Realidade Paralela

          A estrada desce, vertiginosamente, em curvas, sobre a vegetação que margeia o lago. Como se todo o mercado das flores do miserável New Bexiga se espalhasse ao longo da água azul. E sem os vendedores, sem os gritos, apenas o cheiro de gasolina e o ruído monótono do motor.
          Acelerou ainda mais, o pé colado ao falso pedal.
          A vida, às vezes, valia a pena.
          Sentia o vento entrando através das frestas do casaco e, de certa forma, os carros que cruzavam a Via Expressa do outro lado.
          Na outra realidade. Paralela. Com a qual cada vez menos tinha a ver.
          Concentrou-se na paisagem dentro do visor do capacete. Gostava do cheiro de combustível, do odor de couro e aço da moto. Mesmo assim, desligou o que restava do ambiente real.
          Maresia... o ar úmido dos campos ao amanhecer, saturado de perfumes.
          O sol ainda estava baixo no horizonte, ligeiramente avermelhado.
          Lá fora, as fábricas começavam a expelir seus gases negros. O perfil de vidro dos edifícios, uma vasta muralha ao longo da Via Expressa. Os primeiros ambulantes iam  armando suas barracas na calçada, acordando os mendigos com suas trouxas. Panelas eram acesas sobre fogareiros improvisados. A fumaça que saia dos caldeirões sujos ia se  juntar a do escapamento dos carros que passavam, subindo em direção ao céu cinzento.
          Diminuiu um pouco a aceleração e atravessou, com um pequeno solavanco a ponte rústica sobre o riacho.
          Tinha vontade de parar junto à água que corria sobre as pedras, formando pequenas cachoeiras cristalinas... descansar sob os pinheiros que ondulavam ao vento, sombreando as margens do regato...
          Era um desejo impossível.
          Estava condenado a correr através da paisagem, incessantemente, enquanto o mundo explodia lá fora.
          Alguns pardais pousaram nos fios molhados pela chuva. Nas calçadas, os primeiros transeuntes juntavam-se aos mendigos e ambulantes que atravancavam a passagem, resmungando imprecações, enquanto a Via Expressa ia se enchendo de carros e motos velozes, os vidros fechados, o rosto fechado pelo medo. Da emboscada, do assalto, do seqüestro - o encontro da classe privilegiada com a marginália que se espraiava ao longo da cidade sitiada.
          Ele subia a colina, agora mais lentamente, atravessando os campos cultivados. No vale pastavam bois que pareciam de brinquedo. Feixes de trigo brilhavam ao sol e a temperatura aumentou.
          Debaixo do capacete, começou a suar e programou uma ligeira brisa.
 

          A vista do alto era deslumbrante. Pequenos morros que iam se tornando cada vez menores, até se confundir com o azulado do céu à distância. O vento entrava pelos seus ouvidos nas frestas entre o pescoço e o capacete.
          Lá fora, a chuva aumentou de intensidade.
          O assaltante encostou a submetralhadora na nuca do motorista do carro azul metálico. Sua voz era ríspida. Ele comandava a barricada, na descida, logo após a ponte verdadeira.
          Pedágio clandestino, o terror das estradas. Quando avistavam os caminhões atravessados, impedindo a passagem, alguns tentavam manobras arriscadas, voltar pela contramão... era suicídio quase certo.
          Melhor pagar.
          Com o carro, os códigos dos cartões bancários... os minicomps...
          A arma na nuca, os músculos endurecidos do pescoço... à espera do impacto que, às vezes, vinha... ninguém sabia do que os periféricos eram capazes.
          De tudo.
          Para escapar, mesmo que por poucos momentos, do jugo da miséria. O poder absoluto, ainda que só por algumas horas de tensão.
          Ver todos aqueles executivos, nos seus blindados cavalos de aço, estômagos contraídos e intestinos revoltados, sob a mira da submetralhadora.
          Mas ele estava em RV e apostava.
          Começou a descer a colina.
          Agora!!!!.....
          Desligou o comando do computador e manteve a realidade virtual.
          A moto fez um cavalo de pau e embicou para baixo. Os morros, as flores, o  céu, corriam vertiginosamente através do visor do capacete.
          Na tela, as letra vermelhas piscavam:
          “Piloto automático desligado... Piloto automático desligado... Atenção...”
          Por entre os cedros, os vales, o sol brilhante, ele descia cada vez mais rápido.
          Comandando a moto.
          Comandando a vida.
          Na Via Expressa, molhada e escorregadia, as rodas deslizavam perigosamente nas poças de chuva.
          Através do visor, o caminho saltava e ondulava... os campos corriam, sempre mais depressa, em direção aos morros azuis...
          Até se espatifarem contra o caminhão atravessado.
          Na paisagem estilhaçada do capacete, os edifícios surgiram entre a fumaça e o céu nublado.
          O sol oscilou... desapareceu...
          e, finalmente, se fixou.
          Para sempre. Na via azul e verde de sua moto encantada.

Maria Helena Bandeira

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