabrosos a muitíssimos anos de prisão.
Podia ter terminado o assunto por aí. Mas, que nada!
Os grupos locais de pichadores resolveram que não iam deixar aquilo tão barato. Eles eram antes adversários, mas agora juntavam-se todos; reuniram-se secretamente e resolveram, por unanimidade, ligados pelo sentimento revanchista comum à classe naquelas circunstâncias, adotar uma ação conjunta radical, uma vingança terrível, diretamente proporcional aos crimes contra a classe cometidos. Nesses planos, incluía-se entrar na penitenciária, penetrar dentro da cela do assassino, para a desforra!
Incrível, mas se alguém podia fazer aquilo, esse alguém eram os pichadores, habituados a atingir os locais mais inacessíveis para colocarem as suas marcas. Pois eles invadiram furtivamente a prisão de segurança máxima onde se encontrava trancafiado Mané, escalaram muros, evitaram as torres, escaparam, aos holofotes, ultrapassaram os rolos de arame farpado, tornaram-se invisíveis às câmaras, abriram os portões dos corredores e, sem serem vistos, tanto na entrada quanto na saída por qualquer um dos guardas ou pelas centenas de prisioneiros, naquela madrugada enevoada invadiram a cela onde dormia Mané, indefeso, desavisado, desarmado.
De manhã, uma gritaria alertou os guardas, que abriram os portões dos corredores e entraram correndo, de armas na mão. Encontraram Mané com o rosto deformado e emplastrado de sangue bem vermelho e quente, escorrendo-lhe pelo uniforme, de tanto bater com a cabeça nas grades, como uma manifestação de sua incontrolável ira. Os pichadores, mesmo, nada fizeram em termos de agressão física contra Mané, mas deram-lhe uma cacetada de morte na moral e na auto-estima. Mané acordou de manhã como se estivesse narcotizado, abriu os olhos lentamente para em seguida arregalá-los com a visão do inacreditável: sua cela estava completamente pichada, os tetos borrados, as paredes emporcalhadas, o chão pintado, as camas e os lençóis rabiscados, seu uniforme borrifado, seu corpo marcado, seu rosto lambuzado de tinta preta. Mané urrava como um louco, não de dor, mas de ódio. Os guardas custaram a entender a cena: Mané naquele estado, dilacerando o seu próprio corpo, o sangue escorrendo-lhe no rosto por cima da tinta preta, sua cela e todo o corredor da penitenciária completamente cobertos pelos sinais de todas as gangues de pichadores da cidade.
Não seria preciso muita argúcia para deduzir que, naquele momento, também a casa de Mané e o seu muro branquinho estariam uma porcaria só. Assim aconteceu, de verdade: tudo maculado, até o canil -- os cachorros não só não viram nada, não emitiram um latido, um mísero ganido, como ainda por cima ficaram por muito tempo manchados com os códigos dos vândalos. Não ficou pedra sobre pedra sem um jato de tinta.
A partir de então, em paredes, muros e monumentos dessa cidade prolifera uma estranha legenda: o nome Mané escrito por todos os lados com um grande e robusto xis bem riscado por cima.
Quem dera que a história tivesse acabado por aí. Mané saiu da prisão faz alguns anos, por bom comportamento, graças a um tal de regime semi-aberto, ou coisa parecida. Que eu saiba, não tem havido mais eliminação de pichadores. Também, seria muita bandeira, como se diz na gíria. Entretanto, coincidentemente, desde então, alguém anda liqüidando sistematicamente depredadore de telefones públicos!
Goiano Braga Horta