Você acredita estar dormindo e, entretanto, vê-se acordado:
sonha estar acordado e sente-se deitado na cama, abdômen para o alto.
A boca entreaberta, as pernas estiradas, os braços abertos, a coberta
até o pescoço. Os minutos passam e você, acordado,
cansa de estar dormindo naquela incômoda posição e
resolve virar-se. Mas um corpo que dorme não obedece a um homem
acordado ou... um homem que dorme não pode se dar ao luxo de mandar
no seu corpo. Tenta mover um braço e não consegue, quer mudar
de posição e não pode. Suas pernas parecem pesar várias
toneladas e a coluna vertebral indica ter perdido seu ponto de apoio. Em
um esforço conjunto tenta mover todo o corpo simultaneamente, mas
a única coisa que você consegue é constatar que está
aprisionado em seu próprio corpo.
........Só
seus olhos movem-se. Olha o guarda-roupa à sua frente, as paredes
à sua volta, o seu corpo sobre a cama. Tenta, ainda, por diversas
vezes, mover um braço, uma perna, um dedo que seja, sem êxito.
Não lhe cansa a situação, mas a imobilidade.
........Um inseto
voador não identificado faz acrobacias aéreas e pousa, habilmente,
em seu nariz. Visto dali, o inseto parece algo terrível, gigantesco,
cheio de patas, asas e pêlos. Caminha por toda a região, ameaça
entrar em uma de suas narinas, mas os seus cabelos impedem.
........Frustrado
em sua tentativa de espeleologista faz mais três ou quatro piruetas
no ar e, após pousar algumas centenas de larvas no seu lábio
superior, bate em retirada. Infelizmente.
........Vem a monotonia
e com ela o cansaço. Você tenta mover-se outra vez e não
consegue. Só então você se lembra de gritar. Nada.
A boca, a língua, os lábios não obedecem. Você
consegue gemer ou, ao menos, acredita estar gemendo, mas ninguém
o ouve. Para seu desespero nota que também o pulmão já
adere à paralisação generalizada e o ar penetra com
dificuldade. A asfixia aumenta, o suor poreja-lhe da testa, você
sente que vai perder a consciência e no último momento de
razão, acorda.
........Só
então você se lembra: a febre. Quase todas as noites ela retorna.
Você, que alimentara o sonho de bamburrar, achar uma pedra grande
no garimpo e ficar rico da noite para o dia, só digere pesadelos.
As condições subumanas de vida, de trabalho, o desmatamento
da região, os locais pantanosos: a malária.
........Você
se ergue da cama a custo, apanha o caneco, a moringa e bebe um pouco de
água barrenta, suja, fétida. O Sol nasce e a febre seguiu
a Lua. Você retorna à cama e aguarda que chegue, mais tarde,
a mulher que você paga para lhe trazer as refeições.
* * *
........Uma noite
após a outra. Você já não quer dormir, tem medo
do que possa vir a acontecer, mas o sono é mais forte. Tudo começa
ao anoitecer, com uma moleza, uma dormência no seu corpo que aumenta
com o frio. Surgem imagens, recordações, lembranças
que vão tomando forma, ganhando vida. Você pensa na vida atribulada
na selva paulista, a construção, a zoada infernal do trânsito
lá embaixo, os companheiros que despencam dos andaimes, o dinheiro
pouco, sempre contado, sempre faltando, a perspectiva de um enriquecimento
rápido nas minas de ouro no norte. A viagem e a doença. A
miséria maior. A zona, a gonorréia.
........Você
se vê numa gigantesca planície branca, que está acima
de você e não a seus pés. Ao longo, onde deveria estar
o horizonte, um ângulo, outra planície branca, esta para baixo.
Você descobre, então, que não é você,
mas sim uma formiga. Você é uma formiga no teto e as paredes
tornam-se gigantescos vazios. Assim você se sente: um nada no nada.
Então você retorna, já como homem, a São Paulo
e no meio do vai-e-vem de gente, você parado, procura interceptar
as pessoas (nem você mesmo sabe com que objetivo) e elas passam direto,
como se você não estivesse ali. Mas você não
está ali, afinal, você está deitado em sua cama em
algum lugar do norte do Brasil. Mas você quer ser ouvido, quer que
alguém o tire da cama e lhe leve de volta à construção.
E aí começa o mais trágico: as pessoas que você
toca tornam-se uma massa marrom, disforme, pastosa e inconsistente, caindo,
depois, ao chão. E as pessoas vão, assim, desintegrando-se,
desintegrando-se, até que você fica sozinho, cercado arranhacéus
em plena rua... sozinho. Você olha para cima e vê o Sol, o
Sol entrando pela janela a lhe dizer que a noite e o pesadelo acabaram.
* * *
........ Dias e dias
passam, a certeza de que não haverá mais noites normais se
confirma. Num bordel da região toca No More Lonely Nights, de Paul
McCartney. Parece cômico, mas há muito suas noites já
não são mais vazias. "Eles" lhe acompanham.
........O sonho
daquela noite repete-se. Você se assusta e tenta levantar. Não
consegue. Girar o pescoço, coçar o braço, abrir as
narinas e nada. Então você percebe que não era por
aí. O que você quer é impossível: levantar o
corpo. Você tem, sim, que se levantar.
........Você
consegue erguer um dedo, e depois a mão. Não sabe como, mas
agora se sente muito mais leve. Desce da cama, mas não toca o chão:
seus pés ficam flutuando a um centímetro dele. Olha para
trás e vê o corpo estirado na cama, pergunta-se como não
pensara nisso antes: se o corpo lhe pesa, deixa-o. A sensação
é boa, você só não sabe como voltar a acordar,
mas isto já não tem muita importância. Acordar significa
sentir-se fraco, doente, padecer até que a noite e a febre voltem.
Lá, não. Não há dor, nem fome, nem febre.
........O corpo
na cama reclama, "Volte". Mas já não tem poderes. Uma luz
brilha além da janela. Você passa pela porta e sai. "Volte".
Nunca mais noites vazias, continua a música na vitrola.
* * *
........A mulher,
ao chegar pela manhã, constata que você não vai precisar
da refeição.
........Nunca mais.
Goulart Gomes
Do livro: "Todo tipo de gente", ed. patrocinada por Safra,
Faz Cultura e Gov. da Bahia, 2003, BA