Quem este ser pálido
que vai contigo no ônibus para Campina do Siqueira?
Gravata, relógio,
desusado chapéu seguem a esmo, com ele, magro e profundo, jovem
embora.
Vai conosco no ônibus
uma paisagem postal: pinheiros e precipícios. Não queira
o frio da noite em Curitiba, lanhadas por vossa unha as paredes desse bar.
Às três horas
da madrugad no ônibus com destino a Campina do Siqueiro, de terno
de listras, branco e de olhar fixo, segue comigo seu corte exato e longilíneo.
Ele que deve ser do Abranches e vê por nós a colorida angústia
dos prédios new-kitsch do Champagnat.
Não tomou a Evanescência
do Dr. Apcot, por certo soropositivo, soropositivo que ele parece, enrolado
em cachecóis, este ser que vai contigo, às três, no
ônibus da madrugada para Campina do Siqueira.
Há a solidão
dos pés, por certo existe, no verniz mocassim — de bico fino os
seus pés humildemente.
As mãos, as mãos
vão com ele afundadas no sobretudo — do bolso, o que será
escondem as mãos?
Se ainda há pouco
relampejou do dedo magro a faísca de um rubi trêmulo?
Guardam o suor da palma
as mãos guardadas?
O que d pêlos coçam
ao nascer, furiosos, incomodando as mãos como barbas tardias? Barba
que não ostenta e vai de cara limpa mesmo que sob os olhos insones
insistam olheiras nele assim feito a mancha fixa de dois hematomas.
Há o turbilhão
das madrugadas de sexta em Curitiba. Ninguém que sóbrio para
sustentar, num ônibus vaazio, com destino a Campina do Siqueira,
o brilho metálico da pulseira do relógio deste que segue
conosco, tarde da noite, como quem acabou de praticar um crime em Pinhais.
Estuprou a sobrinha, liquidou
a família a punhal, ou apenas alheou-se demais do ônibus e
do vento?
No dedo a nódoa indelével
dos cigarros desesperados — em que quarto de hotel da Visconde de Guarapuava,
a faca assassina debaixo do colchão? Ou será só um
homem que, melancólico de amor embora, à casa torna, batido
pela noite, pela sexta-feira batido e pela lua?
Mas se simples assim então
ele não haveria e seria sempre a projeção de uma vida
sombria que vai com ele, este ser esquivo, às três da matina
no ônibus que viaja para Campina do Siqueira.
A tarde em que este homem
andou convosco a Rua das Flores, nenhum de nós para perceber que
carregava dentro de um envelope o poema sentimental. As mesmas pobres estrofes
de amor que deflagariam todo o estertor, de ainda agora, sobre o sinteco
do quitinete do Edifício São Paulo.
Se tosse crônica sequer
o pigarro daqui se ouve baixo o ronco do ônibus que nos leva a Campina
do Siqueira, ambos os dois, sujos de si e da noite. Que cálice de
veneno sobre a cômoda e em que curva do rio o distraído coração?
No sinaleiro a mancha vermelha
de luz como que lhe inunda de oblíqua suspeita e vos enche de adocicado
horror a brisa das magnólias. Ou será apenas o vulto de um
homem perfeitamente sentado, contra o reflexo do vidro deste ônibus
que nos conduz, às três da madrugada, a Campina do Siqueira?
Que travesti no corredor,
a gilete sob a língua, e em que andar o elevador despejou, com automática
presteza, o talhe em dó menor do velhinho egresso da Boca?
Pode alguém chegar
aos oitenta e cinco e morrer varado por uma bala no coração?
Há este ônibus
que vos reúne, de madrugada, a outro passageiro para Campina do
Siqueira e quase não temos como evitar e quase não temos
como evitar mais.
Ah, não falem com
ele que o coração dele quebrou à uma da manhão
de bruma e conhaque, mesmo que lobisomasse no céu uma lua cheia,
a sua alma partiu-se, à badalada em ponto da Catderal, com ruído
feroz, quebrou-se, de porcelanas caindo tensas, para que recolhesse a hora
e o espanto de pisar uma estrada para semre minada a caco e cristal.
E por ser assim tão
distante, solene e vago, é quase um homem, não fosse a invenção
de ser, não fosse o lobo arredio que te possui no ônibus das
três que nos viaja a Campina do Siqueira.
Wilson Bueno