Esquecido. Sobre a estante de vime um espelho pequeno. Largado. Ficou ali
durante anos, acumulando poeira. Esperando a ferrugem nascer entre o espelho
e o suporte de madeira.
Mostrava sempre, de dia e de noite, capas de dois livros de receita, um
vasinho quebrado com pinturas de motivos chineses, a meia da criança.
Duguai nem se lembra mais porque deixou a meia do pequeno filho ali. Estes
eram os objetos que o espelho mostrava refletindo no fundo, lá atrás
dessas coisinhas esquecidas, a pintura tosca da parede seguindo junto ao
corredor. Pintura velha. Ninguém mais se lembra de como era a cor
quando a parede foi pintada. Nem Duguai, nem Matilde e nem a criança
que também não é mais criança.
O resto da estante de vime está repleto de livros. Auto-ajuda, a
coleção incompleta da Barsa, o Novo Testamento, Dona Flor
e seus dois Maridos que Matilde comprou e adorava ler e reler em dias de
sol quente, logo quando casou com Duguai.
– Du, queria ter dois maridos. – Costumava dizer Matilde quando folheava
algumas páginas do livro do Jorge Amado. Deitada no sofá,
os dois assistindo programa de variedade na televisão ao sábado
à tarde, sem a criança ainda, ficava só de vestido
estampado de flores, quase transparente, sem nada por baixo e esfregava
os pés sobre o calção do Duguai. Olhava sacana e ele
franzia a testa, fazia bico e cruzava os braços. – Ah, Du, tá
vendo só, dois maridos, pelos menos um vinha brincar comigo – E
ela ria e ele ria e os dois se rolavam no chão e faziam brincadeiras.
Depois que a criança nasceu o único livro de romance da casa
foi parar na estante velha de vime. A estante era da mãe do Duguai
e ela deu de presente logo depois que voltaram da lua de mel.
Na pequena estante de vime entulharam revistas. As viagens que sempre quiseram
fazer. Os sonhos de viajar guardados dentro daquelas revistas da Editora
Abril. Lá estavam seus lugares. As praias do nordeste. As praias
de Santa Catarina. As serras gaúchas, cariocas e mineiras. As estâncias
de águas de São Paulo. O Pantanal que sempre quis conhecer.
Pescar.
Certa vez comprou um caniço e começou a pescar em pesque-pague.
Trazia tilápias e ia enchendo o freezer da geladeira. Matilde não
comia peixe. Quando criança se engasgou com espinha, adquirindo
assim aversão à carne de peixe. Duguai era preguiçoso
demais e não cozinhava. Os peixes congelados acabaram sendo dados
ao vizinho que adorava comê-los fritos. Duguai nunca mais pescou.
As revistas não traziam aquele hotelzinho onde passaram a lua de
mel em Foz do Iguaçu. Economizaram, depois juntaram as economias
com as doações recebidas no casamento e foram fazer compras
no Paraguai. Quantas bugigangas trouxeram! Mas foi uma lua de mel encantadora.
Foram até ao cassino, na Argentina. Jogaram caça-níqueis
e quase Matilde ficou rica. Batia palmas desesperadas dando saltinhos em
frente às máquinas e a toda hora gritando é agora,
é agora. Duguai, observador, queria se aventurar em jogos de cartas,
mas não tinha dólares para isto. Apenas o dinheiro quase
contado para as compras, o hotel e a volta da lua de mel.
Escondidos entre as revistas os dois fascículos de Playboy Internacional
que ele comprou sozinho. Matilde quando descobriu brigou com ele. Ficaram
sem conversar uma semana. Ele prometeu jogar, queimar, dar ao vizinho dos
peixes, mas escondeu na velha estante que ganharam da mãe. A estante
velha, empoeirada, esquecida, trazia recordações que eles
não se recordavam mais. As lembranças estavam lá.
Encolhidas. Receosas de aparecerem. Mas o espelhinho não deixava
enganos. Foi o último objeto que compraram no Paraguai, na lua de
mel. Trinta e cinco anos.
Noite de sábado. 21:00 horas. Dentro da casa Duguai ouve encantado
e feliz o CD de jazz que ganhou do filho. Espera Matilde terminar seus
retoques no banheiro para saírem. O filho cresceu, estudou, virou
Doutor, ganhou dinheiro e mora na França. Os pais ficaram ricos
também. Continuam na mesma casa. Aumentaram a construção.
Compraram os terrenos vizinhos. Hoje tem piscina, jacuzzi, jardim, televisores,
tv a cabo, telefone sem fio, internet, cozinha até com forno a lenha.
Matilde aprendeu a fazer pizza. Também tem um banheiro grande, cheio
de vidros de perfumes franceses que o filho vive mandando da França
junto com os vinhos que o Duguai aprendeu a tomar e gostar.
Matilde chama por Duguai. Pede a ele para ajudá-la a tirar um pelinho
da sobrancelha.
– Caramba, Ma, não tô vendo pêlo nenhum aqui. E tá
bom demais. Vamos logo senão vamos chegar atrasados. –
– Mas o pelinho tá aí, sim. Você que não quer
ver. Você que não quer que eu fique bonitona. –
– Claro que não, Ma. Você tá linda. Eu te amo. Vamos
logo, vamos. –
– Não. Enquanto não tirar esse pelinho daí, daqui
eu não saio. –
Duguai olha firme no olho dela e lembrando instintamente do espelhinho
naquele velho corredor onde não vão mais, ele sai e pede
para ela esperar que já volta. Vai encontrar um espelho mais potente.
Mais poderoso.
Sem medo, sem lembranças, sem nada, apenas no gesto pega o espelhinho
e nem percebe os objetos sobre a estante velha de vime. O espelhinho que
viu sarampo e catapora na língua do filho. Viu muitas lágrimas
de Matilde. As conversas solitárias do Duguai falando a si mesmo
e encarando o espelho.
– Aqui está, Ma. Veja se te ajuda. Este espelho é potente.
Por ele enxergamos até a alma. – O próprio Duguai fica perplexo
com suas palavras. Não quer ver a alma. É apenas para ajudar
Matilde a arrancar o pelinho.
Matilde pega o espelho e antes que começasse a retirar o pelinho
vê toda sua vida. Os cinquenta e cinco anos. Os trinta e cinco de
casada. As rugas ocultas pela plástica feita. O silicone saltando
de dentro do decote do vestido. Os perfumes franceses sobre a pia do banheiro.
Mas também vê o espelhinho do Paraguai e a vida dura que teve.
Altiva, feliz, encara o rosto no espelhinho e munida de sua pinça
diz ao Duguai:
– Du, consegui. Tirei o pelinho. Agora vamos. Jogue fora esse espelho.
É muito velho. –