A Casa

Da velha casa que nunca conhecera sobraram  escassas pilastras unidas  por hiatos  de grama e entulho.  Um cheiro de história impregnava as ruínas e, de certo modo, me amedrontava, forjando um universo onde real e imaginário conviviam, entrelaçados de maneira indiscernível. No íntimo, algo me dizia que fugisse. No entanto prossegui, caminhando em meio a restos de paredes tombadas, as entranhas expostas: grumos de barro preenchendo os vãos entre as hastes de madeira; várias camadas de tintas.

Do lugar onde estava, eu via a planta em toda sua extensão, e com a imaginação a preenchi. Então pude destacar a altiva fachada estampando a data da construção “1846”; a pesada porta de entrada, cabiúna negra trabalhada, com motivos árabes. Acima de minha cabeça, a sacada azul de treliça projetava-se sobre a escadaria rústica de pedras.

Olhei em volta e busquei as coisas que ouvira de bocas familiares: o engenho, o caminho de seixos que conduzia ao rio,  a pequena mata ainda virgem repleta de mistérios... Não restara nada!  No entorno, somente ruínas e pastagens para o gado magro e esparso. E o vento de antigas passagens? Estendi o braço. Nem acima, nem abaixo de mim. Agora não havia. No firmamento, apenas o sol, como uma inconseqüente tocha, o mesmo sol da criação, o sol que iluminara meus antepassados e ainda iluminará quantos?

Pisei na soleira e entrei. O  ruído surdo de meus passos ressoou no piso de madeira. Lá dentro, as coisas estavam dispostas como desde sempre: mesa, cadeiras de altos espaldares, a grande arca repleta de cristais da Boêmia e porcelana chinesa. Sem pressa, perscrutei outros cômodos: pareceram-me inalterados. Os quartos com suas minúsculas camas antigas, de feitios retos; as colchas rendadas, brancas e engomadas. Senti um impulso de deixar-me ali sobre uma delas, dormir o sono eterno que me ofereciam, o sono de várias gerações antes de mim. Mas percebi que não podia tocá-las, sob pena de fazê-las evanescer. Retrocedi. No fim do longo corredor, a escada conduzia ao andar de cima. Hesitei ante a estrutura compacta de madeira. Não obstante, meus pés avançaram sobre os degraus e logo vi-me em um grande salão ladeado por quatro portas azuis. No teto, uma pintura barroca retratando as falanges celestiais, a eterna luta do bem contra o mal. Caminhei até o balcão e apreciei a mata estendendo-se além do riacho, o fragor dos macacos no fim de tarde e o vento em lufadas fortes, colando minha roupa à pele suarenta.

De repente, algo se despegou do teto, e caiu em movimentos lentos e oscilantes, quase me roçando a face. Carregada pelo vento, uma folha de papel,  agora aprisionada entre os ramos de uma roseira. Precipitei-me escada abaixo, atravessei os vários aposentos e cheguei à porta. No exterior,  novamente sol e ruínas. Caminhei apressadamente até onde segundos antes havia rosas, abaixei-me e, do barro, desenterrei um fragmento de página amarelada, cuja extremidade sobressaía entre restos de madeira. Esfreguei-a com as mãos: “Na candente manhã de fevereiro em que Beatriz Viterbo morreu, depois de uma imperiosa agonia que não cedeu um só instante nem ao sentimentalismo nem ao medo, observei que os painéis de ferro da praça Constitución tinham renovado não sei que assunto de cigarros; o fato me desgostou, pois compreendi que o incessante e vasto universo já se afastava dela e que essa mudança era a primeira de uma série infinita. Mudará o universo mas eu não, pensei com melancólica vaidade...” Borges. Eu o sabia por haver lido tantas vezes.

Súbito, uma dor me invadiu o peito, como um punhal lançado à distância. Arqueado sobre o ventre, mal enxergava um palmo além de mim. Espremi a folha entre os dedos e ela me cortou como uma esponja de espinhos. Larguei-a. Minha mão sangrava. Olhei em volta e estavam todos ali. Todos os fantasmas antigos. Fitando-me com olhos piedosos. Embora não os conhecesse, sabia que eram meus. Com gestos amigáveis, disseram-me que entrasse. E eu os acompanhei.

Umberto Krenak

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