Descia-se por um carreiro ladeado de verduras viçosas, diferentes
nas tonalidades, da prata da oliveira ao verde-escuro da margaça.
Os olhos deslumbravam-se perante os insectos e as flores!
Joaninhas cor-de-laranja com pintinhas pretas “joaninha voa voa, que
o teu pai foi a Lisboa... dizíamos, em cantilena).
Papoilas enormes, vermelhas, a que voltávamos as pétalas
e, com uma ervinha de junça atada ao meio, fazíamos efémeras
bonecas de saia rodada e cabeleira negra..
Lagartixas pálidas, esverdeadas, escapuliam-se lépidas,
por entre as pedras.
A cega-rega das cigarras era quebrada pelo reco-reco das rãs,
sinal de que o riacho estava próximo.
Um tronco velho ligava precariamente as duas margens.
Cheirava a funcho: as margens estavam cobertas de erva-doce, tão
intenso era o aroma que nos dava pressa de sair dali!
Dava o primeiro passo, agarrando a mão de alguém maior
que eu.
No fundo havia uma laje imensa, que eu sabia não poder olhar,
mas me hipnotizava, fazendo-me balançar em desequilíbrio.
Levantava a cabeça, e dava mais um passo; não dava era
parte de fraca!
Avançava-se depois por entre a erva alta e os ramos dos salgueiros,
debruçados sobre a água.
Em breve surgiam as hortas: leiras de abóboras grávidas
estiradas ao sol; depois o milheiral de bandeiras altas; pimentos vermelhos;
beringelas roxas.
Já perto da casa granítica, negra, erguiam-se os feijoeiros
enrolados nas estacas e os tomateiros de folhas urticantes, amareladas
pelo sol.
O verde vermelho dos frutos reluzia como jóias inesperadas.
E lá estava ela, a Alice, com o cabelo cor de palha, muito escorrido
e cheio de praganas de aveia.
Quando chegávamos perto, fazia menção de fugir,
mas ficava. Tensa, um sorriso tímido mas malandro tingindo-lhe os
lábios.
Chamava a mãe.
Esta, saia do buraco negro, que era a porta da casa de terra batida,
sem janelas.
Uma única divisão, sempre pejada de sacos de batatas,
molhos de palha, maçãs estendidas em esteiras.
A mãe da Alice trajava sempre de preto. Sobre a cabeça,
o lenço de pontas cruzadas, atadas no alto da cabeça.
Do biôco do lenço, sorria à gente, boca quase sem
dentes, lábios e pele crestados, dando as boas vindas e desculpando-se:
- “Vindes em má hora, sem avisar”!
Punha-nos as mãos nos ombros, entendidos os braços:
- “Crescestes! Estais bons, ou quê?!”
Dizíamos que sim, estávamos de passagem, muito que fazer
em Lisboa!
Atrás dela ficava o luxo da casa, que permitia se distinguisse
através da lonjura: uma lista de cal logo abaixo do telhado.
Tão alva que quase destoava ali, onde predominavam os tons castanhos
da terra, verdes pálidos dos líquenes e musgos secos que
cobriam as pedras.
No meio dos tons áridos, só aquela lista branca!
Desembaraçada, remexia no lume, ajustava o testo da panela de
ferro bojuda sobre o tripé.
Ia tirar água da nora e gritava ao marido:
- Ó António! Traz aí uma melancia, que os gaiatos
estão com sede!
Gostais de queijo de cabra, não gostais? Vou lá dentro
partir o pão, cozi hoje, estais com sorte!
Voltava com pratos de esmalte, o queijo, o pão partido.
- Nós já estamos avesados com o cheiro do queijo, agora
vós! Comam, comam!
O António chegava com a melancia debaixo do braço. Sorria.
Cumprimentava a todos. Apresentava o enorme fruto, sopesando-o
- Ó Maria, traz mais um prato, que eu tenho aqui a navalha!
Vinha o prato. Cortava as extremidades da melancia, depois talhadas
largas a toda a volta, a casca a estalar ao partir.
Tirava a primeira fatia, rubra e húmida e dizia:
- Olha que é das boas, ó Manel! Prova lá se queres
ver!
- Boa, boa! - Dizia o outro, melado do sumo doce, a cuspir as
sementes pretas.
Às tantas, estávamos todos lambuzados do mel da melancia,
das ameixas que entretanto puseram em cima do madeiro que fazia de mesa.
A Alice nem comia nem tirava os olhos de nós. Era como se estivesse
fascinada pelo movimento dos nossos dedos, dos nossos dentes ao cravarem-se
na crista vermelha, sorvendo, que se desfazia na boca.
- Ó Adelaide, não cresceste muito desde que te vi na
Festa do São Miguel!
Encolhia-me. Estavam todos a olhar para mim. Sem o dizerem, todos concordava:
não crescera lá muito, não.
- Ah, cachopa! Deixa lá: a mulher e a sardinha quer-se da mais
pequenina, animava-me o António.
- É pequenina, mas rija, vede lá se apanhou o andaço
de vómitos e caganeira que nos calhou a todos no ano passado!
Mau! A conversa tinha de mudar de rumo.
- Alice, para o ano já vais à escola?
Ai! Agora era a Alie que estava na baila, coitada. Zangada, escondia-se
atrás da mãe, tapava a cara com o avental.
- Vá lá, moça, que as palavras não custam
dinheiro!
- Por enquanto, António, por enquanto! E há palavras
que custam: as dos jornais, da telefonia, dos livros...
- Ó cachopo! A gente não tem cá desses luxos,
rapaz!
O António soltava um riso que parecia tosse.
- Nós aqui, se não vamos nós a falar, só
ouvimos o gado e os grilos, ah ah!
- Pois é, António, não ouves porque há
quem queira que não oiças, percebes? Para bom entendedor...
- Cala-te mas é!
A Maria ficava de repente séria, como se os repreendesse por
terem dito algum palavrão.
- Tens razão, Maria, é melhor a gente falar de outra
coisa.
Olha, já viste que este ano há-de haver muita azeitona?
- Pois é, o pior é arranjar que na apanhe: quatro homens
e seis mulheres, vê lá, pelo menos. Os homens a dois alqueires,
as mulheres, a metade. Vê lá tu quanto é que não
é!
A conversa já tinha saído do diâmetro dos meus
interesses.
Começava a olhar à volta: procurava primeiro as crias:
gatinhos, poldros, cachorros, cabritos se os houvesse.
Ia atrás deles. Queria pegar-lhes ao colo, fazer-lhes festas,
obrigá-los se possível a caminhar com uma pata na minha mão,
sobre as pernas traseiras: “lavá-los a passear”...
Se não havia crias, ficava desiludida e triste.
Parava um bocado. Ia-me afastando dos outros, arrancando erva e chegando-me
às ovelhas, de mão estendida.
Ou surripiava umas cascas de melancia para os porcos.
Os porcos! Chegava-me devagar, em passinhos, à beira da pocilga
funda, pejada de lama e excrementos, como se atraída por um poço.
Pé ante pé, ia-me aproximando sem ruído, cheia
de medo, até ver os dorsos arredondados, os rabos enroladinhos;
as orelhas pontudas. Depois os ohinhos brilhantes, os focinhos fremindo,
a grunhir.
Atirava-lhes uma casca: iam a correr, empurravam-se, mastigavam num
instante, com os grandes dentes à mostra.
Mais um passo, mais uma casca. Agora os grunhidos eram mais insistentes
ainda.
Eu ia-me chegando para lá e eles para cá. Às tantas
a situação era de risco: eu a pontos de rolar atrás
de alguma pedra da beira; eles empinados à parede, esticados e de
boca aberta, querendo tirar-me o que quer que fosse das mãos.
E ali, no limite imponderável, quase a resvalar, ia repartindo
a comida, de forma a prolongar mais aquele instante.
- Ó miúda! Olha que cais na furda e os porcos comem-te!
És parva, ou quê?! Sai daí!
Ficava ainda um momento, de braços caídos, as mãos
tocando a saia, em posição de sentido, eles a olhar-me expectantes,
a tromba fremindo.
Recuava um passo, fitando-os ainda. Depois virava-me e desatava a correr,
envergonhada e em susto, para junto dos outros.
Pegava um naco de pão, fingia que comia enquanto olhavam para
mim.
À medida que as suas atenções derivavam para outros
assuntos, ia-me retirando de mansinho.
Lá estava a capoeira dos pintos, com as mães. As outras
galinhas e frangos, assim como o belo galo vermelho de crista em riste
e cauda de brilhantes penas longas, podiam ciscar aqui e ali. Chegavam
a entrar em casa, de onde eram corridos com o abano de palha.
- Xô, Xô! Larguem as sacas das sementes, seus filhos da
puta! Deixa chegar a romaria, que eu vos digo! Vão para a panela!
Xô!
A Maria, no fundo, era como eu: à sua maneira também
amava os bichos e falava com eles, como se fossem uma espécie de
gente, pois melhor que muita gente a entendiam.
Era um crá-crá-crá, um reboliço de asas,
um revoar de penas, e lá iam eles a correr até chegarem a
outro canto do terreiro, onde se juntavam e recomeçavam a eterna
fadiga de esgaravatar e debicar insectos e sementes encontrados aqui e
ali.
Maria Petronilho