Quando chovia, Luiza escondia
os espelhos com lençóis e queimava palma de Santa Rita pela
casa. Rezava orações molhadas, embalada pelas visões
de Noé a navegar um oceano sem peixes e de Moisés a abrir
uma estrada no mar. Temia o dilúvio, mas amava as águas.
Gostava tanto delas que colocava baldes debaixo
das calhas só pelo gosto de beber água de chuva, encher
uma bacia e se sentar dentro dela para banhar as partes íntimas.
A intimidade com as águas
foi tanta que Luiza emprenhou delas. O pai não entendeu esta aquática
concepção e a expulsou de casa. Não teve José
nem o
Espírito Santo para lhe indicarem uma manjedoura e acabou parindo
num hospital municipal, num dia em que os médicos entraram em greve.
Parto difícil. Placenta
cheia, a inundar os corredores e a cidade quando a bolsa arrebentou.
Foi socorrida por Sebastiana das Águas, um esqueleto seco que por
falta de leito jazia
estendida no chão.
Depois do nascimento, não
vieram os reis magos e nenhuma estrela iluminou o céu. Compreendeu
o descaso de Deus e foi-se embora carregando o filho,
embrulhado num casaco velho.
Criou o filho com as águas
(era lavadeira). Por falta de vagas na escola, não lhe deu estudos.
Mas deu água. Muita água, ao invés de leite.
Quando ficou velha, já
não escondia os espelhos nem queimava palma de Santa Rita: as chuvas
já eram outras e as águas das calhas, poucas. O medo do
dilúvio tinha escorrido pelo ralo e agora tinha outro rosto:
deserto e seco como a desesperança do fio de água a descer
das montanhas; árido e infértil como a sua
barriga vazia. Não era coisa do Céu. Era humano, demasiadamente
humano...
Luiza aprendeu então
a temer os homens. Mas nem todos. Temia os "de lá". Os de lá
das bandas dos roubos juramentados, dos surrupios legalizados, dos
desfalques justificados, das violências banalizadas e das mentiras
validadas. Os "de cá", os das bandas dos que sempre esperam, ela
amava como amava as águas
na época em que elas emprenhavam o mundo.
Marcia Frazão