"Há dez anos eu deixei essa cidade, hoje, agora, ela se exibe estranha aos meus olhos, já não é mais a cidade que deixei para trás, é outra, não porque cresceram os prédios e igualmente a periferia, mas sim porque também eu mudei nesses dez anos. Teresina continua quente, um calor muitas vezes sufocante, pegajoso, os prédios novos que se multiplicaram dão a impressão que a cidade progrediu, mas o que vejo foi mesmo que a miséria que sempre houve se multiplicou, o trânsito ficou mais confuso, a cidade alastrou seus tentáculos, inúmeros rostos estranhos sob o mesmo e sufocante sol do Piauí, a impressão que tenho é que Teresina é uma ilha de civilização no deserto, que é o Piauí. Talvez esteja errado, o Piauí não seja tão deserto, Teresina não seja tão civilizada. Fato é que a cidade que deixei não é mais a mesma, no entanto nunca deixei de me identificar com essa terra, com a temperatura estrema, seu significado periférico no cenário nacional, sua cor parda que foi sendo sintetizada através da mistura entre negros e índios, da saudade que sinto, por vezes, das chuvas caudalosas que caem violentamente, acompanhada de trovões que sempre me fizeram pensar na violência natural que permeia essa terra."
O rosto macerado da matriarca se exibe, os traços envelhecidos
de sua face revelam o desgaste dos anos, o tempo massacra, desgasta, desfigura.
O tempo vai pouco a pouco nos descascando, exibindo nossa face cadavérica,
como quem após longos anos de existência, de histórias
vividas, não tivéssemos nada mais o que esperar além
da morte próxima, iminente.
Aquela caricatura de gente, que muito pálida e tristemente faz
sugerir que uma mulher habitou aquele corpo, é também um
símbolo, como se Teresina, em parte, fosse a matriarca, sua casa
velha e triste, vazada por um calor enlouquecedor que derrete o meu juízo.
Toda vez que lá estou, releio minha cidade que deixei, minha história
familiar, uma parte de mim mesmo através da figura carcomida da
matriarca, que está em pleno estado de decomposição,
de sua casa, cada vez mais abandonada, suja e cheirando a mijo. Leio nas
paredes abandonadas da casa da matriarca um pouco da sua história,
que é uma parte da minha família, que é, pois, parte
de mim, seria como olhar para trás, tentando contar uma história
do fim para o começo, tentando, não compreender a origem,
mas o presente, o que é atual, tentando ler nos pergaminhos impressos
nas paredes daquela casa cansada e triste um pouco da cidade com a qual
já não me encontro, perdido em algo que sei que já
foi meu, que foi e em parte ainda é uma extensão de mim,
como a matriarca, que ainda carrega, mesmo que por pouco tempo, um suspiro
que faz crer em uma gota de vida no irrefreável e onipresente calor
do Piauí.
"Quando me deparo com essa velhinha, cuja história de vida só
conheço pelas histórias contadas (e como histórias
sei que também fictícias, sempre repletas de lacunas preenchidas
pela imaginação e humor de quem as conta, em um jogo dialético
entre o que a memória apagou e a imaginação inventou),
me vem à mente a idéia de como são contraditórias
as pessoas, todas as pessoas. A matriarca, é como a chamo, é
rude e forte, dotada de grandezas homéricas ladeadas por defeitos
dantescos, ela será sempre a síntese de como são incompreensíveis
as pessoas, capazes de atos de grandeza e torpeza ao mesmo tempo, a matriarca
não é uma heroína, é humana, cheia de vícios
que os anos não apagaram, mas só reforçaram... O preconceito
de classe, o sentimento de superioridade, a avareza, a predileção
que ela faz entre os próprios filhos, o jogo de discórdia
que ela alimenta na própria família que ela se sacrificou
para criar, tudo, gira em um caos que emerge agora por todos os lados e
me faz ver a figura da matriarca também devorada pela sua fraqueza
humana.
A debilidade dos gestos, a fragilidade do corpo, clamam uma simpatia
humanitária, que fica turva diante das torpezas de que são
capazes as pessoas, mesmo que em seus últimos dias, após
toda uma vida de agruras. Diante disso, a matriarca me parece um ser fantástico,
que por ser tão desse mundo, acaba em um determinado momento sendo
irreal, porque assim como não a conheci desde sempre, em mim só
há a figura de uma velha ignorante e vivendo em uma casa abandonada,
não conheço também a realidade de um mulher mumificada
vivendo por anos a fio em uma casa lúgubre em um bairro decadente
de Teresina. A matriarca, assim, acaba sendo um ser mítico, uma
mulher acorrentada a uma vida de perpétua solidão, uma mulher
definhada que me faz dialogar com conceitos como velhice, solidão,
contradição, história, morte, cidade, como muletas
em um jogo fragmentário, em que acabo só, como a matriarca.
"
Em Campina Grande, na solidão do seu quarto repleto de livros mergulhados no silêncio, o neto da matriarca escreve...
- Meu filho, o que você está fazendo?
- Nada, tio... só tentando escrever algo, nada demais (a escuridão
em que sua mente estava imersa é recheada por cores e vozes... Seu
tio, um gordo de mais de 160 quilos aparece e fala com naturalidade e desenvoltura,
como se realmente estivesse ali, com o seu gênio indomável
e megalomaníaco, notas que sempre o caracterizaram).
- Você está escrevendo sobre a sua vó?! Me disseram
que você escreveu sobre ela, você é um rapaz inteligente,
mas deveria usar o seu tempo pra fazer coisas melhores... E o concurso?
Como foi? Seu lugar é aqui... não esqueça.
- Não esqueço não tio... sei disso.
- Você sabe que estou aqui na casa da mamãe temporariamente,
meu casamento acabou, meus irmãos e filhas não querem saber
de mim, sequer se preocupam em ligar e saber se tenho algo pra comer...
Mas eu vou embora, vou sumir, ninguém vai me ver nunca mais. Aquela
mulher acabou com a minha vida, hoje era pra eu ser um homem rico, eu sou
muito inteligente, você sabe...
- Sei, tio, claro, o senhor é o homem mais inteligente que eu
conheço.
- Pois é, mas aquela mulher foi invejosa, sempre teve medo da
minha inteligência, impediu que eu assumisse aquela subgerência,
eu era o maior vendedor do mundo. Hoje eu não suporto mais olhar
pra ela, e o pior é que minhas filhas ficaram todas do lado dela,
mas não me importo, meu objetivo hoje é divulgar a paz, a
humanidade está uma merda, eu falo no rádio, você sabe?
- Sim, tio, ouvi falar.
- Eu sou um grande radialista, escrevo crônicas, mas quase ninguém
entende, eu li outro dia pra um amigo meu advogado e ele não entendeu
nada... Eu tenho um vocabulário muito rico, minhas crônicas
são em nível de terceiro grau, são parábolas
e metáforas, você compreende?
- Claro, tio, não é qualquer um que entende não
( meu tio mal tem o primeiro grau, mas é um sujeito inteligente
e se expressa bem, mas terrivelmente marcado por um complexo de inferioridade).
- Pensando bem, vou encontrar a Joana em Aracaju.
- Quem?!
- A Joana é minha namorada, só a conheço pelo
telefone, mas ela é uma mulher maravilhosa, madura, inteligente,
muito bonita, olha aqui a foto dela...( procura a foto de mais uma amante
de araque que ele encontrou nas loucuras que normalmente faz...)
- Ela é mais bonita que a Flávia, não é?!
( a mulher tem cara de puta...)
- É tio, ela é linda.
- Eu não quero menina não, as pessoas pensam que sou
namorador, que só penso em sexo, mas eles não entendem que
eu quero só divulgar uma mensagem: solidariedade e empatia, solidariedade
e empatia é do que o mundo precisa, eu te falei isso uma vez, não?!
O mundo está uma merda, mas as pessoas não entendem que é
só através da solidariedade e empatia que o mundo poderá
mudar, eu faço isso, divulgo essa mensagem, por isso falo nas rádios...
Quando eu morrer eu quero deixar essa obra, pra que lembrem que existiu
um cara que fez isso...
- Bonito isso, tio ( Imagino o tamanho da conta que ele está
fazendo no telefone da matriarca).
- Meu filho, vou ligar pra ela, a Joana é uma pessoa muito evoluída
espiritualmente, muito diferente da Flávia, mulher ciumenta, mesquinha,
você acredita que ela me deu um murro na cara só porque eu
converso com essas moças?! Por isso vou embora daqui, não
me verão jamais... Vou pra Aracaju, tenho um dinheiro pra receber,
vou vender a casa e lá vou viver com essa mulher, é uma chance
de felicidade que deus está me dando, não acha?!
- Quer saber o que penso? Deveria pensar melhor... antes de vender
a casa e ir atrás dessa mulher aí. Tu conhece mesmo ela?!
Pensa direitinho pra não se arrepender...
- Por que você fala isso?
- A tia Flávia é uma pessoa boa ( na realidade arrastou
o cara por toda a vida, ele sempre um beberrão com sonhos megalomaníacos,
mas não posso falar isso diretamente...), o senhor não está
sendo muito duro com ela?!
- Meu filho, você não sabe de nada, você é
muito novo e não sabe de nada.
- É... o senhor sabe mais do que eu e deve saber o que diz (
trouxa! Vai só quebrar a cara com essa vagabunda e acabar com o
que restou da vida dele...).
- Bem, agora eu vou ligar pra ela ( O homem sai, com seus 160 quilos
pela janela do meu quarto, que agora fica leve, corre uma brisa que se
traduz em paz de espírito).
Volto a escrever, as palavras correm, não escrevo com fluidez, na realidade suponho que escrevo, mas na realidade não faço nada, estou me enganando na solidão do meu quarto que novamente é invadido por outra voz, outro rosto...
- Por que você faz isso?!
- Isso o que, vó?! ( a olho com curiosidade...)
- Escrever, escrever, por que você vive escrevendo essas histórias?
- Não vivo escrevendo histórias, eu sou formado em direito,
não sou escritor... escrevo, às vezes, é uma tentativa
de compreensão de algo, imagino, quando escrevo sobre você
matriarca, é como se estivesse revisitando a idéia que faço
de mim mesmo.
- Você acredita nisso? ( ela ri... em tom desdenhoso) Você
é um tolo meu filho. Você acha mesmo que eu sou como essa
velha da sua história?! Não sou matriarca nenhuma, quem foi
que te autorizou a me chamar de matriarca?! Ainda bem que ninguém
lê mesmo esses seus textos... eu sou analfabeta, mas se soubesse
ler, jamais perderia meu tempo lendo as coisas que você escreve...
e a minha filha te criou com tanto esforço, teu pai gastou tanto
dinheiro pra te educar e hoje tu fica aí, perdendo tempo com negócio
de... como é mesmo?!
- Conto... Ma... vó, conto.
- Que nome mais ridículo, menino, vai estudar de verdade, assim
tu nunca vai ser juiz, vai ser sempre um menino, que vive atado à
barra da saia da mãe, dependente, menino, vai trabalhar, pára
de ler tanto e de escrever essas tolices, matriarca coisa nenhuma... vó
Mundica! Repita!
- .......( Fico olhando pra essa velhinha imperativa que de repente
invade o meu conto pra me fazer passar por ridículo... se tu não
fosse minha avó eu te dava uma cacetada agora!)
- Tu acha que vai passar nesse concurso que fez? Minha esperança
era que passasse, só assim vocês voltariam pra cá.
Mas tu não gostou da prova, não foi?! Acho que tu não
é inteligente como dizem... tu é só estranho.
- É matriarca, a prova não foi tão boa assim...
mas não vou desistir.
- Olha, não me chama de matriarca.
- Sabe, matriarca, quando vou ao teu quarto, e olho a foto do teu marido,
meu avô, é como se ele tivesse olhando tudo o que se passa,
você, velha e abandonada, o teu filho, horrivelmente gordo e cada
vez mais doente da cabeça... a sujeira, o cheiro de mijo que invade
toda a casa que também está morrendo. Acho que você,
tão branca e preconceituosa, deve ter vivido um conflito pessoal
ao gostar dele, quando vejo a foto, além de me lembrar dos deuses
do lar, dos romanos, uma vez que a foto fica em um tipo de altar, cheio
de velas e santos, imagino: olha o negão da matriarca! Afinal, esse
corpo em decomposição um dia foi jovem, por isso mesmo estamos
todos aqui.
- Menino, olha me respeite, viu! Você anda com umas ideiazinhas
meio tortas... Tua mãe não te deu educação
não foi?! Onde já se viu falar isso sobre a própria
avó?!
- Será que ele está feliz com o que está acontecendo,
matriarca, quando te vê assim?! E aos teus filhos todos?! Parece
que ele está vivo naquela moldura... aliás, de péssimos
gosto aquela foto.
- Você não tem jeito... nunca vou te entender, sempre
lendo, distante... nem parece que é desse mundo.
- Sou desse mundo sim, matriarca. Você é uma velhinha
contraditória, mas real... e eu sou meio escritor também
por tua causa, tentando compor a minha identidade através desses
textos, dessas palavras que mal consigo juntar, dialogando com personagens
fictícios que se alimentam da realidade, e eu, me aproximo dessa
mesma realidade através da ficção de todos esses textos...
sempre em um jogo de compreensão, um jogo de significados incompletos,
e eu me identificando dentro dele...
O rosto da matriarca se dissolve... fica cada vez mais velha e velha, já não vejo seus olhos, sua boca, já não mais existe, já não mais está aqui... a matriarca está cada vez mais distante, cada vez mais só... eu fico aqui... acompanhado apenas das palavras que restaram... a palavra, a única que me resta: REECONTRO.