Talvez tenha feito a coisa errada.
Mas acredito que muitas mulheres, que hoje me vêm televisionada,
humilhada, chegando algemada à delegacia, torcendo para ver-me atrás
das grades, muitas delas, repito, tem de saber que, apesar de tudo, tive
meus acertos e boa dose de justificativas.
Existe um ponto de menor resistência em nossa mente, que uma
vez rompido, permite que ela se comporte de forma inusual, antisocial,
sei lá... e foi o que me aconteceu.
Ninguém em sã consciência poderia desejar a morte
de uma garotinha de quatro anos, uma simples criança, com todo o
futuro pela frente, embora Tatiana, filha de meu companheiro, não
prometesse nenhuma coisa boa, francamente!
Tudo aconteceu porque conheci o pai de menina, Pablo, e me apaixonei
por ele como se fosse o primeiro homem que via na vida.
Ele era dono de uma loja de moda esportiva, uma grife importante
e popular.
Eu vendia roupas de malha de algodão para ele e ele mandava
bordar sua iniciais. Mas ultimamente eu era mais compradora dele
que ele de mim!
Para cada dez visitas que eu fazia à loja, acabava vendendo
meia dúzia de camisetas e comprando para meu uso algumas peças
de roupa que alucinariam qualquer mulher.
Pablo era casado com uma figura que eu conhecia de vista, uma baixinha
de saltos com plataforma, cabelo loiríssimo oxigenado, batom carregado.
A mulher era uma figura. Intitulava-se atriz! .
Às vezes a encontrava na loja, fumando e empesteando o ambiente.
Apesar desta crítica, Sonia ela não era de todo má,
tínhamos um relacionamento cordial.
Quanto a mim sempre fui meio complicada na parte afetiva. Ainda bem
que vivia nesta última década do século, onde tudo
pode acontecer.
Na adolescência fiquei anos sendo maltratada por um garotão
da pesada, revivendo, na maior viagem, um édipo dos mais problemáticos.
Quando me dei conta estava sozinha, o rapaz tinha enjoado do capacho.
Com toda razão.
Nunca fiquei sem namorar, mas é difícil, muito difícil
o relacionamento homem-mulher! Todo mundo faz o jogo, não sei se
me explico bem, mas chega uma hora que você não agüenta
mais. Quer mesmo é arrumar um homem ao menos um pouco certinho,
que te leve a serio, que telefone quando diz que vai telefonar, enfim,
coisas que pensei que já não existissem mais, até
namorar o Pablo.
Tudo começou numa das vezes que visitei sua loja.
Entusiasmei-me por um cachecol de lã, e ele fez questão
de presentear-me, convidando-me ao mesmo tempo para jantar.
Como existia Sonia no pedaço, aceitei o cachecol, mas não
o convite. Aquilo era tudo que eu temia, isto é me apaixonar por
alguém casado..
Só que, passadas algumas semanas, não resisti, solidão
pesa!.
Arranjei para mim mesma uma desculpa de que precisava vender, acabei
fazendo uma visitinha ao Pablo.
Desilusão! Ele não estava na loja. No dia seguinte, no
entanto, ele telefonou : acabamos indo almoçar juntos. Pois o homem
era o ultimo remanescente de uma espécie em extinção
Sério, distinto, cavalheiro, idealista... e simplesmente muito interessante!.
Seu casamento estava falido, ele confessou, maldizendo o momento em
que tivera uma filha com Sonia e selara mais seriamente a união
dos dois..
Bom, esse tipo de coisa todos dizem, mas no caso dele parecia sincero.
Ele já tivera casos, ela também, o casamento era uma esculhambação,
tinha mais é que terminar.
Nunca mais apareci na loja, com medo de encontrar Sonia, mas encontrava
Pablo todos os dias.
Apaixonamo-nos e ele resolveu cair fora do casamento.
Existem coisas inexplicáveis, que até parecem sobrenaturais!
. Nunca fui pessoa de acreditar nessas bobagens, mas nem bem Pablo e Sonia
se divorciaram, e o sócio de Pablo lhe dá uma rasteira. Pois
meu príncipe virou sapo: era mais um dos desempregados do país
Aquilo foi uma droga, porque minhas camisetas de malha não sustentavam
nem a mim.... e eu contava tirar qualquer assunto de trabalho da cabeça!
Ah, o amor!- lamentei-me tristemente, garanto
Sonia não ficaria com a filha: preferia que o pai a sustentasse,
a espertinha e eu arrastava uma jamanta pelo homem, pelo menos na época,
e ingenuamente resolvi enfrentar a situação, que imaginei
provisória.
Sonia foi embora, de volta a seu país, era argentina, e coube-me
mudar para a casa de Pablo, dormir na mesma cama que a mulher dele dormira
com ele, tomar café em seu jogo de xícaras, etc. Parecia
que todo o recheio da casa cheirava a Sonia, e isso me incomodava. Mas
não havia dinheiro para decorar as coisas à minha maneira..
Era uma questão de tempo, conformei-me. Só disse um NÃO
a uma coisa. Não queria Tatiana morando conosco.
Os avós paternos assumiram, mas logo começaram as reclamações.
A menina era insuportável mesmo, não podia deixar de
chamar atenção todo o tempo. Até cair e se machucar,
se fosse preciso ela o faria, para que todos a olhassem: deve estar satisfeita
agora!
Pablo começou a melhorar de vida e aquilo me deu outro ânimo.
Decidi aceitar a criança, temporariamente. Pablo me agradeceu, é
claro, quem não o faria? Agüentar uma menina mimada e difícil!
A primeira vez que vi Tatiana na minha cama, brincando embaixo das
cobertas, à vontade como se fosse a cama da mãe dela, quase
morri de raiva! Soube que não iria suportá-la lá dentro
de casa.
Mas o que eu podia fazer? Mandar Pablo largar o emprego para cuidar
da filha, levá-la e buscá-la na escola, dar banho, lanche,
agüentar os caprichos?
Afinal nos dividimos, ele levava na escola e eu buscava.
Mas nossa vida a dois implodiu.
Ele virou um homem mal humorado e tenso e eu uma infeliz.
Fazia comida para minha enteada, quem diria, eu que sempre detestei
essa rotina, e tinha que lembrar até das medicações
homeopáticas!
Foi então que li num rótulo: arsênicum!
Tive, então, uma idéia.
A bandidinha vivia atrás das "bolinhas", forma como a medicação
se apresentava. Eram uns comprimidos adocicados. Eu tinha o dever de controlá-la
e ela era desobediente, subia no banquinho da cozinha para pegar o que
queria, achava os medicamentos... e simplemente não obedecia!.
Quem já leu alguns livros policiais, sabe que arsênico
é um veneno... pois esses homeopatas são doidos, só
pode ser!
Eu sei, não sou formada mas não sou uma ignorante. Em
doses pequenas a coisa funciona positivamente. Mas ...e se a criança
tomasse um tubo inteiro?.
Por outra: quem poderia impedir que Tatiana tomasse tantas bolinhas
quantas quisesse?
Comprei aos poucos cerca de trinta tubos de arsênicum. A farmácia
me vendia, normalmente!
-Tatiana, você não mexa aqui, eu dizia, é o armário
dos remédios!.- avisei, certa de ser desobedecida.
Mas, realmente, o remédio se não fazia bem, não
fazia mal algum, tanto que um dia Tatiana tomou o vidro todo, eram bolinhas
doces... e sequer vomitou!
No entanto a idéia de como seria belo se ela simples e serenamente
desaparecesse de minha vida não deixou de povoar minha mente..
Comprei bórax para matar baratas e passei a misturar à
comida dela.
Que nada! Ela apenas parecia indisposta, mais magra e com alguns distúrbios
gástricos de pouca seriedade.
Assim mesmo, a bandida ainda tinha forças para subir no banquinho
e procurar biscoitos no alto do armário da cozinha!
Deus é testemunha de que Tatiana buscou a própria
destruição!
Deixei panelas de água fervendo, na beira do fogão. Fingia
ausentar-me e Tatiana, sempre desobediente, ia em busca dos biscoitos.
Até que um dia ocorreu.
O frágil banquinho desequilibrou-se e ela despencou lá
de cima sobre o fogão, levando junto a panela de água fervente,
que acabou derramando sobre ela.
Berrou muito alto, parecia doida, muito longe da morte serena que eu
tinha idealizado!
Quando cheguei à cozinha ela ainda berrava, mas ao me ver fez
silêncio. Parecia morta, subitamente.
Aproximei-me para sentir se seu coração batia.
Foi então que a pestinha me agarrou pelo cabelo.
Agüentei firme e me dediquei a tampar suas narinas e boca, as
duas engalfinhadas, até que logo sua mão cedeu em meus cabelos.
Quem sabe já tinha morrido, pensei, aliviada.
Só para garantir, contei até duzentos, lentamente.
Quando tudo silenciou e Tatiana pela primeira vez ficou totalmente
quieta , liguei para Pablo.
Estava meio fora de mim. Nem sei como consegui realizar a proeza de
falar com ele.
— Venha correndo! Vou levar Tatiana para o hospital!-
Agora, pergunto, por que os policiais desconfiaram de mim?
Isso vai longe demais para minha compreensão.
O promotor disse, citando o legista, que o cadáver fala! Isso
pra mim é besteira. Acho que Pablo armou algum esquema, pagou talvez,
para me incriminar e voltar pra mulher.
Se ele amava tanto a filha por que não passava o dia com ela?
Se desconfiava de mim, de meu amor por ela... por quê não
assumiu a menina?
E Sonia, com cara de choro, era de dar engulhos, rapidamente
de volta, sabe-se lá de onde, para a missa da filha! Fingida! E
pior: postada ao lado de Pablo, recebendo os cumprimentos! E minha fiança,
oras! Alguém pagou? Ninguém.
Afinal, depois de muito desgaste, largaram do meu pé.
Não tinham provas tão convincentes, afinal. Saí da
delegacia com a ficha limpa, como entrara.
A sentença dizia que não havia dados para formular um
julgamento. Tatiana teria morrido de "morte súbita", uma vez que
as queimaduras haviam sido suficientemente extensas para provocá-la.
Pablo e eu nos separamos.
Tudo terminou como tinha começado.... um sonho. Envolto em uma
atmosfera difusa e incompreensível.
O pior, porém estava por vir.
Pablo voltou e Sonia voltaram a ficar juntos, e ela espera um filho.
Só falta um dia ele voltar para mim e eu ter que cuidar da criança!
Mas terei uma boa resposta na ponta da língua: — Não, obrigada,
estou cansada, definitivamente exausta!
Clélia Romano