Nada era mais importante na vida do pequeno Paulo do que folhas brancas
de papel e uma caixa de lápis de cera coloridos. Era o que bastava
aos seus apaixonados desenhos.
Espalhados em seu mundo, o quarto de dormir, aquela imensa quantidade de
desenhos. Sem catalogação. Sem fotografias. Uns colados com
fita adesiva por toda parede. Outros amontoados, em pilhas, pelos cantos.
Outros tantos amassados. E muitos outros, a mãe e o pai, com gestos
mecânicos, simplesmente pondo fora. Mas sempre felizes pelos desenhos
do pequeno Paulo.
Quando Paulo inaugurou a adolescência, no dia do aniversário,
alguém, ninguém se lembra até hoje quem, deu-lhe uma
tela branca, 3 vidros guache, amarelo, vermelho e azul e 2 pincéis.
De um dos desenhos empilhados ou grudados na parede, ou até jogado
fora, retirou largo sorriso que fez certa vez e trouxe para seu rosto.
Felicidade maior ao desembrulhar o pacote e encontrar seu primeiro material.
“É, não temos dúvida, será pintor.” Foi o comentário
que o pai fez à mãe aquela noite quando foram dormir.
Ao amanhecer a primeira tela estava pronta. Tirou de dentro de si, como
o músico retira a música sabe-se lá de onde, como
o poeta encontra versos no interior de uma lata de lixo, cavando, um quadro.
Um jardim de amoras silvestres encantava aquela tela.
Acordou o pai e a mãe, mostrando sua primeira grande obra de arte.
A tela, ainda borrada pela recente intimidade com o pincel no lugar dos
lápis de cera. Mas eram amoras que conseguiu colocar ali naquele
tecido branco, agora colorido de guache.
Os pais sorriram. E deram-lhe, no mesmo dia, outras telas brancas, um cavalete
e mais tintas, grafites e pincéis.
Quando muito tempo se passou e o pequeno Paulo já não era
pequeno e também não era mais chamado só de Paulo
e sim de Paulo das Telas, e os pais já tinham morrido há
alguns anos atrás, ele acordou de um sono agitado, de sobressalto.
O filme do sonho que via era sufocante e estranho.
Sonhou, naquela noite, estar em pleno século 12, caminhando sozinho
no meio de brejos, intercalados com paisagens áridas e desérticas,
quando no brejo que o fez acordar viu centenas, milhares de filhotes de
jacarés vindo em sua direção.
De pronto se dirigiu ao seu estúdio, onde tinham muitos desenhos,
telas, gravuras, xilogravuras. Paulo das Telas se fez artista plástico
e assim passou a ganhar dinheiro.
Empunhou o antigo pincel, abriu as janelas do ateliê, acomodou uma
grande tela branca no cavalete, foi até o aparelho de CD, sem escolher
música alguma, apertou a tecla play passando o ambiente a ser invadido
pelo sax de Kenny G.
Foi até a janela onde o vento da madrugada, lento e suave, bailava
ao som de What A Wonderful World pelo sax de Kenny G, fechou os olhos e
inspirou fundo. Relaxado, se posicionou em frente à tela e passou
a traçar os desenhos de dentro de si no espaço plano da tela
branca. Sem marcações, sem lápis preto, apenas o pincel
em sua mão, como nunca havia pintado antes.
A madrugada foi embora com o vento. O dia amanhecia. O aparelho de CD mostrava
apenas uma luzinha vermelha avisando que ainda estava ligado. Paulo das
Telas continuava em êxtase com sua pintura, parecia ouvir as notas
musicais, a sentir a brisa da madrugada.
No fim da manhã, exausto e com as mãos sujas de tinta, o
quadro estava pronto. Feliz, abriu os olhos. Desenhou o mesmo sorriso que
sempre teve desde quando ganhou pela primeira vez aquela telinha no adolescente
aniversário.
O quadro. O cavalete. O sol entrando igual a todos os dias de sol dentro
do estúdio do pintor. As tintas. As cores. O silêncio. O aparelho
de CD mudo. A pintura pronta. De onde se via o quadro via-se uma janela
branca com o peitoril carregado de begônias coloridas.
A janela aberta. Dentro e fora o tom azul miosótis do céu
de dia claro. Além da janela, uma fonte de água límpida
jorrava espumas brancas no pé do riacho. Pedras soltas. Seixos no
fundo do riacho. Árvores repletas de folhas verdes. Atrás
da fonte d’água era possível ver um campo extenso de areia
dourada. Deserto. Rachaduras sombrias no chão. Buscando imagens
dentro das rachaduras legiões de lagartos secos e famintos mostravam
a silhueta do rosto do Paulo das Telas.
Absorvido pelo surrealismo da última tela mergulhou de um único
salto confundindo-se entre a janela do quadro e a janela do estúdio.
Na realidade de sua carne quente, o sangue pintou a calçada.
Carlos Alberto Francovig Filho