A serpente esticou suas asas e abriu a boca num longo bocejo, movimentando
involuntariamente as presas para frente e para trás. As diminutas
bolsas de veneno constavam vazias. Não resistira mais uma
vez. A última dose fabricada, lentamente excretada pela diminuta
glândula, injetara em seu próprio ventre, na zona inferior,
próxima ao rabo. Enterrara as presas
pontiagudas em si mesma. Não sentia a dor.
Precisava parar com tal vício autofágico que acabava com suas energias.Vinha perdendo peso e sentia que já não dominava o vôo como antes, perdendo para as rajadas de ventos e mesmo para uma brisa afoita qualquer. As asas simplesmente planavam e o corpo pendia quase frouxo ao sabor das correntes celestes.
Mirou seu ventre pontilhado de picadas duplas. Picadas aos pares, coradas, infeccionadas. A lisura perfeita da pele brilhante interrompida por profundas perfurações. Só não gangrenara não sabia porque.
Há quanto tempo não comia? Enquanto ansiava uma resposta,
sobrevinha uma difusa lembrança de ter abatido uma presa, um rato,
com um bote ágil e certeiro. Mas quanto tempo fazia isso? Muito,
muito tempo... Mirou novamente seu ventre lustroso: vazio e ferido! Pôs
a língua bifurcada para fora da boca e cheirou o ar. Tinha fome.
Podia sentir as doses mínimas de veneno
migrando para as agulhas dos dentes. Podia sentir que breve algumas
gotas estariam prontas e percorreriam o duto, velozes, e poderia senti-las
nas pontas das presas. Um arrepio de prazer percorreu-lhe a comprida silhueta.
Esticou as asas plenamente e ensaiou um movimento vigoroso para frente
e para trás. Com algum esforço alçou vôo. O
rabo contraído e enroscado arrastando sobre as flores do campo,
ceifando algumas pétalas. “Flap, Flap!” As asas batiam lentas e
eficientes, elevando a serpente no ar. A cabeça triangular apontando
os céus e o corpo helicoidal girando como o princípio
sinuoso da vida, repleto de curvas.
Ali, do alto, viu o rato. Podia ver o corpinho nervoso, devorando sementes
de girassol. Bem nutrido, a pelagem cinzenta, quase fundida à terra,
às pálidas folhas secas. Podia sentir seu calor na língua
bipartida. Pressionou um pouco as agulhas e as gotículas assomaram.
Estavam lá, prontas. Aproximou-se a dois pés de altura. O
girassol ocultando e traindo. O rato
não a vira. O ventre liso agitou-se, retorceu-se num movimento
involuntário. A boca peçonhenta abriu-se. Os dentes brilharam
ao sol. As asas batiam, mornas e leves: “Flap, Flap!”
Então, a alada armou o bote. Posicionou-se, pôs as asas para trás, imperceptivelmente preparando um mergulho brusco sobre a presa. Predadora, fatal.
Mas, súbito - não pôde evitar, não pôde - sentiu o sabor da própria saliva venenosa e de novo encantou-se perdidamente. O frenesi do gosto tomando-a de todo. Deu uma volta no ar - laço tonto e louco, anéis fissurados chocalhando - e abocanhou o próprio ventre, fulminante.
As presas enterradas na porção final do corpo. Um círculo no ar. Escamas e asas. O rato escapou, ágil, metendo-se na toca. O veneno percorrendo a longa espinha dorsal. As asas batendo cada vez mais flácidas, “Flap, Flap!” A mente, outrora concisa, assumindo um fluxo nebuloso de intenções. Um giro labiríntico no ar, uma rajada de vento, e a serpente tombou. Argola canibal. Num último gesto, desenterrou as presas ácidas e engoliu um pouco do rabo lustroso. O círculo morto aos pés do girassol. Não tinha mais fome.
Marta Rolim