Abismo

            Talvez se eu tivesse feito de outra forma, se tivesse seguido outro caminho, as coisas fossem diferentes. Talvez eu tivesse sido feliz ou plena, não sei. Talvez... só talvez. Agora já não há mais como saber. Escuto murmúrios, vozes entrecortadas, barulho de pés se arrastando no piso frio do quarto, parece que têm pressa. É dia ainda. Consigo perceber, de onde estou, uma réstia de luz, teimosa, escorrendo através da cortina da janela. Um suor frio atravessa o meu peito, contorna os seios, desce pela barriga, cai no umbigo como numa poça. Acho engraçado. Ainda consigo rir. Um cheiro de maresia ao longe, traz outras lembranças. Coisas antigas de quando era bem menina e uma onda mais afoita quebrava com estrondo, me arrastava, eu virava uma coisa só junto à areia e a água salgada. A calcinha do biquíni ganhava um bolo de areia dentro. O sutiã subia, deixando aparecer uns peitinhos inexistentes. Eu não tinha medo, era feliz. Não haviam escolhas. Mas veio o tempo que seca a beleza, o amor, as palavras. Destrói e desune como a areia na água.
            As vozes se intensificam, parecem mais altas porém mais longe. Mãos que me tocam descuidadas, me viram do avesso, me sacodem. Como garras. Não percebo o sentido. Sinto pingar lágrimas em mim? Que estranho... “O tempo seca a saudade, as lembranças e as lágrimas. O tempo seca o desejo e suas velhas batalhas”. Deixa, talvez, mas só talvez, um retrato empoeirado, bailando seco e vazio, em cima do móvel da sala. E aquele tempo vai mudando e de vez em quando a gente lembra daquele beijo. Como um acalanto. E o medo reaparece porque você sabe que o beijo ficou antigo e não tem volta. O tempo não retorna nem amarrado porque o passado já nos perdeu. Já esqueceu nosso endereço.
            Sinto a boca seca. Uma dormência nas pontas dos dedos. Minhas pernas vagam soltas, nem estão mais comigo. Sinto, apesar de você não estar aqui, que seus olhos transitam dentro de mim e fizeram morada entre a fresta de luz e a sua imagem. E escorregam suaves como seda entre os meus poros e os meus pêlos. Eu morro. Mas meu corpo está aceso em sede. E o seu olhar me conduz a cada segundo.
            Talvez agora eu possa. Talvez eu consiga, enfim. Me desamarro das cordas mofadas e empoeiradas, me desprego do porto, solto os grilhões do passado e vou, cabeça erguida, confiante e nua, para além do mar, rumo ao meu destino. Agora não há mais sonhos. Nem é preciso escolher. Só existem as sombras embalando meu sono sobre a noite que chega e secretamente me assombra. Não corro mais o risco de ser feliz ou triste. Meu destino quedou por um triz entre sucessos e desatinos. E agora me espreita à beira desse atraente abismo.

Daisy Melo

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