Pegou o bisturi e o deslizou pela derme. O corte expôs umas granulas de gordura, o tecido amarelo. De dentro emergia a primeira palavra.
– Tirei um ódio! – anunciou o cirurgião.
E lá se foi o ódio grafado, recém nascido das entranhas, maculado de sangue, para as mãos da enfermeira. Um ódio velho, tomado de ranhuras e cicatrizes.
No monitor, o coração pulsava cadenciado. A pressão estável. O médico aprofundou o corte até encontrar a caixa torácica. A seguir usou o extensor para afastar as costelas. Assim que abriu uma brecha, borbotaram raivas e ódios, uma dúzia de vocábulos furiosos jorrou sobre o límpido tecido verde-claro que delimitava o campo. Estavam enegrecidos e fétidos. Um cheiro horrível de podre encheu a sala. O doutor respirou com dificuldade atrás da máscara.
Com a pinça começou a remover as palavras enredadas no pericárdio, estava infestado de mágoas e tristezas. Retirava os substantivos purulentos e os depositava na cuba metálica, que ia se enchendo. Os vocábulos putrefatos iriam todos para análise.
Por fim, após um meticuloso trabalho de limpeza, o doutor deparou-se com o pior: uma estenose na veia cava superior. Uma enorme raiva incrustada, de sólida fonte Impact, prestes a bloquear o fluxo sanguíneo. Optou por introduzir um cateter até o ponto da obstrução parcial. Lá, as diminutas lâminas afiadas e a borda de sucção cumpririam o intento. De fato, reduziram o vocábulo a pedaços e depois sugaram as sílabas destroçadas.
Peito limpo!
Com calma o cirurgião pôs-se a fechar os tecidos, camada por camada. Retirou os extensores. Selou o peito cosendo os pontos com cuidado. O paciente foi levado para a sala de recuperação, onde acordaria horas depois se sentindo estranhamente leve.
Sobre a mesa, a cuba repleta de palavras mortas.
Marta Rolim