"Por que esse imbecil deixou o carro parado no meio da ponte? Tinha que atrapalhar o trânsito em plena segunda-feira pra se matar? Quer morrer, se joga logo e pronto. Mas não, o babaca queria aparecer...", reclama um taxista para o passageiro.
Motoristas buzinam sem parar, mesmo sabendo que é em vão. Não há como avançar, pois o carro foi largado na transversal, impedindo qualquer passagem. Um helicóptero sobrevoa o local, barcos procuram o corpo no mar.
Lúcio se aproxima da multidão que cerca o carro abandonado. "É o segundo que pula este mês", "Deveriam colocar um alambrado ao redor da ponte, que saco!", "Alguém viu quem foi?", "Uns dizem que foi uma mulher que pulou completamente nua, outros que foi um garoto, ninguém sabe ainda direito", "Desta altura, deve ter se quebrado todo...ou toda", "E agora, como é que vão tirar esse carro daqui?", "Ainda não encontraram nenhum corpo, como é que pode?", "Na certa a correnteza levou o corpo e esses incompetentes ainda não acharam", "Alguém aí tem um celular pra me emprestar? Vou perder a reunião, que merda!".
Lúcio sente enjôo e resolve apressar o passo. Quase corre, quer sair o quanto antes da ponte. Ao chegar na avenida, encosta na primeira parada de ônibus que avista. Resolve pegar o primeiro ônibus que aparece. Está quase vazio. Abre a janela, pois se sente sufocar. Afrouxa a gravata e enxuga o suor da testa com a mão. Procura na maleta algo para ler e leva um susto: encontra uma chave de carro com várias outras chaves, de diferentes tamanhos. Não as reconhece. Como teriam parado ali? Segura as chaves e verifica uma por uma. Observa o chaveiro, nele está pendurada uma letra: F. Guarda as chaves na maleta, logo depois abre e pega novamente as chaves. Gira com o dedo, manuseia as chaves e a letra F em metal do chaveiro. Decide que não irá ao trabalho e sente uma alegria de colegial que mata a aula. É estranho e ao mesmo tempo fascinante seguir sem direção, sem compromisso, como um turista na própria cidade.
Está no centro antigo, cercado de sobrados em ruínas, que um dia já foram imponentes prédios. Há grande movimentação nas ruas, camelôs disputam espaço com feirantes, mendigos disputam restos com vira-latas. Rua das Flores, Lúcio vê a placa e, sugestionado pela letra F, a mesma do chaveiro, resolve descer do ônibus. Há muito tempo ele não andava por aquela área da cidade. Percorre alguns metros e encontra um sobrado que chama a atenção pelo "jardim". Em vez de flores, há apenas mato alto. O aspecto é de total abandono, mas ele sente que aquele lugar o atrai, como um ímã. O portão está trancado com cadeado. Lúcio, em gesto automático, testa as chaves que ainda segura nas mãos. O cadeado se abre. Lúcio sente arrepiar-se a espinha e o coração disparar. Na entrada da casa vê um gato preto em cima do muro, que em seguida salta para a casa vizinha. Consegue abrir, com as mãos trêmulas, a porta, que range estridente. A sala está às escuras, todas as janelas estão fechadas. Tenta ligar o interruptor, mas não há luz. Nem mesmo a forte claridade do dia ilumina a casa, que está mergulhada na escuridão, como se fosse noite. Após algum tempo no escuro, Lúcio consegue distinguir o contorno dos móveis. Lembra-se do isqueiro na maleta e, com a chama fraca, anda apoiando-se nas paredes.
Chega ao fim do corredor e sente os pés se molharem. O chão está completamente encharcado. Escuta o barulho de água caindo e entra no estreito banheiro. Lá encontra uma banheira e, dentro, uma mulher nua. Aproxima a chama e vê que ela está de olhos abertos e com um leve sorriso. Lúcio, estranhamente, não sente medo. Permanece admirando o rosto da mulher, muito branco e enigmático. Ele agora sabe o que veio fazer naquela casa. Apaga o isqueiro, retira a roupa, mergulha na banheira ao lado da mulher, e ambos desaparecem na água, na escuridão gelada.
Ricardo Borges